Se não houvesse espaço para uma pausa tudo seria muito mais
difícil de aguentar. De vez em quando fazemos uma. Esquecemos o mundo e a vida
por umas horas e juntamo-nos como costumamos fazer há uma vida inteira. Um
jantar, um jogo de futebol na televisão e umas garrafas de vinho. As conversas
de sempre que nunca se repetem, algumas memórias trocadas, a novidade dos netos
para alguns. O nosso pequeno mundo construído em conjunto ao longo de décadas,
a nossa bolha onde nada nos pode acontecer enquanto estivermos juntos, cada um
vigilante do seu canto na mesma casa. Depois de levantar a mesa e colocar a
louça na máquina, depois dos cafés, os sofás da sala e uma garrafa de whisky
irlandês para ver o resumo dos golos. Por fim a breve assembleia com um único
ponto na ordem de trabalhos: “O que é que vamos ouvir hoje?” E em breves
instantes é eleita uma banda, um concerto para a continuidade do serão.
É sempre bom fazer uma pausa e falar um pouco à mesa do
jantar com esta família onde todos têm lugar, onde todos se conhecem à
exaustão, não havendo por isso, espaço nenhum para surpresas. Uma espécie de
lar que fica na casa de cada um quando nos encontramos. Uma breve conversa e um
longo silêncio porque não é preciso acrescentar mais nada que não se saiba já.
Fica a música e a garrafa de whisky irlandês em cima da mesa, ficamos nós em
cima do sofá com os gatos a passear pelos nossos colos como vigilantes do turno
da noite a certificar que tudo está a correr bem. E por vezes viajamos dali
para uma praia onde fomos adolescentes e corríamos o dia todo como selvagens
sem nunca nos cansarmos, do mar para a areia, da areia para o mar, da mata a
apanhar paus para uma fogueira, de uma paixão para a outra. Mas sempre nós,
tribo antiga e solidária, especialista em pausas, especialistas em horas de
alegria e bem estar. Ou continuamos a viajar com o Rock em som de fundo e vamos
parar ao recreio da escola, à bicicleta que batia todos os recordes, às motas.
Estremeço e regresso ao sofá. A Joana cabeceia o vazio de olhos fechados,
depois acorda também. Olhamos um para o outro e sorrimos. O Pedro e a Mariana
discutem acerca da utilização do comando da televisão. São onze da noite e
parece que já são duas. Conseguimos ainda ouvir mais uma música antes de
começarmos a sinfonia do Uber para nos levar a casa. Despedimo-nos uns dos
outros entre risota e bocejos. Atiramos datas prováveis para o próximo encontro.
Abraços e beijos e vamos indo que temos pressa de nos deitar.
A filha do Pedro um dia perguntou-me se tinha alguma ideia
em relação ao segredo da longevidade da nossa amizade. Ao todo seremos uns dez
ou quinze que se conhecem desde a adolescência, outros ainda mais atrás. Não foi
preciso reflectir muito e a resposta saiu-me no automático :
“Acho que foi tomarmos conta uns dos outros…” respondi.
Se não foi isso que decidimos foi aquilo que fizemos ao
longo de uma vida inteira. Não é interesse, não é amor, não é tristeza nem
solidão. É algo muito maior que nos fez ter sempre a mão estendida para o outro,
a observação distante mas atenta, a disponibilidade, a palavra solidária no
tempo necessário. É qualquer coisa enraizada entre a tribo e a família e ao
mesmo tempo muito mais antiga que a nossa própria noção de existência. Por
vezes não foi suficiente e houve um ou outro que teve que sair mais cedo.
Quando a força do exterior foi superior à nossa.
Nascemos numa realidade caótica e difícil de compreender,
atravessámos essas terras do caos em quase toda a nossa existência e
dificilmente teríamos sobrevivido se não nos tivéssemos uns aos outros . Não
conseguimos compreender a morte mas isso pouco importa porque também nunca
compreendemos a vida. Sairemos daqui no meio do caos e da destruição tal e qual
como entrámos. Não interessa. Cá dentro de mim há algo que me diz que os que
foram à frente vão estar à nossa espera para continuarmos o caminho. E também
me parece que nesse trajecto não vão faltar concertos de Rock e whisky irlandês.
Artur
Imagens de Luis Pereira
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