pour que le soleil n'arrête pas de briller
la lune se léve chaque nuit.
Paris 1985
Hoje tropecei neste livro. Tirei-o da estante e folheei-o. Era um tempo de andar na estrada à procura de tudo e mais alguma coisa, depois da tropa, daqui até Londres. Tinha a mania de escrever nos livros (todos tínhamos essa mania) e esse exemplar do Kerouac, que me acompanhou todo esse ano em que estive fora, foi um dos mais escrevinhados. Encontrei esta frase escrita por ti : "para que o Sol não deixe de brilhar a Lua levanta-se todos os dias… Paris 1985". De repente voltei a ser Paris sem um tostão no bolso, as capelas e as capelinhas de qualquer roteiro turístico, a campa do Jim Morrison em Pére Lachaise, voltei a ser eu sozinho a olhar para o futuro, voltaste a ser tu e um cavalete no meio da rua a pintar caricaturas dos turistas…e um jantar quente pela primeira vez em muitos dias e a tua casa até voltar à estrada. De repente não tinha acontecido nada em trinta e tal anos e a vida vivida era um enorme vazio sem etapas nem referências que nos comeu a todos. Havia uma gata que dormia sempre perto da aparelhagem e uma janela com uma vista fabulosa sobre a cidade. Cheirava a tintas e a diluentes, a ovos mexidos e a torradas de manhã. Havia um sorriso meigo e moreno nas tuas palavras, no teu discurso despreocupado de quem se está a cagar para o mundo, para o futuro, para a vida e para a morte ao mesmo tempo. Eras livre como a camisa larga e transparente que te acariciava esvoaçante com as correntes de ar. Havia reproduções na parede, Van Gohg, Matisse, Miró. Ao jantar havia Camus, Hemingway, e Kafka…sempre Kafka. Trocámos ideias, trocámos autores, trocámos vontades, trocámos os corpos numa valsa lenta e ao mesmo tempo ofegante. Para mim a vida cabia toda naquelas águas furtadas com uma janela aberta sobre a cidade. Enquanto acariciava outra vez aquele meu companheiro impresso de viagem saltava no tempo trinta anos e tudo era outra vez possível embora na altura nada quisesse, nada invejasse, nada me desse qualquer impulso de conquista. Era eu e a estrada e pouco mais. Três dias depois arrumei o saco e fui apanhar o metro para a estação onde paravam os camiões que partiam em todas as direcções. Levei dois dias a chegar a Londres. A tua frase só a conheci já quase um mês depois ao folhear o livro pela enésima vez. Perguntar pela felicidade ao passado não faz sentido nenhum. A questão mais pertinente é a de saber se alguma vez existimos, quando a memória se vai perdendo, quando as pessoas vão morrendo, quando não formos mais do que memórias no coração de alguém, quando já não houver ninguém para nos recordar. Seremos outra vez o nada que éramos antes de nascer.
E no entanto a Lua levanta-se todas as noites para que o Sol nunca deixe de brilhar.
Artur
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