quarta-feira, 22 de abril de 2020

CREPÚSCULOS DE FIM DE SEMANA II









Acordo bem humorado e cheio de energia, coisa que já não me acontecia há alguns tempos. Comemos o pequeno almoço com os cânticos religiosos em fundo. Há uma atmosfera de paz em cada átomo de oxigénio respirado. Segue-se a breve transformação no coronel Azevedo. Um bigodinho branco ralo, um jeito na careca e mais algumas rugas para credibilizar a idade avançada. Depois seguir para o set das filmagens e esperar. Sento-me com o guião na mão e dou-lhe mais uma revisão das minhas falas. Na primeira cena estou a almoçar com mais velhotes à minha volta. Dirijo-me à senhora que está ao meu lado e me pergunta se vi um programa ontem na televisão. Tenho que lhe responder com alguma gravidade: "Sabe que o inimigo é manhoso…Está sempre à espreita a ver quando é que estamos distraídos. Mas eu também não ando cá desde ontem…Corto-lhes a linha de abastecimentos que os fodo…" À terceira vez fica bem e vamos filmar outra cena. As minhas outras duas que restam ficam para depois do almoço. Bebo o café cá fora com a planície a perder de vista. O André lembra-me o primeiro filme em que trabalhámos juntos. Éramos cavaleiros mouros a protagonizar a Lenda das Amendoeiras no castelo de Palmela. Um dia inteiro em cima do cavalo  a assustar turistas e a fumar ganzas. Então não me havia de lembrar? Bons tempos André.
À tarde as outras duas cenas. O avô do rapaz que é o protagonista, morre. Estamos os dois no mesmo quarto. Ele deitado na cama eu de vigília numa cadeira. O neto entra e olhamo-nos. Ele vai abraçar o avô, eu levanto-me e viro-me para a janela. Caiem-me as lágrimas pela cara abaixo, tento falar mas não consigo. Viro-me, coloco muito devagar a mão no ombro do rapaz. Estendo-lhe um livro de encadernação antiga, o "Don Quixote", onde o avô escreveu por baixo do título : "Crepúsculos de fim de semana", uma analogia como ele via a maior parte das coisas importantes da existência. Antes de sair agarrado à bengala, digo: "O teu avô disse-me para te dar isto…"
A minha ultima cena é um delírio em que estou supostamente de volta à parada na cerimónia do arrear da bandeira. Perfilo-me, faço a continência e imito uma fanfarra militar com bombo, metais e tudo. Na cena dois enfermeiros aguardam que termine a cerimónia para me virem buscar. Percebo que a sugestão da banda sonora foi bem recebida porque ouço um ou dois a rir por trás das câmaras. Enquanto me estou a limpar e a trocar de roupa consigo falar com o autor do guião a quem peço um exemplar inteiro. Responde afirmativamente com uma  condição. Se eu lhe levava o carro para Lisboa porque o prazo da inspecção acaba amanhã e eles ainda vão continuar a filmar mais uns dias. Assim entregava-o à namorada e ela fazia o resto. Aceito, trocamos números e moradas e fico com as chaves. Já à saída tenho ainda tempo de me despedir do André. Foi bom termo-nos voltado a ver. Damos um abraço e ele oferece-me um charro. Agradeço a meto-me ao caminho com o Sol em descida acentuada e o vento a pentear a seara devagarinho. Lembro-me que outro amigo vive por aquelas bandas e decido fazer um desvio. Entro na aldeia de casas caiadas de branco, atravesso o largo da Câmara Municipal e subo até ao cemitério. Vale-me não ver ninguém nem existir horários na província para visitar os que já partiram. Forço uma grade ferrugenta e ando alguns metros até o encontrar. Sento-me ao lado da campa e fico ali em silêncio a ver o Sol a pôr-se lá ao longe enquanto vou fumando o charro que me deu o André. O Zé saiu desta colecção de crepúsculos muito novo num acidente de automóvel mas nunca deixámos perder o contacto. Volta na volta encontramo-nos nos sonhos e há sempre um programa aliciante para fazer. Conto-lhe a minha aventura daquele fim de semana de filmagens. Que estou a ficar velho e cada vez mais lento. Daqui a dois dias tenho a operação marcada para retirar o tumor da cabeça. Pode correr 50/50, posso não acordar ou posso me safar, depende de muitos factores incluindo a sorte. Se calhar, da próxima vez que nos encontrarmos já não será preciso vir aqui…visitar o teu jardim de pedra. Se assim fôr só lamento não poder ouvir este silêncio nem observar o espectáculo do pôr do Sol que é único aqui no Alentejo. Por isso vou ficar mais um bocado aqui ao pé de ti na conversa até que uma coruja de cima de uma árvore me venha dizer se não acho que já são horas de me ir embora para casa.


1 comentário:

A.Teixeira disse...

Dá para perceber quem é o Zé.

Fico à espera a ver se dá para que apareça algum outro texto assim inspirado sobre o coronel Kurtz "à portuguesa".