quinta-feira, 18 de outubro de 2007

ALICE


ALICE
Marco Martins
Portugal, 2004




Num espaço urbano impessoal um homem caminha, mal se distinguindo sob os contornos de um fundo azul escuro e cinzento. A chuva cai ininterrupta, monótona.
Neste espaço diluído de solidão escreve-se o desespêro de um pai em busca da filha desaparecida. O seu empenho obsessivo leva-o desde a simples colocação de cartazes nos pára-brisas dos carros e nas montras das lojas até a montar uma pequena rede de videovigilância em onze locais distintos da cidade. A sua rotina diária consiste em substituír cassettes, levar o material filmado para casa e esperar que, no meio da passagam anónima de milhares de pessoas se esconda o passo da sua filha.
O filme ( exclusivamente sobre a ausência e os seus efeitos corrosivos ) surpreende pela lucidez narrativa, pela sobriedade da montagem e pela contenção dos actores. Mais do que o desenvolvimento de um tema, a realização consiste num lento e asfixiante casulo que se vai construíndo em torno do espectador, casulo esse sem princípio nem fim, uma asfixia permanente. A morte, com toda a carga trágica e dolorosa que encerra, tem um fim , resolve-se no tempo. A ausência é permanente, deixa-nos suspensos entre a esperança e a paranóia de um pesadelo do qual nunca conseguimos acordar. A mãe não resiste e tenta o suicídio. Os actores não representam, deixando-se flutuar numa atmosfera de terror, amassados pelo fantasma do absurdo e da impossibilidade.
Baseado numa história verídica, ALICE é um retrato dos nossos dias. Uma imagem onde as crianças desaparecem de forma inexplicável e onde parece quem nem tudo é feito para as encontrar. Infelizmente uma situação que começa a ser demasiadamente rotineira nas nossas vidas. Atrás do desaparacimento de uma criança há uma familia destroçada, irremediavelmente perdida no seu sofrimento.
O desespêro de ALICE é a atmosfera e o pulsar impessoal da cidade escura, onde está sempre a chover, percorrida por um formigueiro permanente de gente anónima e solitária. Filme de emoções fortes, o estado de espírito sobrepõe-se a qualquer unidade de tempo ou narrativa, enchendo por completo todo o espaço fílmico, residindo aí toda a magia e toda a genialidade deste filme. Fabuloso, diria eu, tratando-se de uma obra de estreia do jovem realizador...
Publicado na revista CINEMA nº35 - Out-Dez 2006 (www.fpcc.pt)

ARTUR GUILHERME CARVALHO

2 comentários:

redjan disse...

... ' irremediavelmente perdida no seu sofrimento. '

Raras tão poucas palavras devem ter abarcado tão grande e inalienável verdade.

Banaliza-se nas noticias da vida de hoje, um mundo de fraca gente, que foge de quem sofre e consome os que perderam a alma !

Artur Guilherme Carvalho disse...

Esquecem-se é que enquanto fogem do sofrimento dos outros, estão a fugir de si mesmos. Uma frase do Sérgio Godinho diz : "Se mais te obrigam a pertir, mais te obrigam a chegar dentro de ti." Abraços
ARTUR