quinta-feira, 18 de novembro de 2021

AUTOVOUCHER OU A ALEGORIA DO FILHO DO PADEIRO

 



Na aldeia onde passo agora a maior parte do tempo, o padeiro costuma passar uma vez (às vezes duas) em passeio triunfal, qual parada medieval de outrora. Estaciona na cabeceira da rua principal e agarra-se à buzina como se quisesse anunciar um ataque nuclear eminente, tendo as pessoas dois minutos para correr para o abrigo. Aguarda uns instantes que os idosos se aproximem munidos do porta-moedas e do saquinho de plástico, fica ali a dar dois dedos de conversa e arranca até ao outro extremo da rua para repetir o ritual. Buzinadela estridente e prolongada, aproximação da população idosa, o estado do tempo, o futebol e ala para a próxima aldeia. Confesso que ao princípio me assustava tanta algazarra desnecessária quando uma simples combinação de horário poderia resolver a questão. Depois comecei-me a habituar com espasmos cada vez menos pronunciados e palavrões em escala decrescente.

Nos últimos tempos o padeiro deixou de vir diariamente, talvez por ter outros afazeres, talvez porque resolveu abrandar o ritmo da volta às aldeias. Em seu lugar mandou o filho, um miúdo tranquilo que aproveita as horas vagas da escola embora muito menos sociável do que o pai. O ritual não mudou a não ser na rapidez com que se desenvolve. É que isto de atender o público não é uma capacidade inata em ninguém…leva o seu tempo. Há sempre aquele cliente que reclama das carcaças que comprou ontem, o outro que deita um longo olhar para dentro da caixa da carrinha para de seguida se pôr a pedir aquilo que não há, já para não falar na epopeia dos trocos que, como todos sabemos, além de difíceis de arranjar ninguém parece ter. O rapaz chega à entrada da rua, agarra-se à buzina da carrinha como se não houvesse amanhã e, logo de seguida, arranca em direcção à outra ponta da rua. Os primeiros potenciais compradores têm apenas tempo para pôr o nariz de fora para se aperceberem que se quiserem pão vão ter que ir à padaria.

Ao fim do dia não faço ideia que contas é que pai e filho farão e qual o balanço diário da padaria itinerante. Mas a atitude do filho do padeiro faz-me lembrar o “autovoucher” do Governo para minimizar o impacto do aumento dos combustíveis. Por cada pipa de massa que gastar a consumir o seu combustível, traga a factura e troque por um apoio…zinho de 0,00005 %.

Ou seja, o consumidor é toureado com todo o cenário que indica precisamente o contrário. Temos padaria, temos serviço itinerante ao cliente…o que não temos é pão.

Faz lembrar uma piada antiga do Herman José em que era anunciado um concurso de sugestões para acabar com a burocracia. Quem quisesse participar teria que enviar um formulário devidamente preenchido com uma exposição de quinze páginas a explicar porque é que se devia acabar com a burocracia, acompanhado de uma fotografia de corpo e meio junto a um pastor alemão albino.

O chefe do governo e alguns dos seus ministros podem personificar a relação do padeiro e do seu filho. Um mais diligente, ou mais calculista, outros mais incompetentes, mais apressados, menos atentos. Ao fim do dia a panificadora terá que fazer o balanço das diversas estratégias aplicadas e assumir as falhas do sistema. Mais depressa ou mais devagar, em loja fixa ou itinerante. Os consumidores cá estarão, sempre os mesmos, com a mesmas necessidades de comer pão todos os dias. Se não nesta padaria…noutra qualquer…

Artur


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