Algures em meados dos anos 80 passava horas na muralha do sítio de que tanto falam. Olhava para o calhau onde agora fica o porto e não me cansava de ver os meus amigos a surfarem as primeiras ondas. Mais do que a eles, e à sua bravura por cortarem ondas até três metros num fundo de pedra e rochas, eram os meninos dali que me encantavam. Os meus amigos tinham entre os quinze e os vinte e três, os meninos não tinham dez.
Imaginem um barco de papel e depois imaginem-no em lata sem a dobra que faz a vela. Eles faziam aqueles barcos dos bidons de combustível que cortavam e sentavam-se lá dentro a fazer as ondas mais pequenas num calhau mais pequenino mesmo ao lado do grande. Quando se construiu o grande porto as ondas desapareceram, os pescadores de Rabo de Peixe melhoraram a vida à volta da faina, os meus amigos cresceram, eu fui-me embora, e os meninos continuaram a fazer os seus barcos de lata até terem idade para pescar. Não a idade oficial mas a idade real. Naquela altura começava-se na faina à volta dos doze anos e não havia funcionário da secretaria da educação que os pusesse na escola outra vez. Porquê? Chama-se estigma. Uma marca invisível mas pior do que o fogo que designa o destino de gerações. Vou saltar umas décadas passando pelo sotaque dos Açores que é uma coisa que não existe e que me enerva quando até os próprios dizem isso aos continentais. Existe um sotaque do Continente? Ridículo, não é? Então, deixem-se de dizer disparates apesar disso não interessar para falar de estigmas. Aliás, tive que pôr legendas, anyway.
Chegamos a dois mil e vinte e imaginem quem furava os cercos sanitários e quase os queimavam em praça pública, hã? Iam pelo mar às compras à cidade da outra costa! Toda a gente,salvo honrosas excepções, os culpava de andarem a espalhar o bicho pela ilha grande. Uma das características dos estigmatizados é que dão a volta ao texto enquanto os outros não chegam à vírgula. E se tiverem características de ilhéu mais rápidos são.
Fartei-me de rir e chorar com a série. Estive a ouvir a entrevista com o produtor executivo, a estória de como chegou à história e a escrevê-la.
Achei cada personagem um mimo e depois fiquei a pensar numa coisa muito americana:
-Where the fork are the royalties for the village? ??
Ou seja, em vez de estarem a pensar nos cem quilos que faltam, que tal pagarem o dízimo à freguesia de rabo de peixe por cada vez que se fala neles? Já ajudava muito porque a vida continua, as desgraças continuam a acontecer, agora já não há coca mas a sintética está a matar gente de todas as ilhas. Um dízimo para o trabalho extraordinário que se tem feito nessa freguesia através da música e outras artes.
Um cêntimo por cada vez que dizem Rabo de Peixe sem saber como é que se faz canoas com o lixo dos outros.
E mais uma coisinha… passa pela cabeça de alguém que a maior parte dos habitantes dessa linda freguesia não tenham netflix? Parecemos a Maria Antonieta a dizer para darem brioches ao povo faminto! Há prioridades nas vidas simples e estas não passam pela televisão e muito menos pelos canais que só funcionam a tostões e com internet.
Elsa Bettencourt
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