ZERKALO / O ESPELHO (Andrei Tarkovsky, 1974)
Escombros, destroços, velhos utensílios deitados no fundo de um poço; troncos apodrecidos devorados pelos musgos ou pelas plantas predadoras; restos de fogueiras incandescentes; borrascas ventosas em imagens agitadas do espírito surgidas no meio dos campos de trigo que se arrepiam até ao limite de uma floresta familiar, onde alguém se perde e se encontra, desfeito por gritos mudos, incinerado pelo último sol; pólos de cabos eléctricos plantados como lascas sobre a terra; a casa feita de tábuas negras perdida entre a memória e o sono; a família entregue ao tempo suspenso da espera; a mulher elegante com a paixão que dura face à ausência do homem alistado na guerra; a prova solitária do combate, resistência dos corpos de mulheres-mães guardiãs das crianças; cultura do esquecimento atravessada pela cobarfdia ou de remorsos sem fundo, sentido obrigatório do dever, que impõe o arbitrário da força ou do poder, atravessado pelo espelho sem tingimento.
Uma povoação deserta, crepuscular, submergida sob as vagas de uma chuva incessante; ao longo do passeio apenas uma viatura afogada pelo imprevisto desse dilúvio; uma corrida através dos corredores de um jornal; a travessia de uma sala de rotativas; o encontro hostil num escritório da redação e palavras em torno de um texto aproximativo; a travessia da História nas ruas de Madrid ou das ruínas de Barcelona; o chapinhar dos soldados nas lamas geladas do Ladoga a fim de socorrerem S. Petersburgo cercada durante 900 dias; Pequim assolada por multidões; enfim, Hiroxima como o mostruário da monstruosidade histórica.
Mesmo se, do filme, o enquadramento sublimemente dominado, a luz atravessada por sonoridades e ruídos tomados de empréstimo à vida quotidiana acordes musicais sabiamente pesquisados como os da Paixão (S. Mateus) de Bach... mesmo se a intenção de Tarkovsky se excede a condensar as durações múltiplas e heterogéneas do espelho autobiográfico (o espelho reflecte o que se apresenta à sua frente de real, mas tem que se ter em conta o virtual que provêm do outro lado), qualquer que seja o jogo de óptica que um espelho nos oferece aqui, essa maneira de filmar, de ir para o mundo, de dizer o mundo: é a experiência como horizonte e retorno ao ser próprio das coisas, que confere ao filme a sua tonalidade fenomenológica (o que aparece, e aparecendo vem a ser), supondo que o recurso a uma noção filosófica nos possa servir para colocar em evidência, sempre inédita e simultânea, o surgimento da vida em acordo com o pensamento que a acolhe e a transmite (filmicamente) depois de serem montados, inseparáveis os dois, da profundidade do mundo e da sua realidade objectiva e transitória.
Profecia ou presciência de narrativas a construir ? Mas alguma coisa parece sempre já ter sido aí e somos colocados perante uma dupla possibilidade: de acreditação do mundo: ou antes escolher a sua decifração pela fé que nasce do sagrado medo que nasce do âmago da alma e que recomenda a pequena filocalia da oração do coração, ou ainda, através um realismo puro e duro remeter-se corajosamente às formas do mundo tal como a mão do homem as afeiçoa e as fronta, entregue ele mesmo ao desejo, ao afazer, à acumulação, ao espelhar do poder: as antecâmaras da morte.
O MUSEU IMAGINÁRIO DE ANDREI TARKOVSKY
Caspar David Friedrich "Ruínas de Eldena"
Andrei Tarkovsky - "Nostalghia"
Andrei Tarkovsky, "Zerkalo"
Andrei Tarkovsky "Nostalghia"
Que nos resta, então, nessas antecâmaras da morte ? Na minha consciência, na nossa consciência, imprime-se a sensação, que ocorre muitas vezes nos sonhos, de um entendimento tão completo, total e absoluto do sentido que o passado confere ao presente. Ou melhor, do insuportável peso que o passado impõe ao presente, a ponto de usurpar a liberdade individual. E, no entanto, quais são as verdades que o espelho nos devolve e com as quais nos confrontamos ? As da sensação: cor, som, cheiro. E conjuntamente com estas as afecções primárias: ternura, amor, medo, remorso, rejeição. Toda a felicidade contém um elemento de ansiedade, que dela é inseparável. Mais uma antecâmara da morte.
Os debates sobre filosofia e literatura no mundo ocidental nos últimos anos mostram uma tendência para a negação das relações entre o discurso e a autenticidade. A linguagem, tem sido notado, fala-nos (em vez de ser ao contrário, ou seja, em vez de sermos nós a falar a linguagem). O Eu é uma ficção, uma entidade metafísica impossível de sustentar. No tumulto das ideologias (concomitantemente com o declínio da crença religiosa) cresceu um avassalador cepticismo acerca do poder da linguagem encontrar e dominar a verdade. Isto é vivenciado explicitamente, por exemplo, nos filmes de Jean-Luc Godard, com os seus múltiplos e irónicos textos em colisão uns com os outros, combatendo e dissolvendo-se. Mas esta é uma assumpção que, de um modo geral, se moveu para o contexto do discurso académico: de facto, a condição do Modernismo - ou do Pós-Modernismo - é por ela configurado.
Os argumentos filosóficos específicos, a favor ou contra essa tese, são, pela sua natureza complexos; e, naturalmente, num nível intuitivo, Tarkovsky não está preocupado com eles. Tudo o que podemos dizer é que o cineasta, na sua crença de uma conexão necessária entre linguagem e verdade, se coloca no pólo oposto ao modernista Godard. E, por isso, o poder da palavra para definir a verdade é o único artigo central de fé expresso por Tarkovsky em "Zerkalo".
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