terça-feira, 19 de outubro de 2021

A NOITE SANGRENTA, CEM ANOS DEPOIS


 

Passam hoje cem anos sobre uma trágica data da nossa História recente onde, na sequência de um golpe de estado, um aparentemente indisciplinado e selvático grupo de soldados do lado vitorioso deu largas a uma série de execuções de personalidades políticas e militares da época. Nos anos noventa resolvi tentar escrever a história desses acontecimentos e transformar esse trabalho no argumento para uma longa-metragem. Enquanto argumento o filme ganhou dois prémios embora nunca tenha conseguido passar à fase seguinte, isto é, à produção e conversão em imagens. Deixo-vos a sua expressão mais curta em forma de texto (Sinopse) enquanto modesto contributo de homenagem às vítimas e, principalmente, em homenagem a uma mulher incrível (Berta Maia) que nunca descansou enquanto não descobriu a “mão” por trás dos acontecimentos aparentemente fortuitos que de fortuitos nada tinham.

Este trabalho foi escrito em parceria com o cineasta João Matos Silva.

 

Artur Guilherme Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

A NOITE SANGRENTA

 

                                   (Sinopse)

 

 

   No dia 19 de Outubro de 1921 a jovem República fundada com a Revolução de 1910 sofria mais um rude golpe. Na sequência de um tempo atribulado, sem soluções duradouras e eficazes, com a falência da credibilidade das instituições, golpes de estado e governos sucediam-se a uma cadência alucinante.

   Três anos depois de uma participação activa na I Guerra Mundial, pouco reconhecida na Conferência de Paz pelas potências europeias vencedoras, dois anos após o assassinato de um dos mais carismáticos presidentes da república, Sidónio Pais, e com uma situação económica cada vez mais enfraquecida pela corrupção e pela subida da inflacção, a sociedade portuguesa cada vez mais dividida, atravessa um período difícil da sua História marcado pela errância e pelo acaso, ao sabor das suas próprias convulsões.

   Na noite que se seguiu ao golpe de 19 de Outubro de 1921, cinco personalidades públicas prestigiadas são barbaramente assassinadas por tropas revolucionárias indisciplinadas, aparentemente desirmanadas da sua cadeia de comando. O Presidente do Ministério (Primeiro Ministro), que assina a sua demissão pelas 13 horas do dia 19 acaba por ser assassinado no Alfeite da Marinha nessa mesma noite. Para além do dr. António Granjo, homens como o Almirante Machado Santos, herói revolucionário do 5 de Outubro de 1910 e várias vezes Ministro, o Comandante Carlos da Maia, o coronel de cavalaria Botelho de Vasconcellos e o Comandante Feitas da Silva juntam-lhes os seus nomes numa macabra lista que terá sido tudo menos obra do acaso, levantando desde o início sérias e preocupantes dúvidas quanto à sua origem.

Comovendo a sociedade portuguesa de uma forma global, a “Noite Sangrenta”, como ficou conhecida, tomou assento durante algum tempo, quer nos jornais, quer nos tribunais durante o julgamento. Desde as campanhas públicas a favor dos familiares das vítimas até às mais díspares e inflamadas afirmações, a “Noite Sangrenta” marcou de forma profunda todos aqueles que viveram nesse tempo. Após os funerais e os traumas, todos se empenharam no apuramento das responsabilidades dos trágicos acontecimentos daquela noite de má memória. Em circunstâncias pouco usuais, o Tribunal Militar de Sta. Clara será palco para o julgamento presidido por um tribunal misto, civil e militar. Para além de um júri composto por cinco oficiais generais, o tribunal é presidido pelo General Camacho tendo como auditor o dr. Almeida Ribeiro e como Promotor de Justiça o General Carmona, mais tarde Presidente da República. Suspensa na imprensa da época a sociedade portuguesa vai seguindo atentamente o desenrolar dos acontecimentos.

   Precisamente por ser só quase nos jornais que se encontra concentrado o material de pesquisa histórica referente à “Noite Sangrenta”, o único personagem ficcional que integra o filme desde o princípio é um jornalista. Desde o golpe de estado que ele acompanhará a evolução dos acontecimentos. As suas dúvidas e os seus raciocínios estabelecem a ligação entre o entendimento do espectador e o desenrolar da acção.

 

II

   O processo terá vários julgamentos, sendo apenas dois exclusivamente referentes à “Noite Sangrenta”. Num serão julgados os oficiais revolucionários responsáveis pelos seus subordinados, bem como pela segurança e ordem nas ruas da cidade no decorrer do golpe de estado. Noutro, o grupo dos praças um oficial e dois sargentos, todos eles tripulantes da tragicamente famosa “Camionette Fantasma”, uma carrinha utilizada para transportar algumas das vítimas desde as suas residências até às execuções. Se no primeiro caso, por falta de provas, todos serão absolvidos, no segundo as penas aplicadas reflectem o reconhecimento da autoria material dos crimes.

   Desde sempre que no grupo de guardas e marinheiros que compunham a “equipa de extermínio” se destaca um líder. Trata-se do Cabo marinheiro Abel Olímpio, o “Dente de Ouro”, principal instigador e orientador das movimentações do grupo. Durante o julgamento negará todas as acusações em bora acabe por ser condenado a vários anos de prisão.

  

 

III

   Após o julgamento, Berta Maia, a viúva de uma das vítimas, o Comandante Carlos da Maia, não se satisfaz com a execução da justiça sobre o homem que lhe levou o marido de casa pela última vez. Convencida de que os crimes perpetrados com arrepiante minúcia na escolha das vítimas não foram obra apenas de um bando de marinheiros embriagados, a viúva perseguirá o “Dente de Ouro” no seu cativeiro em busca da verdade. Durante várias conversas entre os dois, já no ano de 1926, assassino e viúva da vítima estabelecem uma curiosa relação de remorso e persistência que é a o mesmo tempo um enorme combate entre a vontade de descobrir a verdade e a consciência do verdugo. Ao longo das sessões que se prolongarão entre Maio e Novembro de 1926, desgastado pela determinação da viúva o “Dente de Ouro” vacila e acaba por fazer importantes revelações a propósito dos acontecimentos em que tomou parte. Embora algumas delas já fossem conhecidas, outras houve que vêm a revelar uma elaborada conspiração preparada muito antes dos trágicos acontecimentos. A lista das vítimas a abater não só existia como era muito mais extensa, e só não foi cumprida porque muitos levaram a sério as ameaças de que foram alvo. A conspiração era maioritariamente de carácter monárquico, apadrinhada por um jornal lisboeta, por dois importantes capitalistas e por um padre que contratava os assassinos.

   Dos vários nomes referidos pelo “Dente de Ouro” à viúva de Carlos da Maia nenhum foi importunado. A sociedade portuguesa estava satisfeita com a sua prestação de justiça e não admitia que factos novos tivessem a relevância suficiente para reabrir os inquéritos. A cronologia histórica também não é favorável. As conversas entre a viúva e o assassino do seu marido começam no mês em que ocorre a revolução que pôs termo à República e dará origem ao estabelecimento de um regime autoritário de ditadura que irá durar até aos anos 70.

   Nas suas memórias Berta Maia escreveu:

 

  “Não, o Abel Olímpio foi apenas um instrumento! Ele não foi o criminoso. Infinitamente piores do que ele foram esses que o aliciaram, que lhe deram dinheiro, que o incitaram à matança e que o abandonaram num cárcere.

   Falo para Deus e para o meu filho que um dia saberá compreender quanto fiz para esclarecer a razão da morte do meu sacrificado marido, mas estou certa que muitos corações imaculados de ódio – que ainda os há, felizmente na nossa terra – saberão sentir a razão de ser suprema destas páginas que, mais do que um protesto, são um desabafo.”

 

   Talvez por razões de pudor histórico a “Noite Sangrenta” tem sido sistematicamente evitada ou superficialmente abordada nos compêndios de História. No entanto o seu estudo revela-se de uma importância acutilante se quisermos perceber o fim do regime republicano democrático e a instauração do regime totalitário que se lhe seguiu.

   Conspiração monárquica vingativa integrada por um jornal lisboeta dirigido por um padre suspeito, aristocratas e capitalistas, ajuste de contas antigas entre elementos republicanos resultante de combates entre linhas adversárias da própria Maçonaria, a “Noite Sangrenta” foi antes de mais o último golpe mortal que lançou o descrédito total sobre um regime que se aproximava a passos largos do seu fim.

   Ao pretender representar este trágico episódio da história portuguesa do princípio do século XX, presta-se justa homenagem àqueles que foram prematuramente varridos pelos ventos da História, bem como à coragem de uma mulher que contra tudo lutou para saber quem foram os mandantes da sua desgraça.

 

 

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