sexta-feira, 30 de junho de 2023

PELA TERRA

 



ZERKALO / O ESPELHO (Andrei Tarkovsky, 1974)


Escombros, destroços, velhos utensílios deitados no fundo de um poço; troncos apodrecidos devorados pelos musgos ou pelas plantas predadoras; restos de fogueiras incandescentes; borrascas ventosas em imagens agitadas do espírito surgidas no meio dos campos de trigo que se arrepiam até ao limite de uma floresta familiar, onde alguém se perde e se encontra, desfeito por gritos mudos, incinerado pelo último sol; pólos de cabos eléctricos plantados como lascas sobre a terra; a casa feita de tábuas negras perdida entre a memória e o sono; a família entregue ao tempo suspenso da espera; a mulher elegante com a paixão que dura face à ausência do homem alistado na guerra; a prova solitária do combate, resistência dos corpos de mulheres-mães guardiãs das crianças; cultura do esquecimento atravessada pela cobarfdia ou de remorsos sem fundo, sentido obrigatório do dever, que impõe o arbitrário da força ou do poder, atravessado pelo espelho sem tingimento.
Uma povoação deserta, crepuscular, submergida sob as vagas de uma chuva incessante; ao longo do passeio apenas uma viatura afogada pelo imprevisto desse dilúvio; uma corrida através dos corredores de um jornal; a travessia de uma sala de rotativas; o encontro hostil num escritório da redação e palavras em torno de um texto aproximativo; a travessia da História nas ruas de Madrid ou das ruínas de Barcelona; o chapinhar dos soldados nas lamas geladas do Ladoga a fim de socorrerem S. Petersburgo cercada durante 900 dias; Pequim assolada por multidões; enfim, Hiroxima como o mostruário da monstruosidade histórica.
Mesmo se, do filme, o enquadramento sublimemente dominado, a luz atravessada por sonoridades e ruídos tomados de empréstimo à vida quotidiana acordes musicais sabiamente pesquisados como os da Paixão (S. Mateus) de Bach... mesmo se a intenção de Tarkovsky se excede a condensar as durações múltiplas e heterogéneas do espelho autobiográfico (o espelho reflecte o que se apresenta à sua frente de real, mas tem que se ter em conta o virtual que provêm do outro lado), qualquer que seja o jogo de óptica que um espelho nos oferece aqui, essa maneira de filmar, de ir para o mundo, de dizer o mundo: é a experiência como horizonte e retorno ao ser próprio das coisas, que confere ao filme a sua tonalidade fenomenológica (o que aparece, e aparecendo vem a ser), supondo que o recurso a uma noção filosófica nos possa servir para colocar em evidência, sempre inédita e simultânea, o surgimento da vida em acordo com o pensamento que a acolhe e a transmite (filmicamente) depois de serem montados, inseparáveis os dois, da profundidade do mundo e da sua realidade objectiva e transitória.
Profecia ou presciência de narrativas a construir ? Mas alguma coisa parece sempre já ter sido aí e somos colocados perante uma dupla possibilidade: de acreditação do mundo: ou antes escolher a sua decifração pela fé que nasce do sagrado medo que nasce do âmago da alma e que recomenda a pequena filocalia da oração do coração, ou ainda, através um realismo puro e duro remeter-se corajosamente às formas do mundo tal como a mão do homem as afeiçoa e as fronta, entregue ele mesmo ao desejo, ao afazer, à acumulação, ao espelhar do poder: as antecâmaras da morte.
 
O MUSEU IMAGINÁRIO DE ANDREI TARKOVSKY


                                                Caspar David Friedrich "Ruínas de Eldena"



Andrei Tarkovsky - "Nostalghia" 




Andrei Tarkovsky, "Zerkalo"




                                                    Leonardo da Vinci "Ginevra de Benci"



Andrei Tarkovsky "Solaris"




Leonardo da Vinci "Desenho de mãos"





                                            Andrei Tarkovsky "Zerkalo"

                        
                                                 

                                                           
                                                        Andrei Tarkovsky "Nostalghia"

Que nos resta, então, nessas antecâmaras da morte ?  Na minha consciência, na nossa consciência, imprime-se a sensação, que ocorre muitas vezes nos sonhos, de um entendimento tão completo, total e absoluto do sentido que o passado confere ao presente. Ou melhor, do insuportável peso que o passado impõe ao presente, a ponto de usurpar a liberdade individual. E, no entanto, quais são as verdades que o espelho nos devolve  e com as quais nos confrontamos ? As da sensação: cor, som, cheiro. E conjuntamente com estas as afecções primárias: ternura, amor, medo, remorso, rejeição. Toda a felicidade contém um elemento de ansiedade, que dela é inseparável. Mais uma antecâmara da morte.
Os debates sobre filosofia e literatura no mundo ocidental nos últimos anos mostram uma tendência para a negação das relações entre o discurso e a autenticidade. A linguagem, tem sido notado, fala-nos (em vez de ser ao contrário, ou seja, em vez de sermos nós a falar a linguagem). O Eu é uma ficção, uma entidade metafísica impossível de sustentar. No tumulto das ideologias (concomitantemente com o declínio da crença religiosa) cresceu um avassalador cepticismo acerca do poder da linguagem encontrar e dominar a verdade. Isto é vivenciado explicitamente, por exemplo, nos filmes de Jean-Luc Godard, com os seus múltiplos e irónicos textos em colisão uns com os outros, combatendo e dissolvendo-se. Mas esta é uma assumpção que, de um modo geral, se moveu para o contexto do discurso académico: de facto, a condição do Modernismo - ou do Pós-Modernismo - é por ela configurado.
Os argumentos filosóficos específicos, a favor ou contra essa tese, são, pela sua natureza complexos; e, naturalmente, num nível intuitivo, Tarkovsky não está preocupado com eles. Tudo o que podemos dizer é que o cineasta, na sua crença de uma conexão necessária entre linguagem e verdade, se coloca no pólo oposto ao modernista Godard. E, por isso, o poder da palavra para definir a verdade é o único artigo central de fé expresso por Tarkovsky em "Zerkalo".

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