segunda-feira, 12 de junho de 2023

FUTURISMO

 



A minha abordagem do modernismo na arte portuguesa centra-se em três publicações que nos fornecem material crítico para uma das vertentes cruciais desse mesmo modernismo e que se abriga sob a designação Futurismo. São elas: o primeiro e segundo números de “Orpheu” [1] e “Portugal Futurista” [2]. A escolha da segunda destas publicações resulta de a mesma conter não só o contributo de Santa-Rita Pintor (Guilherme Santa-Rita), José de Almada Negreiros e Amadeo de Souza-Cardoso, como também textos e manifestos que constituem a estrutura teórica e o programa estético do movimento. Provisoriamente, chamemos-lhe “movimento”, designação e definição que está longe de ser consensual, como veremos adiante. Quanto a “Orpheu I”, embora numa vertente eminentemente literária, é um somatório e um sintoma de uma certa efervescência que se apossa de um conjunto de poetas, escritores e artistas  - e artistas/escritores como no caso de Almada Negreiros -, e que constituirá o motor da revolução estética que constantemente reclamam. No caso de “Orpheu 2”, torna-se mais evidente o diálogo entre as reproduções de obras de Santa-Rita Pintor e os textos literários que integram a edição.

Por outro lado, coloca-se aqui a questão de saber se as duas publicações determinam cronologicamente o nascimento do movimento e da revolução artística que reclamava. É complexo, difícil e redutor atribuir datas precisas ao nascimento de movimentos artísticos, sem ponderar devidamente a sua génese, prolongamentos, ramificações e, por que não ?, a sua posteridade, quando não são acompanhados do tipo de elaboração teórica e programática, o que não é o é o caso do Futurismo português [3]; mesmo não tendo como base um Manifesto semelhante aos que fundaram diversos movimentos de vanguardas artísticas do século XX, como é exemplo substancial o do próprio movimento futurista italiano, o Futurismo português tem nas páginas desta revista abundantes bases teóricas e programáticas que sustentam um projecto estético que não só encontra nesses textos um fundamento auto-reflexivo, como também um metadiscurso artístico cujo alcance tem que ser avaliado em paralelo com os próprios objectos artísticos. Aliás, não fora a circunstância de “Orpheu 2” e “Portugal Futurista” terem reproduzido as obras de Santa-Rita Pintor, hoje não teríamos acesso às mesmas, ao contrário do que acontece com Almada Negreiros e Souza-Cardoso[4]. Refira-se, a esse propósito, que, no caso de “Orpheu 2”, essas reproduções adquirem um valor autónomo e auto-representativo, isto é, não servem de suporte nem de ilustração aos textos escritos, circunstância absolutamente inédita no panorama editorial da época.

Tendo já aludido brevemente ao modo como essas publicações se constituem como alternativas textuais a um Manifesto futurista português num sentido estrito que o conceito adquire, importa agora especificar de que modo a correlação entre textos e objectos artísticos se consubstancia. Para respeitar a cronologia, relembremos as datas de publicação: “Orpheu 1” e “Orpheu 2” foram publicadas em 1915 e “Portugal Futurista” em 1917, portanto com uma variação de 6 e 8 anos respectivamente em relação à publicação publicação de “Fundação e Manifesto do Futurismo” de Marinetti, publicado no “Figaro” de Paris em 1909. Sintomáticas dessa correlação, ainda numa base estritamente literária, são as dedicatórias a Santa-Rita Pintor dos poemas de Mário de Sá-Carneiro Poemas Sem Suporte” e de “Ode Marítima” de Álvaro de Campos em “Orpheu 2”. Tal como sintomática é a “Ode Triunfal”, também de Álvaro de Campos, poema publicado em “Orpheu 1”. Aplico os adjectivos “sintomáticas”, “sintomático” ao arrepio da própria convicção de Álvaro de Campos, como passo a explicar: a crítica e a teoria literária, além do próprio escritor, são unânimes em proclamar que ambos os poemas pertencem a uma corrente denominada “Sensacionismo”, corrente essa que só tangencialmente se relaciona com o Futurismo. Aliás, o próprio Álvaro de Campos caracteriza essa relação do seguinte modo, em carta dirigida ao “Diário de Notícias” de 4 de Junho de 1915:

A atitude principal do futurismo é a Objectividade Absoluta, a eliminação da arte, de tudo quanto é alma, quanto é sentimento, emoção, lirismo, subjectividade em suma. O futurismo é dinâmico e analítico por excelência. Ora se há coisa que [seja] típica do Interseccionismo (tal é o nome do movimento português) é a subjectividade excessiva, a síntese levada ao máximo, o exagero da atitude estática. “Drama estático”, mesmo, se intitula uma peça, inserta no 1º número do Orpheu, do sr. Fernando Pessoa. E o tédio, o sonho, a abstracção são as atitudes usuais dos poetas meus colegas naquela brilhante revista.

(…)

No 2º número do Orpheu virá colaboração realmente futurista, é certo. Então se poderá ver a diferença, se bem que seja, não literária, mas pictural essa colaboração. São quatro quadros que emanam da alta sensibilidade moderna do meu amigo Santa-Rita Pintor.

(…)

A minha Ode Triunfal, no 1º número do Orpheu é a única coisa que se aproxima do futurismo. Mas aproxima-se pelo assunto que me inspirou, não pela realização – e em arte a forma de realizar é que caracteriza e distingue as correntes e as escolas. [5]

Portanto, Álvaro de Campos, além de anunciar que existirá um número 2 da revista, ao mesmo tempo afirma uma “colaboração futurista” pela mão de Santa-Rita Pintor. Mais ainda, sugere que a haver diferença entre Futurismo, Interseccionismo, Paúlico, etc., é da ordem do pictórico (pictural) e não de ordem literária. Só assim se pode explicar a inclusão dos poemas “Ficções do Interlúdio” do ortónimo e do “Ultimatum” do heterónimo Álvaro de Campos em “Portugal Futurista” que é, a todos os títulos, a alternativa, ou versão portuguesa, do Manifesto futurista. Deixo para mais tarde o exame de um texto que, esse sim, é o verdadeiro manifesto do Futurismo português a posteriori, uma originalidade absoluta, visto que tal conjunto de propostas e reflexões vê a luz do dia quando do movimento futurista em Portugal já nada, ou pouco, restava, senão alguns dos seus ecos, variações ou prolongamentos, sobretudo na obra pictórica de Almada Negreiros.

Todo modo, devemos contrastar, anotando a contradição objectiva da afirmação de Álvaro de Campos com o texto “Santa Rita Pintor”, publicado a páginas 3-5 do “Portugal Futurista” e assinado por Bettencourt-Rebelo, que caracteriza Santa-Rita como uma sensibilidade mediúnica e universal, capaz de não se limitar a uma reprodução fotográfica daquilo que observa, sendo as suas obras atravessadas por interpretações emocionais e filosóficas da realidade, que representa em configurações abstractas e harmoniosas. Nesse sentido, creio que não se torna criticamente difícil conciliar a obra de Santa-Rita Pintor com alguns princípios proclamados pelo Manifesto Futurista e com as suas práticas artísticas, nomeadamente no que diz respeito ao conceito de dinamismo universal que deveria ser representado como sensação dinâmica: um fluxo contínuo de movimento, em que os objectos representados se interrelacionavam, se interpenetravam no espaço e no tempo, dimensões em que o carácter permanentemente mutável da realidade não permitia nenhuma forma de fixação. Assim na pintura “Decomposição dynamica de uma mesa + estylo do movimento” – correspondente à sensibilidade “Interseccionismo Plastico”, de 1912: no espaço de representação sobrepõem-se (interpenetram-se) sucessivos elementos gráficos, com origens e natureza iconográficos diversos, assimetricamente dispostos, cruzados por linhas que quebram os diversos planos, frustrando a tentação de olhar para os elementos sobrepostos como se se tratasse de uma composição, ou disposição, que de outro modo olharíamos como acumulação inerte de elementos e a tendência para “adivinhar” ou pressupor a forma dos elementos que só vemos parcialmente e que só parcialmente são representados, e como que desviando o nosso olhar temos ainda grafismos que, na periferia do centro (na realidade, ligeiramente excêntrico) não conseguem desvanecer, diminuir  a atração constituída pelo centro gravitacional que é produzido pela composição principal. Se é verdade que, como diz, José-Augusto França : “Dessa obra restou, porém, uma “cabeça” cubo-futurista datável de 1912 que, por isso, será a primeira obra “moderna” produzida por artista nacional” [6], então, cronologicamente, esta seria a segunda, acrescentando à tonalidade provocatória da primeira, ou cronologicamente primeira, um desafio às regras da percepção e acrescentando uma surpreendente dimensão auto-reflexiva de revelação das técnicas empregues, como se o pintor nos convidasse para uma observação directa quer dos meios materiais empregues na elaboração do quadro, quer do modo como forjou a linguagem que expressa o motivo representado.

Finalmente, detenho-me agora naquele que é o verdadeiro manifesto futurista a posteriori, a que aludi anteriormente. Trata-se do texto Apontamentos Para Uma Estética Não-Aristotélica, publicado nos números 3 e 4 da revista “Athena” de Dezembro-Janeiro de 1924-1925 e reproduzido na compilação Textos de Crítica e de Intervenção [7]. Nesse texto, assinado por Álvaro de Campos, pretende-se, como o título indica, propor algumas teses que contribuam para uma estética não-aristotélica, cujas principais linhas de força seriam, por um lado negar que a noção da finalidade da arte seja a beleza, contrariando assim os cânones estéticos vigentes desde sempre, substituindo a ideia de beleza pela de força. Nesta formulação, creio, ressoam ecos do pensamento do filósofo alemão Frederic Nietszche, que decerto seriam do agrado dos originais futuristas italianos e também encontrariam acolhimento junto dos futuristas ou proto-futuristas portugueses. Força que o poeta entende “no seu sentido abstracto e científico, tornando-se irresistível uma aproximação ao pensamento de Henri Bergson e à ideia de que a nova ciência e o seu pendor experimentalista teriam instituído novas formas de visão e percepção.
Nesse sentido, toda a arte seria uma expressão da própria vida e das duas forças que nela actuam : integração e desintegração (ou anabolismo e catabolismo), num jogo permanente de oposição e equilíbrio. Portanto, uma noção de arte baseada na força é uma ideia de arte fundada na subjugação e na sensibilidade, tendo o artista não-aristotélico de subordinar tudo à sua sensibilidade, ou em substância da sensibilidade e, como nos diz Campos: “(…) tornando a sua sensibilidade abstracta como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade), emissora (como a vontade (sem que por isso seja vontade) se tornar um foco emissor abstracto sensível que force os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força inexplicável (…)” p. 254. Muito embora no decorrer do texto Campos negue a categoria de não-aristotélico à maioria de realistas, naturalistas, simbolistas e futuristas, aos quais atribui apenas o talento da simulação, reconhecendo embora o valor de algumas das suas produções (desde que não se lhes atribua o nome de “arte”) [8], dificilmente se deixará de notar que estes princípios se aplicam justamente à obra de Guilherme Santa-Rita. Aliás, e retornando ao texto “Santa Rita Pintor”, a que aludi anteriormente, os termos empregues para caracterizar o pintor (ou a sua obra, o que no seu caso, vem a ser o mesmo, tal a simbiose entre criatura e criador), são aqueles que Campos utiliza no seu texto: “sensibilidade”, “dominador”, “o raciocínio como inspiração”, a arte que “ultrapassa a própria arte e estende-se a toda a vida, etc.

 

 



[1] Orpheu, 2ª reedição do volume I, Lisboa, Edições Ática, 1971 e Orpheu 2, Lisboa, Edições Ática, 1976

[2] Portugal Futurista, Edição Facsimilada, Lisboa, Contexto Editora, 1981

[3] Por exemplo, Herbert Read na obra A Filosofia da Arte Moderna, Lisboa, Ulisseia, s.d., declara : “Discutindo as origens do Naturalismo na Idade Média, Max Dvorák apontou o perigo de tentar fixar um “começo” para uma coisa tão subterrânea como o primeiro desenvolvimento de um estilo artístico. O movimento moderno na arte, que de uma maneira geral constitui uma inversão do movimento que Dvorák discutia tão brilhantemente (…) não oferece excepção a esta regra. As suas origens são extremamente obscuras e, como raízes, procedem de diferentes níveis e direcções contraditórias”. P. 13-14.

Por seu turno, Nuno Júdice, no texto “O Futurismo em Portugal”, afirma: “Poderemos caracterizar o modernismo português como um reflexo do europeu, mas sem a diversidade e a policromia estética que aquele atingiu. Não se encontra feito, ainda, o balanço do que terá sido a actividade intelectual do modernismo, nem temos balizas cronológicas exactas (….)” in Portugal Futurista, op. cit.,p VIII.

[4] Como se sabe, por exigência da Santa-Rita Pintor, a sua família destruiu quase todas as suas obras após a sua morte. No decorrer da elaboração deste texto não consegui apurar quantas das suas obras subsistem efectivamente nos dias de hoje (as fontes são contraditórias a esse respeito). Assim, “Orpheu 2” reproduz as seguintes obras do pintor: “Estojo scientífico de uma cabeça + aparelho ocular + sobreposição dymanica visual + reflexos de ambiente x luz (Sensibilidade Mechanica)” de 1914, “Compenetração estática interior de uma cabeça – complementarismo congénito absoluto (Sensibilidade Litographica)” de 1912, “Syntese geometral de uma cabeça x infinito plastico de ambiente x transcendatalismo físico (Sensibilidade Radiographica)”de 1913, “Decomposição dynamica de uma mesa + estylo do movimento (Interseccionismo Plástico) de 1912. A ordem é a das páginas da revista em que surgem as reproduções, em páginas não numeradas, nem sequenciais. “Portugal Futurista” publicou: “Orfeu nos Infernos”, sem data, referindo a legenda que foi pintado quando o artista tinha 14 anos de idade e cursava a Escola de Belas Artes de Lisboa, sendo, portanto, datável de 1903 (o pintor nasceu em 1889) p. 7, “Perspectiva dinâmica de um quarto de acordar” (1912) p. 8, “Cabeça = Linha-Força. Complementarismo orgânico” 1913, p. 9, “Abstracção Congenita Intuitiva (Materia-Força)” 1915, p. 10. No caso destas reproduções, e  ao contrário do que acontecia em “Orpheu 2”, estas reproduções ilustram o texto “Manifeste des Peintres Futuristes”, de 1910, onde dialogam com pinturas de Souza-Cardoso, pretendendo-se desse modo relacionar estreitamente a obra dos dois pintores portugueses com o projecto estético do Manifesto.  A grafia dos títulos das obras corresponde exactamente à grafia original com que estão legendadas nas páginas das duas publicações.

[5] Citado por João Pedro George em O Super-Camões – Biografia de Fernando Pessoa, Lisboa, D. Quixote, 2022, pp. 400-401

[6][6] FRANÇA, José-Augusto, O Modernismo Na Arte Portuguesa, Lisboa, ICALP – Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991, p. 23

[7][7] PESSOA, Fernando, Textos de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Ática, 1980, p. 251-255

[8] Note-se que Campos só confere a categoria de não-aristotélico aos poemas de Wal Whitman,  aos poemas de Alberto Caeiro e às duas Odes que publicou em Orpheu (Ode Triunfal e Ode Marítima, deixando de fora todas as outras produções artísticas, o que significa que nem a pintura, nem a escultura tinham ainda atingido esse estatuto.


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