segunda-feira, 19 de novembro de 2007

AMOR À CHUVA

Chegou a casa encharcado até aos ossos e fechou a porta grande da entrada com um pontapé. A tempestade tinha-o apanhado de surpresa a meio do caminho de regresso. O estrondo da porta mal se fez ouvir entre o dos trovões. Genoveva, a governanta esperava-o pacientemente com uma toalha turca nas mãos. Era mais ou menos da idade da sua mãe, se ela fôsse viva, a sua única familia, a única mulher com quem dividia aquele solar enorme de pedra a meio caminho entre duas localidades. Secou a cabeça enérgico e caminhou para a sala trocando as boas noites. Não precisava de um caldinho de galinha fora de horas nem de uma bacia de água quente onde pudesse meter os pés. Em dias de chuva ficava assim: fechado sobre si próprio sem vontade de fazer nada a não ser estar sozinho. Dirigiu-se para a biblioteca, socorreu-se de um livro ao acaso e espevitou a lareira. Depois serviu-se de uma boa dose de conhaque antes de se sentar. Na outra poltrona o Baltazar deu-lhe um miado de boa-noite e uma expressão de quem não quer mais conversas. - Somos dois, amigo - respondeu-lhe o dono.
Quando chovia havia sempre duas recordações que o assaltavam como fantasmas de visita previamente marcada. No corpo, uma tíbia queixosa e reumática partida pelo estilhaço de um obus em La Lys. Uma tíbia que cada vez mais lhe travava o andamento à medida que coleccionava arteroses. Uma dor "filha da puta" dificíl de aguentar, mesmo para o velho coronel. Na alma, uma mulher. Uma mulher e uma tarde que se prolongou pela noite debaixo de um dilúvio monumental. O seu passo então jovem e seguro calcorreou a galope a distância entre as duas casas na miragem de um "sim" exprimido já não sabia bem de que maneira. Entrou e a visão dela pareceu ainda mais resplandecente. Abraçaram-se e foram tropeçando um no outro até ao quarto. Fixou-lhe o rosto, os olhos verdes, a boca pequena que juntou à sua. Um beijo perfeito como perfeitos foram todos os beijos que trocaram. Esse era a prova inequívoca que estavam destinados um para o outro. Lembrava-se do desenho do peito sob a camisa larga de algodão, do movimento das ancas, da elegância das pernas e de como se entrelaçaram uma e outra e outra vez até lhe perderem a conta. Chovia entretanto, um dilúvio cerrado caía sobre a terra e ele só se lembrava que nunca tinha sido tão feliz como naquela tarde. Aquela era a mulher com quem queria viver até ao fim dos seus dias. Só que por uma razão qualquer (classe social,idade,estado civil,outro amante,etc) aquela mulher, precisamente aquela...não podia ser mulher dele. Despediu-se à porta de casa dela repetindo o último beijo várias vezes. O beijo perfeito. Depois olhou-a nos olhos e recuperou o endurecimento todo que a sua educação lhe tinha dado, afastando para longe a pieguice, que só iria piorar as coisas. Com o indicador direito fechou-lhe os lábios suavemente. Afastou-se um passo e pediu-lhe apenas uma coisa. Só uma. - Até ao fim dos teus dias...sempre que chover, nunca faças amor com ninguém.
ARTUR

4 comentários:

Anónimo disse...

...e em noites como esta, riscadas a relâmpagos, ilmunadas a clarão, ela espera serena à janela, que o dia lhe devolva o sono, que lhe devolva água, que lhe devolva solidão, na imagem do sorriso, numa boca fechada, num gesto de mão....

e sabe que ainda o ama, sempre que sai da cama, ao primeiro rugir de um trovão...

Carlos Lopes disse...

Bonitos textos: o teu, amigo Artur, e o teu comentário, gata.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Gata: maravilhosa continuação do texto. Caminho para a prosa aberto em auto-estrada ampla. Volte sempre. Há conhaque, café, cigarros, uma lareira acesa e um gato velho na sua poltrona à espera.
Carlos: Nada como usar este meio de rascunho/diário de escrita e ser observado pelos teus óculos. Um olhar de especialista é sempre uma mais valia a acrescentar. Gandabraço
ARTUR

redjan disse...

Toc,toc...

Não , não é a chuva , mas com ela se leia até doer coisas assim escritas. Com lareiras, conhaques e gatos que são gatos !