segunda-feira, 20 de setembro de 2021

PESCADOR DE INSTANTES

 



 Saio a horas desencontradas e percorro as ruas da cidade. Umas vezes tropeço nas sombras, outras fico especado perante a avalanche de movimento e ruído em determinados locais. A câmara do telemóvel vai sempre ligada até acabar a bateria. No regresso já em casa, selecciono aquilo que julgo aproveitável. Há no entanto em tudo isto uma estranha sensação distanciada de estar a registar uma realidade da qual já não faço parte. Antigamente saíamos oito, dez, quinze pessoas e uma câmara de vídeo, passávamos uma noite inteira nas docas com um carro alugado e uma autorização num papel oficial para poder filmar…e no fim tínhamos um documentário, uma curta, um clip de uma banda. Hoje saio eu sozinho com um telemóvel e chego ao fim e não tenho nada além de um tremendo vazio. Há emoções, há comédia e drama mas falta sempre qualquer coisa. Há edifícios antigos e humanoides saídos das rábulas mais imaginativas; há luzes e sombras que bailam entre si como sempre houve; há gajos que sorriem para a objectiva ou que lhe mostram o dedo do meio; há solidão, há muitos a falar sozinhos… mas falta sempre qualquer coisa. Acho que falta força, intensidade, esperança. Acho que falta Vida essencialmente. Não por considerar morto este tempo mas talvez por me ter matado a mim. Ligo a alguém de vez em quando. Alguém que filmou comigo.

 

Vi este cenário na Baixa Pombalina e lembrei-me daquela vez em que pusemos o Pesssoa a cambalear a caminho de casa a chamar o Ricardo Reis. Devias ter visto. Um gajo de oculinhos e gabardina coçada aos tombos.

 

Ou ligo a outra

 

Estou na Rua onde fizemos aquele clip com a chuva artificial da mangueira dos bombeiros. O quartel já não existe. Lembras-te da seca que foi segurar aquela mangueira e regar o casal de namorados para fazer crer que era chuva?

 

Às vezes lembram-se, outras limitam-se a esconder-se naquela expressão

 

É pá…isso já foi há tanto tempo…

 

Cumprimento um bêbado a caminho de casa, contemplo a árvore de Natal das luzes da cidade sobre o rio, faço o reconhecimento de novos espaços que nunca conheci apesar de viver nesta cidade desde que nasci. Volto para casa.

Lembramo-nos todos de muita coisa, ou de coisa nenhuma, a vontade de voltar a fazer foi ficando cada vez mais pequena, o tempo encolheu e deixou-nos no seu lugar um sujeito macambúzio sem expressão, um substituto sonolento e mandrião. Sobram as imagens e os sons, sobram os ângulos da cidade, sobra tanta coisa e não se consegue aproveitar nada.

Ponho as imagens a correr e vou selecionando como um funcionário diligente em frente a uma pilha de documentos. As paisagens, as caras, os sons, está tudo muito bem mas falta qualquer coisa. A ideia de documentário a surgir e a afogar-se num mar de gente adormecida, cabeça caída sobre as redes. Os textos sobrevivem às cinco primeiras linhas, as imagens têm cinco minutos de atenção. E as cabeças saltam de imediato para o texto seguinte, para o filme que se segue. Sons e imagens rodam no teclado como papel higiénico no pendurador. Rasga, limpa, deita fora, e volta tudo a rolar, rasga, limpa, deita fora. Não há paragens, não há silêncios, mas apenas um frenesim eterno e inconsequente que não consegue reter nada. Um míssil disparado que não pára, não regista nem consegue comunicar.

Volto às imagens na tentativa de construir alguma coisa com elas. Tal como com as palavras. Mas falta sempre qualquer coisa. Naquele rosto, naquela paisagem, naquele movimento. Sento-me para trás e não consigo afastar-me, não consigo deixar de tentar juntar “qualquer coisa em forma de assim”, como dizia o O’Neil.

Não são as imagens que não têm vida…É a vida que se vai esgotando dentro de mim…

 

Artur


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