Julgamos que a personalidade e a obra de José-Augusto França dispensam apresentações. No entanto, convirá relembrar alguns factos que, a vários títulos, permitem valorar e sublinhar a importância e a qualidade da reflexão de um dos ensaístas que, ombreando com Eduardo Lourenço, melhor e mais profundamente cartografou a modernidade e a contemporaneidade portuguesas. O facto de ser um “estrangeirado”[1] conferiu-lhe uma distância crítica em relação à realidade artística e social portuguesa que atribuiu às suas análises uma desapaixonada acuidade e construiu um ponto de vista relativamente descomprometido, na justa medida em que tal é possível, face à natureza e às determinações do objecto de estudo. Como veremos, em José-Augusto França há sempre uma tensão para, um intendere que coloca sempre em primeiro plano o seu intendum. A esse propósito, citamos a nota de Roland Barthes no relatório do júri que apreciou a tese L’Art Dans La Société Portugaise du XXe Siècle[2], apresentada em 1963 à École Pratique des Hautes Études (Paris) para a obtenção do diploma do curso de Sociologia da Arte:
«O autor deu um duplo objectivo ao seu trabalho: por um lado quis esclarecer as relações profundas da arte e da história política de Portugal desde o século XIX; e por outro examinar as reacções de um pequeno país aos principais movimentos da pintura europeia. Quanto às relações entre a arte a história, J.-A. França evitou sempre pôr em equação um conteúdo estético e um conteúdo histórico; preferiu confrontar ritmos, mostrando que os avanços do modernismo (futurismo ou surrealismo) corresponderam em cada caso, a uma crise das instituições. O autor aborda assim, de uma maneira concreta, dois problemas históricos importantes: o dos “períodos”, “durées” ou estruturas, e o dos “atrasos” de civilização.»
Menos conhecido será, talvez, o papel desempenhado por França na constituição, desenho e desenvolvimento da secção cinematográfica do JUBA (Jardim Universitário de Belas Artes). A esse propósito, remetemos o leitor para os números 16 e 21 desta rubrica Textos & Imagens, nos quais se explicita com algum pormenor a acção do ensaísta nessa organização e nas suas actividades.
À obra que hoje nos ocupa – Dez Anos de Cinema – não são estranhos, muito pelo contrário, as duas vertentes do labor multifacetado do autor (ensaio, romance, intervenção pública, etc.), nem os pontos de vista que desenvolveu no decurso da sua colaboração com o JUBA, como esperamos demonstrar ao longo deste texto.
A primeira nota a reter é o facto de França tender a considerar infrutíferas quaisquer tentativas de pensar a modernidade prescindindo do cinema, e tal tese é sustentada pelo período cronológico abrangido, constituído por textos publicados na revista Seara Nova entre 1949 e 1959, precisamente “quando o cinema começou a ser moderno”. Esta tendência é vincada pelo próprio autor na breve Introdução:
«Começados há dez anos, quando a crítica cinematográfica decente, em Portugal, quase se limitava a um nome, o de Roberto Nobre, terminam-se estes balanços agora, na altura em que parece estar a nascer uma nova crítica. Eles cobrem um período, por assim dizer intervalar, durante o qual se gerou e desenvolveu o movimento dos cineclubes e ao fim do qual despontou uma gente mais nova, de formação cineclubista e com interesses culturais, estéticos e sociológicos alargados, uma consciência crítica atenta aos valores da modernidade.» (pp. 7-8)
Ou seja, todo um programa contido num único parágrafo: por um lado, a consciência da pobreza (ou, talvez, da ingenuidade e desatenção) da crítica cinematográfica portuguesa, cujas lacunas estes modestamente designados «balanços» parecem destinados a colmatar; a percepção do limiar de uma nova era que corrigirá a anterior através da emergência de uma nova geração oriunda do cineclubismo (França confere aos cineclubes uma ímpar importância pedagógica e formativa); a noção da relação determinante do cinema com as dimensões estética, cultural e sociológica e, como já referimos, a inextricável valorização da arte cinematográfica na compreensão e interpretação da modernidade estética e sociológica.
«O autor deu um duplo objectivo ao seu trabalho: por um lado quis esclarecer as relações profundas da arte e da história política de Portugal desde o século XIX; e por outro examinar as reacções de um pequeno país aos principais movimentos da pintura europeia. Quanto às relações entre a arte a história, J.-A. França evitou sempre pôr em equação um conteúdo estético e um conteúdo histórico; preferiu confrontar ritmos, mostrando que os avanços do modernismo (futurismo ou surrealismo) corresponderam em cada caso, a uma crise das instituições. O autor aborda assim, de uma maneira concreta, dois problemas históricos importantes: o dos “períodos”, “durées” ou estruturas, e o dos “atrasos” de civilização.»
Menos conhecido será, talvez, o papel desempenhado por França na constituição, desenho e desenvolvimento da secção cinematográfica do JUBA (Jardim Universitário de Belas Artes). A esse propósito, remetemos o leitor para os números 16 e 21 desta rubrica Textos & Imagens, nos quais se explicita com algum pormenor a acção do ensaísta nessa organização e nas suas actividades.
À obra que hoje nos ocupa – Dez Anos de Cinema – não são estranhos, muito pelo contrário, as duas vertentes do labor multifacetado do autor (ensaio, romance, intervenção pública, etc.), nem os pontos de vista que desenvolveu no decurso da sua colaboração com o JUBA, como esperamos demonstrar ao longo deste texto.
A primeira nota a reter é o facto de França tender a considerar infrutíferas quaisquer tentativas de pensar a modernidade prescindindo do cinema, e tal tese é sustentada pelo período cronológico abrangido, constituído por textos publicados na revista Seara Nova entre 1949 e 1959, precisamente “quando o cinema começou a ser moderno”. Esta tendência é vincada pelo próprio autor na breve Introdução:
«Começados há dez anos, quando a crítica cinematográfica decente, em Portugal, quase se limitava a um nome, o de Roberto Nobre, terminam-se estes balanços agora, na altura em que parece estar a nascer uma nova crítica. Eles cobrem um período, por assim dizer intervalar, durante o qual se gerou e desenvolveu o movimento dos cineclubes e ao fim do qual despontou uma gente mais nova, de formação cineclubista e com interesses culturais, estéticos e sociológicos alargados, uma consciência crítica atenta aos valores da modernidade.» (pp. 7-8)
Ou seja, todo um programa contido num único parágrafo: por um lado, a consciência da pobreza (ou, talvez, da ingenuidade e desatenção) da crítica cinematográfica portuguesa, cujas lacunas estes modestamente designados «balanços» parecem destinados a colmatar; a percepção do limiar de uma nova era que corrigirá a anterior através da emergência de uma nova geração oriunda do cineclubismo (França confere aos cineclubes uma ímpar importância pedagógica e formativa); a noção da relação determinante do cinema com as dimensões estética, cultural e sociológica e, como já referimos, a inextricável valorização da arte cinematográfica na compreensão e interpretação da modernidade estética e sociológica.
[1] Doutoramento em Letras e Ciências Humanas pela Universidade de Paris-Sorbonne (tese Le Romantisme Au Portugal – Étude de Structures Socio-Culturelles), Doutoramento em História pela mesma Universidade (tese Une Ville des Lumières: la Lisbonne de Pombal, editada pela École des Hautes Études, diploma em Ciências Sociais-Sociologia da Arte pela École Pratique des hautes Études.
[2] A tese foi traduzida em português e publicada em 1978 pela editora Livros Horizonte, com o título A Arte e a Sociedade Portuguesa no Século XX.
A nível de estrutura, estes balanços – como França os designa, embora o seu carácter vá muito para além daquilo que como tal se costuma designar – são anuais e compreendem a evocação que nesse período temporal o impressionou positiva ou negativamente na produção nacional e internacional, enquadrando sempre as obras no contexto social, político e cultural em que foram produzidas e avaliando o seu impacto na definição da modernidade nos termos que temos vindo a referir. Nesse sentido, a visão de França em relação ao panorama cinematográfico português, anterior ao chamado “cinema novo”, é amarga e pessimista, como se pode constatar na seguinte declaração:
«Cinema português, não. Perdido em problemas económicos e anedotas financeiras, ele tem aos ombros a tragédia da falta de gente que o realize. Que venha outra, nova, porque a que há (e exceptuando Manuel de Oliveira), de todo em todo não presta.» (p. 204)
Para compreender este diagnóstico, ou este retrato em tons negros da cinematografia nacional, é preciso ler de fio a pavio cada um dos «balanços» e verificar o modo exigente como o autor avalia em cada ano a produção portuguesa, a sua aflitiva indigência de meios económicos e expressivos, a falta de argumentos sólidos e a ausência de autores, sobretudo quando contrastada com as realidades europeia e norte-americana; uma tendência que é marca de água da sua metodologia analítica e que é expressa em termos definitivos na nota de Roland Barthes que acima reproduzimos. Como se compreende, França aplica ao cinema a mesma metodologia que emprega na avaliação da situação e evolução da arte portuguesa ao longo do século XX: sempre em relação de oposição ou tentativa de confluência com as suas congéneres de outras latitudes.
De qualquer modo,a sua finíssima intuição apresenta-lhe já o obrigatório e iminente surgimento de uma nova geração, de novas perspectivas, enfim, de autores capazes de iniciarem uma revolução no estado de coisas da nossa cinematografia. Como sabemos hoje, essa intuição foi certeira e realizou-se. Aliás, é no próprio devir do cinema que França encontra a sua maior virtude modernista; reconhecendo que todo o saber, independentemente do seu objecto, é sempre provisório, admite que a arte cinematográfica tem um significado sociológico imediato, comprometido e indomado, tornando-se assim um elemento fundamental da fenomenologia do século XX e remetendo para uma atenção constante a esse sociológico que atravessa todos estes «balanços»: o sociológico é aqui sociologia do espectador, patente na seguinte afirmação:
«Feito para o público “que tem sempre razão” pelo que quer e pelo que necessita, ele cria-lhe os desejos e as necessidades. Elemento número um de uma mito-sociologia actual, o cinema rodeia-nos invisivelmente, explica-nos o mundo, enche-nos o sonhar colectivo, espreita-nos e fabrica-nos.» (p. 194)
Outra característica determinante no pensamento do autor no que diz respeito à década cinematográfica que analisa, é a constatação de que o cinema, pela primeira vez, se incorpora num movimento universal de expressão, podendo agora intervir, actuar para além dos limites que absurdamente lhe foram impostos e das proposições que lhe foram atribuídas. Tal movimento de expressão universal é por ele fulgurantemente definido nestes termos:
«No romance que se diria pós-faulkeriano (e pós-becketeano, desde já), no teatro de novas vias de conhecimento, e de proposição de uma nova consciência, de Beckett, de Adamov, de Ionesco e de Sheadé, na poesia, depois de Ezra Pound, na pintura de um Bazaine, de uma Vieira da Silva, de um Bissière, de um De Staël, em correntes da música e do ballet contemporâneos, novas estruturas psicológicas estão a traduzir-se, efabulativamente ou não, na criação de um espaço e de um tempo ambíguos – que a ciência física e a filosofia verificam.»[1]
Ou seja, França pensa a modernidade cinematográfica também pela via do fim de um desligamento do cinema pela problemática estética geral e pela adesão total aos valores da vida (valores viventes). E, ainda, pela exigência e interrogação. Se, como alguém disse, a crise é a tónica e a característica determinante da modernidade, toda a crise é, para além do pessimismo e do optimismo entorpecedores, criativa e fecunda. É este – julgamos nós – o maior dos ensinamentos destes escritos que, como todos os grandes textos da contemporaneidade, assumem plenamente o estatuto provisório do saber que procuram alcançar e comunicar. Para finalizar, não resistimos a reproduzir, como corolário, aquilo que Hervé Bazin afirmou a propósito da obra Charles Chaplin – Le Self-Made Myth[2]:
«Voici un travail critique capital auquel on ne pourra désormais manquer de se référer. Ses 250 pages de réflexions méthodiques sur le mystère chaplinesque constituent sans doute l’effort critique le plus poussé et le plus complet sur le phénomène Chaplin considéré dans sa signification éthique et sociologique.»[3]
Arnaldo Mesquita
José-Augusto França, Dez anos de cinema. Lisboa, Sequência, [s.d.], 218 p.
Tipologia documental: livro
Cota: 70
«Cinema português, não. Perdido em problemas económicos e anedotas financeiras, ele tem aos ombros a tragédia da falta de gente que o realize. Que venha outra, nova, porque a que há (e exceptuando Manuel de Oliveira), de todo em todo não presta.» (p. 204)
Para compreender este diagnóstico, ou este retrato em tons negros da cinematografia nacional, é preciso ler de fio a pavio cada um dos «balanços» e verificar o modo exigente como o autor avalia em cada ano a produção portuguesa, a sua aflitiva indigência de meios económicos e expressivos, a falta de argumentos sólidos e a ausência de autores, sobretudo quando contrastada com as realidades europeia e norte-americana; uma tendência que é marca de água da sua metodologia analítica e que é expressa em termos definitivos na nota de Roland Barthes que acima reproduzimos. Como se compreende, França aplica ao cinema a mesma metodologia que emprega na avaliação da situação e evolução da arte portuguesa ao longo do século XX: sempre em relação de oposição ou tentativa de confluência com as suas congéneres de outras latitudes.
De qualquer modo,a sua finíssima intuição apresenta-lhe já o obrigatório e iminente surgimento de uma nova geração, de novas perspectivas, enfim, de autores capazes de iniciarem uma revolução no estado de coisas da nossa cinematografia. Como sabemos hoje, essa intuição foi certeira e realizou-se. Aliás, é no próprio devir do cinema que França encontra a sua maior virtude modernista; reconhecendo que todo o saber, independentemente do seu objecto, é sempre provisório, admite que a arte cinematográfica tem um significado sociológico imediato, comprometido e indomado, tornando-se assim um elemento fundamental da fenomenologia do século XX e remetendo para uma atenção constante a esse sociológico que atravessa todos estes «balanços»: o sociológico é aqui sociologia do espectador, patente na seguinte afirmação:
«Feito para o público “que tem sempre razão” pelo que quer e pelo que necessita, ele cria-lhe os desejos e as necessidades. Elemento número um de uma mito-sociologia actual, o cinema rodeia-nos invisivelmente, explica-nos o mundo, enche-nos o sonhar colectivo, espreita-nos e fabrica-nos.» (p. 194)
Outra característica determinante no pensamento do autor no que diz respeito à década cinematográfica que analisa, é a constatação de que o cinema, pela primeira vez, se incorpora num movimento universal de expressão, podendo agora intervir, actuar para além dos limites que absurdamente lhe foram impostos e das proposições que lhe foram atribuídas. Tal movimento de expressão universal é por ele fulgurantemente definido nestes termos:
«No romance que se diria pós-faulkeriano (e pós-becketeano, desde já), no teatro de novas vias de conhecimento, e de proposição de uma nova consciência, de Beckett, de Adamov, de Ionesco e de Sheadé, na poesia, depois de Ezra Pound, na pintura de um Bazaine, de uma Vieira da Silva, de um Bissière, de um De Staël, em correntes da música e do ballet contemporâneos, novas estruturas psicológicas estão a traduzir-se, efabulativamente ou não, na criação de um espaço e de um tempo ambíguos – que a ciência física e a filosofia verificam.»[1]
Ou seja, França pensa a modernidade cinematográfica também pela via do fim de um desligamento do cinema pela problemática estética geral e pela adesão total aos valores da vida (valores viventes). E, ainda, pela exigência e interrogação. Se, como alguém disse, a crise é a tónica e a característica determinante da modernidade, toda a crise é, para além do pessimismo e do optimismo entorpecedores, criativa e fecunda. É este – julgamos nós – o maior dos ensinamentos destes escritos que, como todos os grandes textos da contemporaneidade, assumem plenamente o estatuto provisório do saber que procuram alcançar e comunicar. Para finalizar, não resistimos a reproduzir, como corolário, aquilo que Hervé Bazin afirmou a propósito da obra Charles Chaplin – Le Self-Made Myth[2]:
«Voici un travail critique capital auquel on ne pourra désormais manquer de se référer. Ses 250 pages de réflexions méthodiques sur le mystère chaplinesque constituent sans doute l’effort critique le plus poussé et le plus complet sur le phénomène Chaplin considéré dans sa signification éthique et sociologique.»[3]
Arnaldo Mesquita
José-Augusto França, Dez anos de cinema. Lisboa, Sequência, [s.d.], 218 p.
Tipologia documental: livro
Cota: 70
[1][1] José-Augusto França, Oito Ensaios Sobre Arte Contemporânea. Mem Martins, Publicações Europa-América, 1967, p. 198.
[2] Publicado em Portugal pela editora Livros Horizonte, sob o título Charles Chaplin, O “Self-made-Myth”. Também disponível para consulta na Biblioteca.
[3] «Eis aqui um trabalho crítico fundamental ao qual não poderemos futuramente deixar de nos referir. As suas 250 páginas de reflexões metódicas sobre o mistério chaplinesco constituem sem dúvida o esforço crítico levado mais longe e mais completo sobre o fenómeno Chaplin no seu significado ético e sociológico.». Citado na introdução ao texto O Cinema Italiano e Eu, publicado na revista Estudos Italianos Em Portugal, Lisboa, Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, Nova Série, número 11.
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM MAIO NA PÁGINA WEB DA CINEMATECA PORTUGUESA E REPUBLICADO EM SETEMBRO COMO FORMA DE HOMENAGEM A JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA:
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