Terceiro dia do décimo segundo mês de dois mil e vinte e um. Há um debate silencioso instalado a meias no meu espírito e massa cinzenta. Não sei se é ainda a readaptação às raizes ou a readaptação plena. Só sei que, neste universo, o conforto é o considerado na minha vida passada, entre países estrangeiros e um Portugal de patine burguesa, um quase desconforto. Na vida que eu não sabia ser um mero estágio para a reforma (por invalidez) preparei-me para aquilo que o meu filho Millenial chama de zombie war. Quando dei o passo seguinte foi como se tivesse quase todas as “armas” para me instalar neste admirável mundo novo. Quando a pandemia deu as primeiras tréguas eu pus-me a caminho da ilha com uma mala cheia de utilidades e o mínimo de roupa para vestir. Foi o inverno mais difícil da minha vida e o mais chuvoso na ilha do sol. Andei a pé e de carro alugado por longos períodos até decidir mandar vir o transporte que me aguardava na porta errada. Não sei se é de estar (quase)sempre a rir que leva as pessoas a pensar que eu estou de férias, que sou milionária, ou sou só tola e muito disponível. No primeiro inverno a casa tinha um chão de cimento pintado e eu nunca tinha vivido nela. No quarto do fundo tinha um soalho de pinho de 1937. Quando, na primeira semana de estadia, a minha cama cedeu até pensei que era o pé dela, mas não. Foi uma tábua do tal chão tão antigo. Fiquei a rir-me sózinha do tragicómico da situação. Mais três tábuas caía lá em baixo. Das coisas que não tinha na casa o lava-loiças era uma delas. O duche por estrear serviu bem para o efeito. E a velha pia rachada lá fora quando não chovia. Quando chovia às vezes punha a chuva a fazer o meu trabalho. Não tinha cadeiras mas tinha um banco corrido dos impérios. Não tinha mesa mas tinha cavaletes e tábuas com fartura das camas por montar. Não tinha fogão mas tinha uma cataplana elétrica porque tinha eletricidade. Não tinha forno mas tinha uma cloche do tempo de algumas avós. E tinha sobretudo, e com fartura, muita dormência na mão direita e as chamadas dores neuropaticas próprias de quem foi intervencionado na C8. Para isso tomava uns químicos receitados pelos meus preocupados médicos. Fiz desmame dos mesmos após algumas sessões de banhos de mar. A vitamina mar é uma evidência por mim comprovada para a eliminação de qualquer dor. A guerreira em mim debate-se com imposições e disposições. Pelos caminho salvei um cão que mais parece um lobo e que faz de mim o capuchinho vermelho. Tive que ficar mais forte para poder ajudar quem precisa de mim. Tive que ser caçadora dos meus medos e aprender com eles. Tive que reaprender a viver com a curva que tanto nos eleva como deita abaixo.
Entretanto dois dias voaram ao sabor do último eclipse deste ano e tanto EU nas últimas palavras perdeu o sentido. Já pousei no quinto dia do decimo segundo mês. Do debate silencioso resta o silêncio e os pensamentos algo ruidosos que substituo com os cantautores das linguas que conheço. Prefiro sempre as cantigas de intervenção às de amor porque essas sim são de paixão. As causas vivo-as andando por todos os caminhos que percorro porque é neles que me detenho e quem neles encontro é quem me move. Torno-me o efeito da causa num ápice,num ai, num repente. É nesse instante que constato aquilo que me trouxe a esta janela virada para o varal com criptomerias e pinheiros a enquadrá-lo. O grito do vizinho milhafre que assinala a caça adivinho-o por debaixo das palavras cantadas da Mafalda que diz que há que penar para aprender a viver , que a vida é feita de cada entrega alucinada para receber daquilo que aumenta o coração. Há que viver uma hora de cada vez e não ter medo nem de procrastinar. Há mesmo que ter um horário para a procrastinação que eu considero mais contemplação. E há que evitar o fechamento desse eu tão subvalorizado e oferecer ajuda nem que seja com o saber escutar cada palavra que nos querem dizer. Das escutas mais significativas que tive este ano foi dum homem permanentemente ébrio. Acho que o álcool já faz parte do sistema circulatório dele. Eu fazia-lhe perguntas e um amigo traduzia o que ele dizia através da boca gretada com dois dentes em muito mau estado. A maior parte da tradução era para italiano ou francês. O meu amigo também só tem quatro dentes mas fala mais de quatro línguas. Em todas as línguas o homem dizia que tinha mais de mil anos e contou estórias inacreditáveis. Cada vez que me cruzo com o senhor ele cumprimenta-me e faz menções de tirar o chapéu que não tem. Eu respondo com o acenar típico da ilha com a mão sobre o volante e quatro dedos que se elevam. Nunca vi alguém tão pisado nem nas minhas deambulações mundo fora. Nas cidades grandes o olhar já não é triste e é vazio de brilho. Este é cheio de dor e perda. E não quer qualquer ajuda senão meiozinho de tinto e algum papo-seco misto. E atenção, porra! Quem não?
Elsa Bettencourt
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