ZERKALO / O ESPELHO (Andrei Tarkovsky, 1974)
ZERKALO / O ESPELHO (Andrei Tarkovsky, 1974)
Primeiro escolhe-se uma atmosfera agradável, digamos um fim
de tarde de Verão, num cenário urbano meio degradado, entre o antigo e o
remodelado às três pancadas. Uma esplanada breve com duas mesas cá fora, dois
ou três figurantes sentados mesmo ao lado de uma porta que dá para o interior
de um café escuro. Talvez fitas penduradas na entrada para espantar moscas.
Depois na parede esfarolada a cara de alguém idoso, sorridente e talvez uma
frase feita escrita por baixo para chamar a atenção. Panorâmica lenta da
esquerda para a direita aberta em Plano Médio. Numa das mesas um jovem está
atento a ler com uma mão debaixo do livro e outra a fazer festas distraídas à
chávena do café. Um gato que não foi contratado entra em campo e resolve
deitar-se mesmo no enfiamento da entrada do café atrapalhando a circulação para
quem quer entrar e sair. O empregado tem tempo de o ver antes de sair disparado
com a bandeja das bebidas. Faz uma breve pirueta de tango, meia volta atrás
para diminuir a velocidade e está pronto a contornar o obstáculo que aproveita
para fazer a sua higiene diária. Na outra mesa um casal de namorados cujos
corpos reclamam do calor espojados nas cadeiras. Tocam-se com a ponta dos dedos
remetendo ao mínimo o aumento das temperaturas de cada um. Na esquina logo a
seguir à esplanada um velho sentado no chão com uma bengala na mão e um saco de
plástico na outra. Respira devagar com o olhar inclinado para cima. Teve que
fazer uma paragem para retomar o fôlego antes de prosseguir. O empregado volta
para dentro, estende a mão para dentro do balcão e encontra a cerveja
interrompida pelo último serviço. Leva o copo à boca e mata o resto da sede. O leitor
fecha o livro e fica a meditar no que leu, os namorados pedem a conta e o velho
consegue finalmente pôr-se de pé e arrancar. O gato aproveita uma sombra numa
cadeira vazia e prepara-se para a sesta. No ar não corre uma brisa. O cenário
continua a desfazer-se, a frase por baixo da cara desenhada na parede deixa de
se conseguir ler e tudo fica em degradação lenta até se fazer ouvir a voz do
realizador.
Corta!
Artur
Há um bar mal iluminado e triste num canto perdido da cidade
com homens lá dentro. Há uma mulher velha ao balcão que aparece sempre a meio
da tarde e sai pela hora do jantar sem dizer nada, cambaleante com um saco de
plástico na mão. Há um corvo que esvoaça de tempos a tempos por cima dos
clientes e que escolhe um distraído para lhe roubar a cerveja. O dono e o
empregado embalam uma dança sonolenta atrás do balcão ao ritmo dos pedidos. Há
uma música de fundo que mal se ouve, um piano hesitante que tropeça no ar mas
que quase ninguém ouve. No bar mal iluminado há sombras e fantasmas de gente
ora sentada ora em pé a fumar cigarros intermináveis como se estivessem á
espera de qualquer coisa. Qualquer coisa que nunca chega. Ao fundo há um
maestro frustrado que conduz uma orquestra imaginária de vez em quando em
movimentos enérgicos. Depois senta-se, agarra a caneca de cerveja com muito
cuidado e levanta-a com os braços muito magros e trémulos. Um desgosto de amor
tirou-lhe a força e a vontade. Sobrou-lhe o talento e a arte que de nada lhe
servem. No bar mal iluminado há gente que se abstém de sentir, de viver, de ser
gente. Há fantasmas deambulantes que esperam qualquer coisa sem nada esperar.
Um espaço onde já tinha sido uma igreja deu lugar a outra religião com rituais
e deuses diferentes. No espaço mal iluminado cheio de seres há o vazio da
escuridão e o testemunho dos copos a tentar explicar que alguma coisa se vai
passando por ali. Mas ninguém liga, ninguém quer saber. Amanhã o prédio será
demolido para dar lugar a um condomínio de luxo, ou um centro de lojas, ou um
parque de estacionamento. Amanhã talvez alguma coisa aconteça ou talvez tudo
fique na mesma e os fantasmas continuarão a reunir-se ali debaixo de uma música
que mal se ouve ao lado de um maestro que conduz uma orquestra imaginária e um
corvo bêbado que já não consegue levantar voo. E em cima do balcão um livro de
capa azul ao alto. Um livro qualquer a quem ninguém presta atenção, único
objecto em pé num cenário deitado, adormecido, esquecido no tempo
Artur
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo,
É do que nasce, e não meu.
Fernando Pessoa
A
minha abordagem do modernismo na arte portuguesa centra-se em três publicações
que nos fornecem material crítico para uma das vertentes cruciais desse mesmo
modernismo e que se abriga sob a designação Futurismo. São elas: o primeiro e
segundo números de “Orpheu” [1] e “Portugal Futurista” [2]. A escolha da segunda
destas publicações resulta de a mesma conter não só o contributo de Santa-Rita
Pintor (Guilherme Santa-Rita), José de Almada Negreiros e Amadeo de
Souza-Cardoso, como também textos e manifestos que constituem a estrutura
teórica e o programa estético do movimento. Provisoriamente, chamemos-lhe
“movimento”, designação e definição que está longe de ser consensual, como
veremos adiante. Quanto a “Orpheu I”, embora numa vertente eminentemente
literária, é um somatório e um sintoma de uma certa efervescência que se apossa
de um conjunto de poetas, escritores e artistas - e artistas/escritores como no caso de Almada
Negreiros -, e que constituirá o motor da revolução estética que constantemente
reclamam. No caso de “Orpheu 2”, torna-se mais evidente o diálogo entre as
reproduções de obras de Santa-Rita Pintor e os textos literários que integram a
edição.
Por
outro lado, coloca-se aqui a questão de saber se as duas publicações determinam
cronologicamente o nascimento do movimento e da revolução artística que
reclamava. É complexo, difícil e redutor atribuir datas precisas ao nascimento
de movimentos artísticos, sem ponderar devidamente a sua génese,
prolongamentos, ramificações e, por que não ?, a sua posteridade, quando não
são acompanhados do tipo de elaboração teórica e programática, o que não é o é
o caso do Futurismo português [3]; mesmo não tendo como base
um Manifesto semelhante aos que fundaram diversos movimentos de vanguardas
artísticas do século XX, como é exemplo substancial o do próprio movimento
futurista italiano, o Futurismo português tem nas páginas desta revista
abundantes bases teóricas e programáticas que sustentam um projecto estético
que não só encontra nesses textos um fundamento auto-reflexivo, como também um
metadiscurso artístico cujo alcance tem que ser avaliado em paralelo com os
próprios objectos artísticos. Aliás, não fora a circunstância de “Orpheu 2” e
“Portugal Futurista” terem reproduzido as obras de Santa-Rita Pintor, hoje não
teríamos acesso às mesmas, ao contrário do que acontece com Almada Negreiros e
Souza-Cardoso[4].
Refira-se, a esse propósito, que, no caso de “Orpheu 2”, essas reproduções
adquirem um valor autónomo e auto-representativo, isto é, não servem de suporte
nem de ilustração aos textos escritos, circunstância absolutamente inédita no
panorama editorial da época.
Tendo
já aludido brevemente ao modo como essas publicações se constituem como
alternativas textuais a um Manifesto futurista português num sentido estrito
que o conceito adquire, importa agora especificar de que modo a correlação
entre textos e objectos artísticos se consubstancia. Para respeitar a
cronologia, relembremos as datas de publicação: “Orpheu 1” e “Orpheu 2” foram
publicadas em 1915 e “Portugal Futurista” em 1917, portanto com uma variação de
6 e 8 anos respectivamente em relação à publicação publicação de “Fundação e
Manifesto do Futurismo” de Marinetti, publicado no “Figaro” de Paris em 1909.
Sintomáticas dessa correlação, ainda numa base estritamente literária, são as
dedicatórias a Santa-Rita Pintor dos poemas de Mário de Sá-Carneiro Poemas Sem
Suporte” e de “Ode Marítima” de Álvaro de Campos em “Orpheu 2”. Tal como
sintomática é a “Ode Triunfal”, também de Álvaro de Campos, poema publicado em
“Orpheu 1”. Aplico os adjectivos “sintomáticas”, “sintomático” ao arrepio da
própria convicção de Álvaro de Campos, como passo a explicar: a crítica e a
teoria literária, além do próprio escritor, são unânimes em proclamar que ambos
os poemas pertencem a uma corrente denominada “Sensacionismo”, corrente essa
que só tangencialmente se relaciona com o Futurismo. Aliás, o próprio Álvaro de
Campos caracteriza essa relação do seguinte modo, em carta dirigida ao “Diário
de Notícias” de 4 de Junho de 1915:
A
atitude principal do futurismo é a Objectividade Absoluta, a eliminação da
arte, de tudo quanto é alma, quanto é sentimento, emoção,
lirismo, subjectividade em suma. O futurismo é dinâmico e analítico por
excelência. Ora se há coisa que [seja] típica do Interseccionismo (tal é o nome
do movimento português) é a subjectividade excessiva, a síntese levada ao
máximo, o exagero da atitude estática. “Drama estático”, mesmo, se
intitula uma peça, inserta no 1º número do Orpheu, do sr. Fernando
Pessoa. E o tédio, o sonho, a abstracção são as atitudes usuais dos poetas meus
colegas naquela brilhante revista.
(…)
No
2º número do Orpheu virá colaboração realmente futurista,
é certo. Então se poderá ver a diferença, se bem que seja, não literária, mas
pictural essa colaboração. São quatro quadros que emanam da alta sensibilidade
moderna do meu amigo Santa-Rita Pintor.
(…)
A
minha Ode Triunfal, no 1º número do Orpheu é a única coisa que se aproxima do futurismo. Mas aproxima-se
pelo assunto que me inspirou, não pela realização – e em arte a forma de
realizar é que caracteriza e distingue as correntes e as escolas. [5]
Portanto,
Álvaro de Campos, além de anunciar que existirá um número 2 da revista, ao
mesmo tempo afirma uma “colaboração futurista” pela mão de Santa-Rita Pintor.
Mais ainda, sugere que a haver diferença entre Futurismo, Interseccionismo,
Paúlico, etc., é da ordem do pictórico (pictural) e não de ordem literária. Só
assim se pode explicar a inclusão dos poemas “Ficções do Interlúdio” do
ortónimo e do “Ultimatum” do heterónimo Álvaro de Campos em “Portugal
Futurista” que é, a todos os títulos, a alternativa, ou versão portuguesa, do
Manifesto futurista. Deixo para mais tarde o exame de um texto que, esse sim, é
o verdadeiro manifesto do Futurismo português a posteriori, uma
originalidade absoluta, visto que tal conjunto de propostas e reflexões vê a
luz do dia quando do movimento futurista em Portugal já nada, ou pouco,
restava, senão alguns dos seus ecos, variações ou prolongamentos, sobretudo na
obra pictórica de Almada Negreiros.
Todo
modo, devemos contrastar, anotando a contradição objectiva da afirmação de
Álvaro de Campos com o texto “Santa Rita Pintor”, publicado a páginas 3-5 do
“Portugal Futurista” e assinado por Bettencourt-Rebelo, que caracteriza
Santa-Rita como uma sensibilidade mediúnica e universal, capaz de não se
limitar a uma reprodução fotográfica daquilo que observa, sendo as suas obras
atravessadas por interpretações emocionais e filosóficas da realidade, que
representa em configurações abstractas e harmoniosas. Nesse sentido, creio que
não se torna criticamente difícil conciliar a obra de Santa-Rita Pintor com
alguns princípios proclamados pelo Manifesto Futurista e com as suas práticas
artísticas, nomeadamente no que diz respeito ao conceito de dinamismo universal
que deveria ser representado como sensação dinâmica: um fluxo contínuo de
movimento, em que os objectos representados se interrelacionavam, se
interpenetravam no espaço e no tempo, dimensões em que o carácter
permanentemente mutável da realidade não permitia nenhuma forma de fixação.
Assim na pintura “Decomposição dynamica de uma mesa + estylo do movimento” –
correspondente à sensibilidade “Interseccionismo Plastico”, de 1912: no espaço
de representação sobrepõem-se (interpenetram-se) sucessivos elementos gráficos,
com origens e natureza iconográficos diversos, assimetricamente dispostos,
cruzados por linhas que quebram os diversos planos, frustrando a tentação de
olhar para os elementos sobrepostos como se se tratasse de uma composição, ou
disposição, que de outro modo olharíamos como acumulação inerte de elementos e
a tendência para “adivinhar” ou pressupor a forma dos elementos que só vemos
parcialmente e que só parcialmente são representados, e como que desviando o
nosso olhar temos ainda grafismos que, na periferia do centro (na realidade,
ligeiramente excêntrico) não conseguem desvanecer, diminuir a atração constituída pelo centro
gravitacional que é produzido pela composição principal. Se é verdade que, como
diz, José-Augusto França : “Dessa obra restou, porém, uma “cabeça”
cubo-futurista datável de 1912 que, por isso, será a primeira obra “moderna”
produzida por artista nacional” [6], então, cronologicamente,
esta seria a segunda, acrescentando à tonalidade provocatória da primeira, ou
cronologicamente primeira, um desafio às regras da percepção e acrescentando
uma surpreendente dimensão auto-reflexiva de revelação das técnicas empregues,
como se o pintor nos convidasse para uma observação directa quer dos meios
materiais empregues na elaboração do quadro, quer do modo como forjou a
linguagem que expressa o motivo representado.
[1] Orpheu,
2ª reedição do volume I, Lisboa, Edições Ática, 1971 e Orpheu 2, Lisboa,
Edições Ática, 1976
[2] Portugal
Futurista, Edição Facsimilada, Lisboa, Contexto Editora, 1981
[3] Por
exemplo, Herbert Read na obra A Filosofia da Arte Moderna, Lisboa,
Ulisseia, s.d., declara : “Discutindo as origens do Naturalismo na Idade Média,
Max Dvorák apontou o perigo de tentar fixar um “começo” para uma coisa tão
subterrânea como o primeiro desenvolvimento de um estilo artístico. O movimento
moderno na arte, que de uma maneira geral constitui uma inversão do movimento
que Dvorák discutia tão brilhantemente (…) não oferece excepção a esta regra.
As suas origens são extremamente obscuras e, como raízes, procedem de
diferentes níveis e direcções contraditórias”. P. 13-14.
Por seu turno, Nuno Júdice, no texto “O Futurismo em
Portugal”, afirma: “Poderemos caracterizar o modernismo português como um
reflexo do europeu, mas sem a diversidade e a policromia estética que aquele
atingiu. Não se encontra feito, ainda, o balanço do que terá sido a actividade
intelectual do modernismo, nem temos balizas cronológicas exactas (….)” in Portugal
Futurista, op. cit.,p VIII.
[4] Como se
sabe, por exigência da Santa-Rita Pintor, a sua família destruiu quase todas as
suas obras após a sua morte. No decorrer da elaboração deste texto não consegui
apurar quantas das suas obras subsistem efectivamente nos dias de hoje (as
fontes são contraditórias a esse respeito). Assim, “Orpheu 2” reproduz as
seguintes obras do pintor: “Estojo scientífico de uma cabeça + aparelho ocular
+ sobreposição dymanica visual + reflexos de ambiente x luz (Sensibilidade
Mechanica)” de 1914, “Compenetração estática interior de uma cabeça –
complementarismo congénito absoluto (Sensibilidade Litographica)” de 1912,
“Syntese geometral de uma cabeça x infinito plastico de ambiente x
transcendatalismo físico (Sensibilidade Radiographica)”de 1913, “Decomposição
dynamica de uma mesa + estylo do movimento (Interseccionismo Plástico) de 1912.
A ordem é a das páginas da revista em que surgem as reproduções, em páginas não
numeradas, nem sequenciais. “Portugal Futurista” publicou: “Orfeu nos
Infernos”, sem data, referindo a legenda que foi pintado quando o artista tinha
14 anos de idade e cursava a Escola de Belas Artes de Lisboa, sendo, portanto,
datável de 1903 (o pintor nasceu em 1889) p. 7, “Perspectiva dinâmica de um
quarto de acordar” (1912) p. 8, “Cabeça = Linha-Força. Complementarismo
orgânico” 1913, p. 9, “Abstracção Congenita Intuitiva (Materia-Força)” 1915, p.
10. No caso destas reproduções, e ao
contrário do que acontecia em “Orpheu 2”, estas reproduções ilustram o texto
“Manifeste des Peintres Futuristes”, de 1910, onde dialogam com pinturas de
Souza-Cardoso, pretendendo-se desse modo relacionar estreitamente a obra dos
dois pintores portugueses com o projecto estético do Manifesto. A grafia dos títulos das obras corresponde
exactamente à grafia original com que estão legendadas nas páginas das duas
publicações.
[5] Citado
por João Pedro George em O Super-Camões – Biografia de Fernando Pessoa,
Lisboa, D. Quixote, 2022, pp. 400-401
[6][6]
FRANÇA, José-Augusto, O Modernismo Na Arte Portuguesa, Lisboa, ICALP –
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991, p. 23
[7][7]
PESSOA, Fernando, Textos de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Ática,
1980, p. 251-255
[8] Note-se
que Campos só confere a categoria de não-aristotélico aos poemas de Wal
Whitman, aos poemas de Alberto Caeiro e
às duas Odes que publicou em Orpheu (Ode Triunfal e Ode Marítima,
deixando de fora todas as outras produções artísticas, o que significa que nem
a pintura, nem a escultura tinham ainda atingido esse estatuto.
Mesmo que reescreva ontem
A guerra, a guerra, a guerra realmente,
Excessivamente aqui, horror, a guerra real...
Com a sua realidade de gente que morre realmente,
Com a sua estratégia realmente aplicada a exércitos reais compostos
de gente real,
E as suas consequências, não cousas contadas em livros,
Mas frias verdades, de estragos realmente humanos, mortes de
quem morre, na verdade,
E o Sol também real sobre a terra também real,
Reais em acto e a mesma merda no meio disto tudo!
2 de Agosto de 1914
Álvaro de Campos