Acordo bem humorado e cheio de
energia, coisa que já não me acontecia há alguns tempos. Comemos o pequeno
almoço com os cânticos religiosos em fundo. Há uma atmosfera de paz em cada
átomo de oxigénio respirado. Segue-se a breve transformação no coronel Azevedo.
Um bigodinho branco ralo, um jeito na careca e mais algumas rugas para
credibilizar a idade avançada. Depois seguir para o set das filmagens e
esperar. Sento-me com o guião na mão e dou-lhe mais uma revisão das minhas
falas. Na primeira cena estou a almoçar com mais velhotes à minha volta.
Dirijo-me à senhora que está ao meu lado e me pergunta se vi um programa ontem
na televisão. Tenho que lhe responder com alguma gravidade: "Sabe que o
inimigo é manhoso…Está sempre à espreita a ver quando é que estamos distraídos.
Mas eu também não ando cá desde ontem…Corto-lhes a linha de abastecimentos que
os fodo…" À terceira vez fica bem e vamos filmar outra cena. As minhas
outras duas que restam ficam para depois do almoço. Bebo o café cá fora com a
planície a perder de vista. O André lembra-me o primeiro filme em que
trabalhámos juntos. Éramos cavaleiros mouros a protagonizar a Lenda das
Amendoeiras no castelo de Palmela. Um dia inteiro em cima do cavalo a assustar turistas e a fumar ganzas. Então
não me havia de lembrar? Bons tempos André.
À tarde as outras duas cenas. O
avô do rapaz que é o protagonista, morre. Estamos os dois no mesmo quarto. Ele
deitado na cama eu de vigília numa cadeira. O neto entra e olhamo-nos. Ele vai
abraçar o avô, eu levanto-me e viro-me para a janela. Caiem-me as lágrimas pela
cara abaixo, tento falar mas não consigo. Viro-me, coloco muito devagar a mão
no ombro do rapaz. Estendo-lhe um livro de encadernação antiga, o "Don
Quixote", onde o avô escreveu por baixo do título : "Crepúsculos de
fim de semana", uma analogia como ele via a maior parte das coisas
importantes da existência. Antes de sair agarrado à bengala, digo: "O teu
avô disse-me para te dar isto…"
A minha ultima cena é um delírio
em que estou supostamente de volta à parada na cerimónia do arrear da bandeira.
Perfilo-me, faço a continência e imito uma fanfarra militar com bombo, metais e
tudo. Na cena dois enfermeiros aguardam que termine a cerimónia para me virem
buscar. Percebo que a sugestão da banda sonora foi bem recebida porque ouço um
ou dois a rir por trás das câmaras. Enquanto me estou a limpar e a trocar de
roupa consigo falar com o autor do guião a quem peço um exemplar inteiro.
Responde afirmativamente com uma
condição. Se eu lhe levava o carro para Lisboa porque o prazo da
inspecção acaba amanhã e eles ainda vão continuar a filmar mais uns dias. Assim
entregava-o à namorada e ela fazia o resto. Aceito, trocamos números e moradas
e fico com as chaves. Já à saída tenho ainda tempo de me despedir do André. Foi
bom termo-nos voltado a ver. Damos um abraço e ele oferece-me um charro.
Agradeço a meto-me ao caminho com o Sol em descida acentuada e o vento a pentear
a seara devagarinho. Lembro-me que outro amigo vive por aquelas bandas e decido
fazer um desvio. Entro na aldeia de casas caiadas de branco, atravesso o largo
da Câmara Municipal e subo até ao cemitério. Vale-me não ver ninguém nem
existir horários na província para visitar os que já partiram. Forço uma grade
ferrugenta e ando alguns metros até o encontrar. Sento-me ao lado da campa e
fico ali em silêncio a ver o Sol a pôr-se lá ao longe enquanto vou fumando o
charro que me deu o André. O Zé saiu desta colecção de crepúsculos muito novo
num acidente de automóvel mas nunca deixámos perder o contacto. Volta na volta
encontramo-nos nos sonhos e há sempre um programa aliciante para fazer.
Conto-lhe a minha aventura daquele fim de semana de filmagens. Que estou a
ficar velho e cada vez mais lento. Daqui a dois dias tenho a operação marcada
para retirar o tumor da cabeça. Pode correr 50/50, posso não acordar ou posso
me safar, depende de muitos factores incluindo a sorte. Se calhar, da próxima
vez que nos encontrarmos já não será preciso vir aqui…visitar o teu jardim de
pedra. Se assim fôr só lamento não poder ouvir este silêncio nem observar o
espectáculo do pôr do Sol que é único aqui no Alentejo. Por isso vou ficar mais
um bocado aqui ao pé de ti na conversa até que uma coruja de cima de uma árvore
me venha dizer se não acho que já são horas de me ir embora para casa.
1 comentário:
Dá para perceber quem é o Zé.
Fico à espera a ver se dá para que apareça algum outro texto assim inspirado sobre o coronel Kurtz "à portuguesa".
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