quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

ESTILO TRANSCENDENTAL

 


Com “Transcendental Style In Film: Ozu, Bresson, Dreyer” (publicado pela primeira vez em 1972), constituiu Paul Schrader uma poderosa ferramenta de análise conceptual que joga com os conceitos de “transcendental” e de “estilo”, unificando-os num terceiro conceito, designado como “estilo transcendental” que forma o fecho de abóbada de uma teoria que progride dialeticamente. De facto, o autor apresenta uma reflexão que divide em fases concatenadas e sucessivas (o quotidiano, a disparidade e a “stasis”[1]) formando um movimento estético que se desloca dos “meios abundantes” para os “meios escassos”. Esta terminologia é atribuída ao filósofo católico Jacques Maritain, citado por Schrader (Schrader, 1972, p. 154). Maritain afirmara que os meios abundantes se preocupam com o carácter prático do mundo profano, enquanto os meios escassos “estão menos sobrecarregados pela matéria...porque...são meios escassos pela virtude do espírito (Schrader, 1972, p. 154). Para Schrader (1972, p. 157-159), os meios abundantes que refere em termos cinematográficos ao “realismo inerente ao cinema”, pertencem às suas propriedades imitativas, representacionais e experienciais. Nessa perspectiva, tal inclui a expressividade dos dispositivos narrativos geralmente empregues em filmes de estilo classicamente talhado para manter os espectadores interessados e empaticamente comprometidos. Assim, em oposição total, os meios escassos referem-se a uma estética austera e despojada, desprovida de tais dispositivos narrativos de cativação do espectador. Na sua forma extrema, os meios escassos transformam-se em “stasis”; o movimento dos meios abundantes para os meios escassos inicia-se através de um esvaziamento do simbolismo e de técnicas de distanciação, resultando esta estilização numa transformação profunda na natureza abundante do cinema.
É esta grelha de análise que Schrader aplica à obra de Yasujiro Ozu, Robert Bresson e, em menor grau, à de Carl Th. Dreyer, cineastas que, em distintas regiões geográficas e em diferentes contextos culturais, desenvolveram uma forma cinematográfica comum, determinada por um fim singular: expressar artisticamente o Transcendente, bem como a própria natureza do medium cinematográfico. Ou seja, esses cineastas utilizam meios temporais precisos – ângulos de câmara, diálogos, montagem, etc – a fim de expressarem fins transcendentais.
Na “Introdução” à edição de 1972, Schrader reconhece explícita e implicitamente a dificuldade que a teoria cinematográfica enfrenta ao operar com o conceito de “transcendente”, tal a vastidão de significados que abrange e a imprecisão que comporta, já para não falar do carácter não-funcional do conceito. De resto, “estilo” é igualmente problemático, já que pode abranger todas as particularidades formais. No entanto, reconhece também que o terceiro conceito (“estilo transcendental”) é uma poderosa ferramenta crítica, indispensável no que concerne à obra dos três cineastas. De facto, não só considera que tal conceito é indispensável à compreensão total da obra desses autores, como afirma que saber o que significa “transcendental” e “estilo” é compreender o método crítico através do qual é possível analisar o estilo específico que configura e determina os filmes por eles dirigidos. Chega-se assim a uma fórmula que define “estilo transcendental”: uma forma geral de representação cinematográfica que expressa o transcendental. O método crítico assenta assim em duas premissas básicas: existem fenómenos hierofanicos [2] que são as expressões do transcendente na sociedade e existem formas de representação artística comuns, partilhadas por culturas diferentes. O estilo transcendental é cada uma delas e ambas em conjunto. A teoria geral que resulta da configuração e desenvolvimentos das duas instâncias é expressa por Schrader desta forma:
“O estudo do estilo transcendental revela uma forma universal de representação. Essa forma é notavelmente unificada: a expressão comum do Transcendente no cinema. As diferenças entre os filmes de Ozu, Bresson e Dreyer são culturais e pessoais; as similitudes são estilísticas, e representam uma reflexão unficada do Transcendente no cinema.”
 
[1] Schrader emprega o termo grego “stasis” no sentido de um equilíbrio entre diversas forças que conduz a uma situação estática.
[2] Muito daquilo que Schrader entende por hierofania sustenta-se na formulação  de Mircea Eliade, segundo a qual a hierofania demonstra como o transcendente se pode manifestar num objecto e ser reconhecido nesse objecto “como algo completamente diferente do profano” (Mircea Eliade, “O Sagrado e o Profano”, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p, 25). De resto, e indo ao encontro do pensamento de Schrader, Eliade afirma nessa obra: “A fim de indicarmos o acto da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cómodo, porque não implica qualquer precisão complementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimilógico a saber, que algo de sagrado se nos mostra”.
Substancialmente, o estilo transcendental, exemplificado no Oriente pela obra de Yasujiro Ozu e no Ocidente pelas de Robert Bresson e Carl Dreyer, procura maximizar o mistério da existência, rejeitando todas as representações convencionais da realidade: realismo, naturalismo, psicologismo, romantismo, expressionismo, impressionismo e, sobretudo, racionalismo. Nas próprias palavras de Schrader: “Para o artista transcendental o racionalismo é apenas um dos muitos modos de abordagem da vida, não um imperativo (Schrader, 1972, p. 42).
É importante sublinhar que ao longo do ensaio Schrader contrasta permanentemente o estilo transcendental dos cineastas estudados com outras formas de expressão artística: os filmes de Ozu são comparados com as artes Zen da pintura, jardinagem e “haiku”; os de Bresson com a iconografia bizantina e os de Dreyer com a arquitectura gótica, o que demonstra a determinação do autor de situar o seu conceito de estilo transcendental no seio de teorias estéticas anteriormente existentes (no que diz respeito às artes) e em doutrinas teológicas (no que diz respeito à meditação sobre o sagrado).
Sumariamente descritas a profundidade e riqueza das teses expostas no ensaio, interessa-nos agora referir uma importante metamorfose do texto, introduzida na segunda edição datada de 1998. Schrader incluiu nessa segunda edição um capítulo intitulado “Rethinking Transcendental Style”, no qual explica novamente o “método crítico” que criou e determina a sua evolução nos 26 anos que decorreram entre as duas edições: O influxo da obra de Andrei Tarkovski e do pensamento de Gilles Deleuze. Numa das secções deste novo capítulo, justamente intitulada “Enter Deleuze” (1998, p. 3-6), Schrader sublinha a capital importância das obras “Cinéma I – L’Image-Mouvement” e “Cinéma II – L’Image-Temps” [1], especialmente desta última, na comprensão da evolução do cinema no pós II Guerra Mundial, ou do desejo criativo de associar imagens no tempo e o modo como essa associação pretende comunicar com o inconsciente e a consequente relação com memórias, sonhos e fantasias. O principal impacto de pensamento de Deleuze na teorização de Schrader consubstancia-se no conceito de “duração” invocando o “Outro” sagrado. Se em “Transcendental Style” Schrader se pronuncia sobre as mensagens evocadas pelo estilo (transcendental), Deleuze acrescenta a explicação sobre o modo como tudo se processa.
Quanto a Tarkovski, Schrader considera que , tal como Deleuze, o cineasta procurou incorporar a mudança de paradigma  introduzida pela evolução do uso do tempo no cinema (e a consequente estilização desse uso). Em conjunto, a obra do filósofo e os filmes do cineasta sociético estão no centro de um novo paradigma cinematográfico que se expande em múltiplas direcções e confere novos significados aos conceitos de “transcendental”e “estilo” e ao conceito unificador de “estilo transcendental”.
Para finalizar, deixamos um desafio aos leitores da obra, sob a forma de uma pergunta para a qual cada um encontrará a sua resposta: o que é que se torna pertinente para uma compreensão secularizada do “estilo transcendental” quando o conceito de “hierofania” ainda puder ser aplicado a objectos depois de todas as conotações religiosas terem sido removidas?


 
Arnaldo Mesquita
 

Texto originalmente publicado na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema

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