É esta grelha de análise que Schrader aplica à obra de Yasujiro Ozu, Robert Bresson e, em menor grau, à de Carl Th. Dreyer, cineastas que, em distintas regiões geográficas e em diferentes contextos culturais, desenvolveram uma forma cinematográfica comum, determinada por um fim singular: expressar artisticamente o Transcendente, bem como a própria natureza do medium cinematográfico. Ou seja, esses cineastas utilizam meios temporais precisos – ângulos de câmara, diálogos, montagem, etc – a fim de expressarem fins transcendentais.
Na “Introdução” à edição de 1972, Schrader reconhece explícita e implicitamente a dificuldade que a teoria cinematográfica enfrenta ao operar com o conceito de “transcendente”, tal a vastidão de significados que abrange e a imprecisão que comporta, já para não falar do carácter não-funcional do conceito. De resto, “estilo” é igualmente problemático, já que pode abranger todas as particularidades formais. No entanto, reconhece também que o terceiro conceito (“estilo transcendental”) é uma poderosa ferramenta crítica, indispensável no que concerne à obra dos três cineastas. De facto, não só considera que tal conceito é indispensável à compreensão total da obra desses autores, como afirma que saber o que significa “transcendental” e “estilo” é compreender o método crítico através do qual é possível analisar o estilo específico que configura e determina os filmes por eles dirigidos. Chega-se assim a uma fórmula que define “estilo transcendental”: uma forma geral de representação cinematográfica que expressa o transcendental. O método crítico assenta assim em duas premissas básicas: existem fenómenos hierofanicos [2] que são as expressões do transcendente na sociedade e existem formas de representação artística comuns, partilhadas por culturas diferentes. O estilo transcendental é cada uma delas e ambas em conjunto. A teoria geral que resulta da configuração e desenvolvimentos das duas instâncias é expressa por Schrader desta forma:
“O estudo do estilo transcendental revela uma forma universal de representação. Essa forma é notavelmente unificada: a expressão comum do Transcendente no cinema. As diferenças entre os filmes de Ozu, Bresson e Dreyer são culturais e pessoais; as similitudes são estilísticas, e representam uma reflexão unficada do Transcendente no cinema.”
É importante sublinhar que ao longo do ensaio Schrader contrasta permanentemente o estilo transcendental dos cineastas estudados com outras formas de expressão artística: os filmes de Ozu são comparados com as artes Zen da pintura, jardinagem e “haiku”; os de Bresson com a iconografia bizantina e os de Dreyer com a arquitectura gótica, o que demonstra a determinação do autor de situar o seu conceito de estilo transcendental no seio de teorias estéticas anteriormente existentes (no que diz respeito às artes) e em doutrinas teológicas (no que diz respeito à meditação sobre o sagrado).
Sumariamente descritas a profundidade e riqueza das teses expostas no ensaio, interessa-nos agora referir uma importante metamorfose do texto, introduzida na segunda edição datada de 1998. Schrader incluiu nessa segunda edição um capítulo intitulado “Rethinking Transcendental Style”, no qual explica novamente o “método crítico” que criou e determina a sua evolução nos 26 anos que decorreram entre as duas edições: O influxo da obra de Andrei Tarkovski e do pensamento de Gilles Deleuze. Numa das secções deste novo capítulo, justamente intitulada “Enter Deleuze” (1998, p. 3-6), Schrader sublinha a capital importância das obras “Cinéma I – L’Image-Mouvement” e “Cinéma II – L’Image-Temps” [1], especialmente desta última, na comprensão da evolução do cinema no pós II Guerra Mundial, ou do desejo criativo de associar imagens no tempo e o modo como essa associação pretende comunicar com o inconsciente e a consequente relação com memórias, sonhos e fantasias. O principal impacto de pensamento de Deleuze na teorização de Schrader consubstancia-se no conceito de “duração” invocando o “Outro” sagrado. Se em “Transcendental Style” Schrader se pronuncia sobre as mensagens evocadas pelo estilo (transcendental), Deleuze acrescenta a explicação sobre o modo como tudo se processa.
Quanto a Tarkovski, Schrader considera que , tal como Deleuze, o cineasta procurou incorporar a mudança de paradigma introduzida pela evolução do uso do tempo no cinema (e a consequente estilização desse uso). Em conjunto, a obra do filósofo e os filmes do cineasta sociético estão no centro de um novo paradigma cinematográfico que se expande em múltiplas direcções e confere novos significados aos conceitos de “transcendental”e “estilo” e ao conceito unificador de “estilo transcendental”.
Para finalizar, deixamos um desafio aos leitores da obra, sob a forma de uma pergunta para a qual cada um encontrará a sua resposta: o que é que se torna pertinente para uma compreensão secularizada do “estilo transcendental” quando o conceito de “hierofania” ainda puder ser aplicado a objectos depois de todas as conotações religiosas terem sido removidas?
Arnaldo Mesquita
Texto originalmente publicado na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema