sexta-feira, 26 de novembro de 2021

DA BANDA DE AQUÉM

 Vigésimo quarto dia do décimo primeiro mês de dois mil e vinte e um. Ontem à noite os relâmpagos voltaram sózinhos a iluminar as copas das árvores que emolduram a janela do quarto. No princípio da madrugada já Júpiter brilhava na terceira vidraça superior sem nuvens a atrapalhar. É assim viver no princípio da banda de além, é ficar mais aquém de cada fenómeno que antes só se revelava através de filmes de oito milímetros, ou de histórias contadas pelos avós mais antigos. Muitas vezes me vem o impulso a que não cedo de tapar os espelhos da casa. Os olhos curiosos dos animais sossegam-me e quando há sinal de perigo é atrás de mim que se escondem. As gatas da cidade são agora leoas ferozes que me agradecem com ratinhos, grilos e baratas. Felizmente tive uma mãe comparável à maior maga das ciências naturais. Treinou a sua única filha para lidar com todos os seres vertebrados e invertebrados, de sangue quente e de sangue frio. Costumava amarrar um cordel à cauda dum murganho para eu poder passear com ele ou a apanhar lagartixas dando um nó de corrediço nas ervas mais compridas. Tornei-me uma pescadora exímia de lagartixas ao sol. No dia em que resolvi lavar as minhocas na banheira da casa acho que percebeu que a minha curiosidade seria sempre maior do que o meu pudor. Tinha então três anos e só tinha medo da sombra nas escadas para o segundo andar. Hoje até as sombras são sempre o lado onde a luz está por chegar.

A chuva voltou com força enquanto preparo o primeiro assado deste forno. Continuo com a sensação de estar isolada do resto do mundo das notícias que não vejo nem leio. Por tal alheamento descobri há pouco que a nossa amiga e colega está a necessitar de cuidados por causa do malfadado vírus. Os meus pensamentos e orações estão na tua direção, minha querida, e já te ouço a trautear umas notas de Alcafozes ao Loreto. Os padres italianos que se preparem.
Entretanto lembrei-me dos idos anos 90 do século passado. Eu com menos que meia dúzia de anos de voo e um passageiro conhecido orador seropositivo. Ele sentou-se por engano no lugar de descolagem e aterragem de tripulação na coxia da fila da janela de emergência do Boeing 737. A colega desse lugar pediu-me para lhe dizer que ele estava enganado e disse-me que não queria sentar-se nesse lugar. Perguntei se estava com medo de alguma coisa e ela respondeu-me que não queria apanhar SIDA. Ofereci-me para fazer a descolagem e aterragem no lugar dela,informei o senhor que o lugar dele era ao meio e que se poderia sentar na nossa coxia durante o voo. Não me lembro do nome dele nem dela. Tenho demasiados amigos engolidos por esse virus tão medonho como castigador e sempre soube que não era por partilharmos uma cadeira, assim como sempre soube que não engravidamos pela graça de nos sentarmos na mesma sanita do namorado. Éramos muitos no escritório voador e felizmente eram poucos os que padeciam de falta de informação e sensibilidade.
As rajadas de vento têm vindo a aumentar. O meu lençol já secou e molhou-se umas seis vezes. A toalha já resvalou a nau catrineta. O cão continua a achar que ao pé de mim as tempestades não o afetam. Eu continuo a achar que ao pé dele também não.
Estar a fazer o quê neste fim do mundo é o que me perguntam às vezes. A maior parte das vezes nem ouvem a resposta. Da banda de além à banda de aquém é num ai. Vale tanto a soma como o que se subtrai.
O forno já está aprovado para o mês que vai entrar. As pinhas já estão espalhadas pela mata. A noite caiu agora que me levanto. Nem a senti, nem ela a mim. É assim.
Elsa Bettencourt

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