quarta-feira, 7 de novembro de 2007

QUANDO VOLTARES



Quando voltares, a Casa estará no mesmo lugar onde sempre esteve. Alguns recantos estarão diferentes do tempo em que nela viveste, mas a Casa continuará a mesma.
Quando voltares, se fôr Outono, haverá uma fogueira à tua espera em noite de S.Martinho. Sentados à volta dela estarão os guerreiros de várias gerações, a assar castanhas num tempo eterno, entre gargalhadas e histórias antigas e canecos de água-pé que se manterão cheios até de madrugada.
Se fôr Primavera, serás recebido por um desfile de tochas onde ardem as cábulas e por cânticos pagãos espalhados pela noite morna, numa procissão de “Spellyking”.
Se o frio do Inverno já fizer gelar os ossos e o Natal estiver à porta, receber-te-ão nos claustros no meio de uma encenação de um 1º de Dezembro, onde um armário cairá invariavelmente do primeiro andar com o traidor Vasconcelos lá dentro. Ouvirás tocar de novo o sino que dá o sinal de partida para que colchas e lençóis retorcidos se ergam no ar ameaçadores, prontos para dar aos castelhanos a merecida lição da Restauração.
Se voltares num tempo qualquer, ouvirás ao anoitecer o rumor do capote e da barretina que vestem a cruz no alto da capela, empurrados pelo vento.
Quando voltares, recordarás no bater dos teus passos as memórias escritas na pedra das paredes dos claustros, onde correste menino e caminhaste vagaroso na segurança de ser homem. Elas te farão viver pelos que viveram antes de ti e pelos que viverão quando já cá não estiveres.
Se voltares em dia de glória, sentirás o abraço orgulhoso de afecto pelo filho que cresceu no seu seio a caminho da vida.
Se voltares num dia cinzento de chuva ouvirás palavras de conforto e estímulo solidário que te darão a força necessária para continuar. Olhando estas paredes voltarás a saber que nunca caminhaste nem caminharás sozinho porque serás sempre filho desta Casa. Relembrando as suas lições voltarás a lembrar aquele dia em que a baioneta dançou à frente dos teus olhos dando-te a benção iniciática de cavaleiro. Baixinho voltarás a ouvir as palavras daquele juramento, daquele instante mágico que te tornou membro de uma familia, elemento de uma irmandade que atravessa os séculos e se afirma cada vez mais viva no coração de todos.
E na Casa aprendeste que tudo é possível se depender da tua vontade; que não há vantagem nenhuma em pertencer a uma elite se o espírito de servir não fôr a regra de todos os dias; que se vence com estilo e se perde com dignidade; que nada se consegue sem humildade e trabalho duro; que a disciplina é a única maneira de nos conseguirmos superar; que admirar o trabalho feito é sinal de que não conseguirás fazer mais nada.
Quando voltares a Casa estará no mesmo lugar onde sempre esteve, pronta para te dar aquilo que mais necessitares nesse momento. E quando já cá não estiveres, estarás nas paredes dos claustros ao amanhecer, ou serás vento no alto da capela a soprar no capote e na barretina, ou nuvem que chove sobre um animado desafio de futebol entre gritos e suor e canelas feridas.
Porque os guerreiros não morrem. Sobem ao céu e transformam-se em estrelas que iluminam o caminho dos novos guerreiros que nascem. Porque não há princípio nem fim, mas um perpétuo continuar...

Maio de 2000

ARTUR GUILHERME CARVALHO
Publicado na revista da Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar nº 141 de 2000. Fotografia de Samuel Ma.

8 comentários:

OrpheuCM disse...

Emocionante! Muito bom.

Tomei a liberdade de o divulgar ;)

... e de corrigir o link do blog.

ZACATRAZ!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado. 1 Grande abraço.Volta sempre. Zacatraz

redjan disse...

F...-se Artur. Este post, em si e sózinho, é um livro que li, onde se folheia vida e se aprende o secreto caminho para se tornar na nossa parte de gente. Emoldura estas palavras e guarda-as presas na mão. Que car ... o modo como escreves que dá gosto a letras e vidas!!

Anónimo disse...

Muito bom!

Rui rodrigues disse...

Artur, estes teus pensamentos reflectem uma realidade que só quem viveu no colégio entende. Ao escreveres isto consegues exprimir os sentimentos que varias gerações foram sentindo ao longo dos tempos e ainda hoje sentem. Magnificamente escrito. Um abraço

António Miguel Miranda disse...

Artur, o Colégio Militar é a nossa memória coletiva. Estas estórias fazem-nos sentir o espaço, como em nenhum outro lugarç

Um abraço

Miguel 191/70 Peidão

Anónimo disse...

Rui e António,
Obrigado. Um forte abraço colegial para vocês. ZACATRAZ!
Artur

a片 disse...
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