No meio da confusão habitual em
que costuma rolar a minha vida recebi um telefonema madrugador do Ramos da
agência. Tinham um papel para mim num filme de um estreante realizador mas com
qualidades no currículo. Aceitei sem sequer perguntar o que era. Duas ou três
frases, uma participação curta, seguiria por mail. Depois de uma almocinho
ligeiro na tasca do bairro regado com uma boa garrafa de tinto alentejano, pus
a mochila aos ombros e meti-me no metro a caminho de Sete Rios. A camioneta
saiu pouco antes das três. Pelo caminho fui vendo a informação enviada. tinha
para aí três intervenções no máximo. Fazia um coronel veterano que estava num
lar de idosos e já não jogava com o baralho todo. Era o companheiro de quarto
do avô do protagonista, um puto novo à procura de si próprio como é próprio de
todos os putos novos. Eu era uma espécie de Kilgore, o tenente coronel marado
que comandava a helitransportada no APOCALYPSE NOW. Neste caso um tipo com
intervalos de lucidez que falava sozinho e pouco se ralava com o que os outros
pensavam dele. Cheguei duas horas depois
com um jeito no pescoço e as pernas dormentes. À minha espera com um cartão com
o meu nome estava um jovem simpático de barbas fartas que fazia lembrar o meu
filho mais velho. Metemo-nos no carro a caminho do set, planície de um lado e
do outro, gado, oliveiras, regas e o calor típico da região em toda a parte.
Sempre gostei de fazer de maluco, não sei porquê, sinto-me mais à vontade.
Também nunca fui muito bom da cabeça nem me dei com gente que não fosse. Digamos que, não o sendo, andei sempre por
ambientes onde eles eram a maioria, habituei-me como quem descobre uma família
e nunca me senti desconfortável. O velho diz umas coisas engraçadas. Veterano
dos pára-quedistas, comissões em Angola e na Guiné durante a guerra colonial
faz a orientação cronológica dos seus tempos de combatente. Tento meter
conversa pelo caminho. Digo que o personagem faz lembrar o tal filme mas o meu
interlocutor nunca o viu. Estuda no Técnico, está a fazer uns trocos nas
férias…Mas já ouviu o pai dele falar do APOCALYPSE NOW. Finalmente chegamos ao local das
filmagens, um convento antigo com uns claustros refrescados por um pequeno
lago, sebes baixas geometricamente
aparadas e canteiros com flores coloridas. Apresentações com a equipa de
filmagens, realizador, técnicos, actores. Reconheço o assistente de produção de
outros "carnavais" quando fazia figuração em filmes franceses no
tempo da faculdade. O André, operador de câmara, duplo, figurante, o homem dos
sete instrumentos. Persistente nunca abandonou a actividade. Abdicou de uma
vida confortável, família tradicional, estabilidade, por amor à arte. Eu não
fui capaz. Voltei agora que estou quase avô, quase reformado, quase….coisa
nenhuma. Horários das filmagens num papel. Alvorada às seis. O convento é
habitado por uma ordem monástica composta por monges bastante avançados na
idade mas cheios de genica e simpatia. Cedem uma parte das instalações,
incluíndo o refeitório, e têm como única condição respeitarmos os seus
horários. Jantamos ainda de dia em silêncio ouvindo ao fundo cantos gregorianos
vindos da igreja. A seguir somos encaminhados para as nossas celas/quartos de
dormir. Antes de entrar o André traz uma garrafa de aguardente produzida no
convento e ficamos ali na varanda do claustro a beber um último para o caminho.
A aguardente é suave e escorre bem. Entro no quarto de uma simplicidade
absoluta mas também extremamente limpo. Da janela vejo um pequeno bosque com
árvores à contraluz enquanto o Sol se desliga devagar. O crepúsculo é sempre um espectáculo para os sentidos...no Alentejo é uma obra prima de qualidade. Pego no telemóvel e
ligo. à Joana, aos meus filhos, a dois amigos. Ninguém atende. O efeito da
aguardente começa a bater, primeiro devagar e depois a espreguiçar-se pelo
cérebro e pelo seu recente ocupante. Gostava de vos dizer que vos amo muito a
todos vocês mas como não atendem vou desligar o telefone que amanhã o dia
começa cedo.
Artur
Artur
1 comentário:
Tenente Coronel Kilgore em real, à portuguesa, estou mais a imaginar um dos irmãos Durão.
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