quinta-feira, 1 de novembro de 2007

EM FIM, NO PRINCÍPIO

Chegou a casa já tarde, tirou o casaco e pendurou a solidão no bengaleiro de sempre atrás da porta. O gato tinha morrido há uns meses, a mulher tinha ido à vida dela pouco antes, os filhos andavam por aí a cavar a deles. O silêncio era o único elemento que o recebia percorrendo aquelas paredes e aqueles móveis, abstracto de opiniões, calado de saudações, escondido de emoções. Não tinha jantado mas também não tinha fome. Agarrou na garrafa de whisky e emborcou um copo cheio. Sentou-se no sofá a pensar em tudo e em nada e em como o vazio se acercava dele como um fato cada vez mais à medida. Sem o sufocar, nem muito estreito nem muito largo. Na medida exacta. Levantou-se e pegou num CD, pondo a tocar a sua música favorita. De chinelos de quarto e roupão, copo na mão, foi bebendo...e começou a dançar sozinho. Dançou, dançou, até que qualquer coisa nele falhou. Depois outra, e outra logo a seguir. Foi descendo lentamente como uma folha seca sobre a carpete da sala até ficar estendido no chão. O copo quase vazio rolou para longe, o CD continuou a tocar. Com a cara no chão, os seus olhos ficaram semicerrados e um sorriso tranquilo desenhou-se-lhe nos lábios. Assim partiu.
Do outro lado da cidade uma equipa hospitalar afadigava-se em volta de uma mulher. Enfermeira, anestesista, ginecologista, auxiliar, todos empenhados, concentrados, atentos ao mais ínfimo pormenor. Amanhecia quando uma cabeça, depois uns ombros, tronco, foram saíndo das entranhas da mulher. Os pés subiram no ar, uma palmada, um choro... o milagre de estar vivo. Todos descontraíram na presença de mais um trabalho bem feito. O mundo continuava a sua saga de acabar e começar todos os dias, como se quisesse dizer que não há princípio nem fim, mas um perpétuo "continuar".
ARTUR

2 comentários:

Carlos Lopes disse...

"chegar e partir/ são só dois lados da mesma viagem", costuma cantar o Milton Nascimento.

Parece uma "curta", dava um bom filme.

Cati disse...

Gostei muito!
Um belo retrato da eterna dicotomia MORRER/ NASCER... Um eterno círculo, o chamado círculo da vida!

Ainda bem que, quando nascemos, não sabemos ao que vimos... se não rapidamente voltaríamos às entranhas de nossas mães!

Um grande beijinho e... obrigada pela visita e pelo amabilíssimo comentário. Volte sempre! Bom fim de semana!