terça-feira, 13 de maio de 2008



LE JOLI MAI

1968 foi tudo menos um ano vulgar: para além da revolta francesa, a História regista a Primavera de Praga, a ofensiva do Tet na Guerra do Vietname, o endurecimento das operações das forças portuguesas nas colónias africanas - abertamente contestadas nos fóruns políticos e diplomáticos internacionais, na esteira de uma generalizada contestação do regime político e colonial português - o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, a queda de Salazar de uma cadeira providencial, o início dos movimentos que haveriam de fazer dos anos 70 uma espiral de revolta armada, terrorista e sanguinária (ETA, Brigas Vermelhas, Fracção do Exército vermelho, etc.). Nada que se coadune com o espírito do "flower power" e o seu apogeu californiano. À distância de 40 anos (le bel âge !), creio que o Maio de 68 constitui o acontecimento mais irónico e paradoxal do século XX: sendo fracturante (termo muito em voga nos nossos dias e cuja génese se situa precisamente em 68) e uma clara ruptura, veio a tornar-se um veneto propiciatório de todos os encontros, já que todos foram convocados: os anónimos lançadores de pedras e construtores de barricadas, de Gaulle e Cohn-Bendit, operários e burgueses, obrigando-os a olharem para si próprios e a tomarem decisões, despertando-lhes o ânimo amodorrado por duas décadas de crescimento económico, inegável bem-estar e uma perspectiva de futuro cinzento, sem rasgo, nem outra ambição senão a de construir e manter eternamente o mesmo estado de nirvana burguês. Em suma: o grande tédio, o imenso vazio.

Alain Glücksman chamou-lhe "revolução filosófica". Ele sabe, concerteza, do que fala. Creio que quer dizer que Maio foi cultural, antes de ser político, exigência de uma outra vida antes da reinvindicação de outro sistema económico e político. Difusa, confusa, evanescente e omnipresente, a herança do Maio de 68 é o símbolo da sua veradeira natureza: a de uma revolução do interior, de uma inversão do vivido, de uma insurreição individual, e não uma epopeia colectiva à maneira do "assalto ao Palácio de Inverno" que muitos, a começar pelos comunistas/estalinistas que tinham acabado de aplaudir vibrantemente o esmagamento da revolta de Praga, desejaram. Pelo contrário, os protagonistas, passada a retórica revolucionária inflamada, nunca quiseram construir uma grande narrativa nacional, ou um mito refundador da nação assente numa nova ordem política directamente inspirada nos totalitarismos e emergente das ruínas da República. A prova disso é que os principais intervenientes do Maio francês, longe de se terem retirado e reconvertido, como pretendem os miseráveis revisionistas de diversos quadrantes ideológicos, continuaram pelo contrário as suas lutas pelas reformas sociais, mentais, económicas e políticas, noutros contextos, institucionais ou não, locais, regionais, europeias, pan-europeias, ou o que quer que seja. Por tudo isso, encaro o "joli Mai" como a grande insurreição democrática do século XX, aquela que abriu todas as portas, messiânica e libertária, criadora de um indivíduo que, sem deixar de o ser, já não está isolado, nem é indiferente, mas consciente e preocupado com o seu destino social e que participa, comunica e intervem. De sujeito passivo da História passou a agente da mesma, cumprindo enfim o ideal do cidadão forjado durante a Revolução que, não por acaso, também foi Francesa.

Assim, a brecha histórica aberta em Maio de 68 nunca se fechou, apesar do prosaísmo pequeno-burguês que a pretende encerrar definitivamente na galeria das curiosidades históricas "com muita piada" enquantou durou mas que, graças a Deus, durou pouco e foi inconsequente. os belos espíritos que hoje o proclamam (exactamente os mesmos que cantam as loas do fim da História e das ideologias) nesse modo corriqueiro e merceeiro, esquecem que é esse lado cultural, político, filosófico, de uma imensa energia criativa que hoje continua a fazer-se sentir. Por vezes, silenciosamente.

1 comentário:

Carlos Lopes disse...

É mesmo isso, silenciosamente... schhhiiiiiuuuuu