quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

2023.....12.....28





 Vigésimo oitavo dia do décimo segundo mês de dois mil e vinte e três.

Ela aguarda, ele aguarda, nós aguardamos.
As palhinhas arderam na última explosão.
Ela aguardava e ele também.
Nós já não.
Ela e ele fizeram uma pira de pano rasgado,
da carne fria,
do corpo que jazia entre os escombros soterrado.
Ela guarda a lembrança com a mão no ventre dorido e ele guarda-lhe as costas vergadas sob o manto comprido.
Nós já não.
Desligamos com um toque no botão
e eles relembram a cada clarão.
Os copos tilintam, as luzes cintilam,
as gargalhadas abafam os gritos dos ignorados.
Estamos longe na mesma mesa sentados,
estamos juntos nesta Terra de aportados.
Quem dá mais?
Quem ganha nestes jogos desleais?
Eles aguardam que os outros se recordem
das palavras dadas na mesa dos comensais.
Às Marias em nós, aos Josés em vós, às crianças em cada um de nós. Que a esperança perdure a cada dia que nasce,
a cada hora que passe.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

AFLUENTE DE UM SERENO DEVIR


 


Décimo primeiro dia do décimo segundo mês de dois mil e vinte e três.
Neste mês de todas as esperanças anima-me o olhar da temperança e o sorriso da minha criança.
Gostaria de descobrir o tal botão de ligar e desligar, igual ao da televisão, um interruptor que evitasse andar sempre de coração na mão. Dizem que depois da tempestade vem a bonança, que as provações são procedidas de alegrias aos milhões e que a paciência não se constrói sobre rebeliões. Todas as semanas, por duas vezes em cada uma, tenho tratado do que me atormenta, como se eu fosse a única bomba que rebenta, o único farol iluminado por dentro da densa bruma.
Redescobri a respiração consciente, as partidas da mente e uma forma de ser mais congruente comigo e não com toda a gente.
Neste mês de todas as esperanças e no ano que finda, ambos se revelaram os piores no que diz respeito a expectativas, porém há muito, e sempre haverá, onde me debruçar, nem que seja para me ajudar a levantar, um dia de cada vez, passo a passo, golpe de asa a golpe de asa, há o sol por detrás de cada nuvem, a estrela teimosa, a brisa serena e o calor dum abraço e, sobretudo o sorriso da minha criança hoje, dos meninos que nascerão apesar de todos os Herodes e dos que morrem por culpa de carrascos sem coração.
Passo a passo, compasso e dou-me espaço, respiro e abraço. Rio-me sendo rio, alongo-me entre as montanhas,
estendo-me até à foz do meu presente.
Sou dádiva, ávida de vida e do que há-de vir, afluente dum sereno devir.

Elsa Bettencourt

sábado, 9 de dezembro de 2023

FAIRYTALE OF NEW YORK - SINGING AND DANCING AT SHANE McGOWAN'S FUNERAL

A rousing performance of 'Fairytale of New York' was given by Glen Hansard and Lisa O'Neill at the funeral of Shane MacGowan in Nenagh, Co Tipperary. The performace was greeted by cheers inside and outside the church.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

FAIRYTALE OF NEW YORK

 


It was Christmas Eve babeIn the drunk tankAn old man said to me, won't see another oneAnd then he sang a songThe Rare Old Mountain DewI turned my face awayAnd dreamed about you
Got on a lucky oneCame in eighteen to oneI've got a feelingThis year's for me and youSo happy ChristmasI love you babyI can see a better timeWhen all our dreams come true
They've got cars big as barsThey've got rivers of goldBut the wind goes right through youIt's no place for the oldWhen you first took my handOn a cold Christmas EveYou promised meBroadway was waiting for me
You were handsomeYou were prettyQueen of New York CityWhen the band finished playingThey howled out for moreSinatra was swingingAll the drunks they were singingWe kissed on a cornerThen danced through the night
The boys of the NYPD choirWere singing Galway BayAnd the bells were ringing outFor Christmas day
You're a bumYou're a punkYou're an old slut on junkLying there almost dead on a drip in that bedYou scumbag, you maggotYou cheap lousy faggotHappy Christmas your arseI pray God it's our last
The boys of the NYPD choirStill singing Galway BayAnd the bells are ringing outFor Christmas day
I could have been someoneWell so could anyoneYou took my dreams from meWhen I first found youI kept them with me babeI put them with my ownCan't make it all aloneI've built my dreams around you
The boys of the NYPD choirStill singing Galway BayAnd the bells are ringing outFor Christmas day

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

SHANE McGOWAN


 


                                                                          1957 - 2023

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

1 DE NOVEMBRO DE 1755


 


Hoje faz 268 anos que era Sábado e nessa manhã, Lisboa foi arrasada.
Era 1 de Novembro de 1755 e, apesar de ser Dia de Todos os Santos, nem eles, conseguiriam evitar a catástrofe. O Sismo de 1755, destruiu a cidade e provocou incêndios. Muitas pessoas fugiram em direcção ao Rio e foram engolidas por um Tsunami.

Nessa manhã de Sábado de 1755, logo cedo, centenas de igrejas começaram a encher-se de povo. Milhares de velas acesas. Repentinamente, comecou a ouvir-se um rugido, uma vibração semelhante à passagem de milhares de cavalos e carruagens. No ar, um odor a enxofre e, subitamente, durante sete minutos, a cidade foi sacudida três vezes. Os abalos provocaram o desmoronamento de Casas, Igrejas, Conventos((Carmo e Trindade) e nem o Paço Real, a Patriarcal e a recém inaugurada Opera do Tejo, escaparam. (D. José escapou porque, nesse dia estava na Real Quinta de Belém mas, não ganhou para o susto.... A partir desse dia, decidiu nunca mais viver num Palácio de Pedra. Por sua vontade, a familia Real e a Corte, viveriam na Real Barraca da Ajuda, onde faleceu em 1777.)
Devido a geometria da cidade , ainda um pouco medieval, o fogo facilmente se espalhou e, em minutos, toda a cidade ardia.
Pelas ruas milhares de pessoas perdidas, fugiam sem saber para onde. Tentavam chegar ao rio, ao Terreiro do Paço. Muitos tentavam embarcar nos barcos ancorados no rio.
De repente, o povo viu algo que nunca ninguém tinha testemunhado. As aguas do rio, recuaram, deixando a descoberto destroços de navio afundados no Tejo.
Apreensivos, os mais corajosos, atreveram-se a atravessar o rio.
De subito, um ruido, um urro que foi aumentando à medida que se aproximava do Terreiro do Paço.
Do Tejo, uma colossal parede de água escura, entrando barra adentro varreu a cidade por três vezes, levando tudo e todos à sua frente, apagando alguns incêndios, mas, matando milhares de pessoas. Pensa-se que o total, contando com desabamentos, incêndio e doenças, tenha sido entre 20.000 a 100.000. À data, a cidade de Lisboa tinha cerca de 250.000 habitantes.

De acordo com os estudos, o Terramoto de Lisboa não terá tido uma magnitude tão grande como se pensa. Ter-se-á situado nos 7,7 da escala de Ritcher e, terá tido o seu epicentro a Sul do Cabo São Vicente, possivelmente no banco de Gorrinje.
Devido à sua origem oceanica, provocou o Tsunami que não só varreu o litoral Português, como o Sul de Espanha, Marrocos, na Europa, o Sul de Inglaterra foi varrido por ondas de 3 Metros, Escócia, Finlândia.
O Tsunami também se fez sentir nas Caraíbas.

Três anos depois da Catástrofe, Lisboa já tinha um plano para a sua reconstrução. Seria o famoso plano de 1758, que se revelaria um verdadeiro terramoto na sociedade Portuguesa, afectando em particular a Alta Nobreza, sendo o motivo dos vários atentados contra o Rei e o seu Ministro... 

Ricardo Santos

terça-feira, 24 de outubro de 2023

FRIENDS WILL BE FRIENDS...




 

Se não houvesse espaço para uma pausa tudo seria muito mais difícil de aguentar. De vez em quando fazemos uma. Esquecemos o mundo e a vida por umas horas e juntamo-nos como costumamos fazer há uma vida inteira. Um jantar, um jogo de futebol na televisão e umas garrafas de vinho. As conversas de sempre que nunca se repetem, algumas memórias trocadas, a novidade dos netos para alguns. O nosso pequeno mundo construído em conjunto ao longo de décadas, a nossa bolha onde nada nos pode acontecer enquanto estivermos juntos, cada um vigilante do seu canto na mesma casa. Depois de levantar a mesa e colocar a louça na máquina, depois dos cafés, os sofás da sala e uma garrafa de whisky irlandês para ver o resumo dos golos. Por fim a breve assembleia com um único ponto na ordem de trabalhos: “O que é que vamos ouvir hoje?” E em breves instantes é eleita uma banda, um concerto para a continuidade do serão.

É sempre bom fazer uma pausa e falar um pouco à mesa do jantar com esta família onde todos têm lugar, onde todos se conhecem à exaustão, não havendo por isso, espaço nenhum para surpresas. Uma espécie de lar que fica na casa de cada um quando nos encontramos. Uma breve conversa e um longo silêncio porque não é preciso acrescentar mais nada que não se saiba já. Fica a música e a garrafa de whisky irlandês em cima da mesa, ficamos nós em cima do sofá com os gatos a passear pelos nossos colos como vigilantes do turno da noite a certificar que tudo está a correr bem. E por vezes viajamos dali para uma praia onde fomos adolescentes e corríamos o dia todo como selvagens sem nunca nos cansarmos, do mar para a areia, da areia para o mar, da mata a apanhar paus para uma fogueira, de uma paixão para a outra. Mas sempre nós, tribo antiga e solidária, especialista em pausas, especialistas em horas de alegria e bem estar. Ou continuamos a viajar com o Rock em som de fundo e vamos parar ao recreio da escola, à bicicleta que batia todos os recordes, às motas. Estremeço e regresso ao sofá. A Joana cabeceia o vazio de olhos fechados, depois acorda também. Olhamos um para o outro e sorrimos. O Pedro e a Mariana discutem acerca da utilização do comando da televisão. São onze da noite e parece que já são duas. Conseguimos ainda ouvir mais uma música antes de começarmos a sinfonia do Uber para nos levar a casa. Despedimo-nos uns dos outros entre risota e bocejos. Atiramos datas prováveis para o próximo encontro. Abraços e beijos e vamos indo que temos pressa de nos deitar.

A filha do Pedro um dia perguntou-me se tinha alguma ideia em relação ao segredo da longevidade da nossa amizade. Ao todo seremos uns dez ou quinze que se conhecem desde a adolescência, outros ainda mais atrás. Não foi preciso reflectir muito e a resposta saiu-me no automático :

“Acho que foi tomarmos conta uns dos outros…” respondi.

Se não foi isso que decidimos foi aquilo que fizemos ao longo de uma vida inteira. Não é interesse, não é amor, não é tristeza nem solidão. É algo muito maior que nos fez ter sempre a mão estendida para o outro, a observação distante mas atenta, a disponibilidade, a palavra solidária no tempo necessário. É qualquer coisa enraizada entre a tribo e a família e ao mesmo tempo muito mais antiga que a nossa própria noção de existência. Por vezes não foi suficiente e houve um ou outro que teve que sair mais cedo. Quando a força do exterior foi superior à nossa.

Nascemos numa realidade caótica e difícil de compreender, atravessámos essas terras do caos em quase toda a nossa existência e dificilmente teríamos sobrevivido se não nos tivéssemos uns aos outros . Não conseguimos compreender a morte mas isso pouco importa porque também nunca compreendemos a vida. Sairemos daqui no meio do caos e da destruição tal e qual como entrámos. Não interessa. Cá dentro de mim há algo que me diz que os que foram à frente vão estar à nossa espera para continuarmos o caminho. E também me parece que nesse trajecto não vão faltar concertos de Rock e whisky irlandês.

 

Artur


Imagens de Luis Pereira


quinta-feira, 5 de outubro de 2023

ENTRETEMPO


 


Tudo tem um tempo, o seu tempo. O tempo de correr e o tempo de gritar, o tempo de ficar quieto e o tempo de calar, de ficar escondido no canto escuro, de subir ao palco e declamar, o tempo de contemplar e o tempo de mergulhar no meio das vagas sem vagar nem espaço para respirar. Tudo tem um tempo e o tempo tem tudo nas suas mãos. A favor do vento, com a maré sorridente ou com falta de tempo na esquina do salto para o outro lado do tempo. As faces do tempo que nunca jogou póquer mas que se sabe vestir de enigmas, atravessar a mesa do jogo com os óculos escuros e a boca contorcida entre o sorriso e o sarcasmo. O tempo, sempre o tempo, o vento que corre apressado, o coelho da Alice sempre atrasado, o carro contra a árvore estampado que terminou o seu tempo. Nos cantos do espaço, no sucesso e no fracasso, apertado em máquinas para o contar, relógio de água, de areia ou sombra da luz solar, o tempo maior que tudo e mais alguma coisa, que não cabe em nenhuma tentativa de o medir porque respira sempre sem parar levando tudo à sua volta a explodir no marco do fim de cada coisa. O tempo entretempo que nos faz percorrer a linha da vida até à morte, sem sinal nem preferências, sem escolhas nem juízos. Apenas tempo no entretempo que dispomos para o conhecer. O tempo de estar e de fugir, o tempo de chorar e de sorrir, sem cor nem cheiro, um tanque cheio que esvazia para voltar a encher. O tempo de começar e o tempo de nada acontecer. E sobre o universo um manto infinito de tempo que não se move…apenas “É” a cada instante.

 

Artur


sexta-feira, 29 de setembro de 2023

INACTUAIS - NOTRE MUSIQUE / A NOSSA MÚSICA



A inactualidade como ontologia da actualidade

Michel Foucault
 

Notre Musique, de 2004, é uma continuação do discurso político, filosófico e poético sobre o nosso presente que Jean-Luc Godard vinha mantendo há longos anos, com uma nova e inusitada predicação: ler o futuro no passado é agora assumido como necessidade absoluta, como um determinismo ou uma predestinação incontornável, feita de fragmentos de filmes e de actualidades, que tecem uma quase insuportável rede de atrocidades e dor, em que a memória consigna à montagem a vontade de pensamento, retendo o tempo da tragédia: os símbolos do Inferno, do Purgatório e do Paraíso que declinam nesta nova Commedia a derrota da Razão. Porquê ? O silêncio contém a resposta. Soldados e vítimas desenham a crueldade e parecem ressoar a frase do filósofo Emmanuel Lévinas: "Só a humanidade desarmada merece esse nome". Epifânia do olhar, campo e contracampo, a lição de cinema continua, somente a união dos olhares constrói o discurso, abre a dialética, a imagem clama pela imagem, a forma o seu conteúdo, o castelo de Elsinor é um dado anagráfico, o castelo de Hamlet é o signo poético, Elsinore é o real, Hamlet o imaginário. O cinema é a razão, a verdade, o discurso que esmurra as coisas, mostrar é compreender, olhar é interpretar. A última praia, o Paraíso, é a ironia de um Pierrot le Fou revisitado, a dança, o Éden, os bosques e fluxos dos Umiliati de Jean-Marie Straub. A Razão como utopia, ainda o segredo do cinema, notre musique.

Em relação a For Ever Mozart e Éloge De L'Amour é um filme mais modesto (uma "petite musique" em suma, fermentando menos coisas "juste une conversation" (nem um discurso, nem um panfleto), uma troca de ideias (ou seja, imagens e sons), uma mistura de real e ficção a partir de uma actualidade política que fornece o ponto de partida de uma meditação de Godard que se apoia obsessivamente sobre os signos metafóricos e outros estigmas da História já visados nos filmes precedentes. A estrutura escolhida é a do tríptico : o quadro central (o reino do Purgatório) situa-se durante os Encontros Europeus do Livro, Sarajevo, Outono de 2002. Mais curtos, e mais conceptuais e plásticos (o Inferno, o Paraíso), os dois quadros laterais enquadram - ou melhor, precedem e seguem-se, já que estamos no cinema, e onde mais poderíamos estar ?) - o motivo principal como que para o fazer ressoar (no ruído do mundo) e raciocinar (segundo a teoria da dúvida e a prática de colocar em cena e à prova o autor-filósofo).

O inferno é a guerra das imagens (os cavaleiros teutónicos de Alexandre Nevsky), mas também a ideologia (a navegação dos Anges du Péché ou a bandeira americana flutuando no capot de um automóvel) como em Histoire(s) du Cinéma ou um filme de Pelechian colorizado numa vaga de lava incandescente carreando o horror. O paraíso é simultaneamente muito belo (o rosto majestático da jovem mulher) e derrisório: por detrás de um posto de controle mantido por fuzileiros americanos, situa-se um bosque onde se joga à bola em fato de banho como num acampamento um pouco "grunge". Mas pelo olhar, jurar-se-ia que a tristeza durará para sempre (Van Gogh/Pialat).

Godard ele mesmo (um pouco mais sorridente, ou menos soturno do que é costume) confere uma semelhança de organização à narrativa do amplo quadro impressionista, primeiro pelo seu papel de mensageiro da imagem, mas também pelo seu génio de cineasta-montador hábil na criação de correspondências, fazendo dialogar tudo e o seu contrário, e sobretudo a filmar a banalidade do quotidiano como poesia pura (um eléctrico atravessando uma terra de ninguém nocturna), uma composição estética (um pé que desce uma escada) ou um suspense intrigante (apelos da ficção a partir de uma simples rapariga correndo na multidão ou de diplomatas chegando em viaturas). Tirando fotografias da sua mochila, Godard explica as virtudes da montagem (relação ou oposição, e mais ainda questionamento perturbador) a um público de estudantes pouco atentos, e sobretudo cruzando a expressão de pessoas reais (o poeta palestino Mahmoud Darwich ou o escritor catalão Juan Goytisolo) com as personagens de ficção, nomeadamente o tradutor de português-hebraico-russo-espanhol-francês e a sua sobrinha judia francesa de origem russa, jornalista-oportunista. De facto, como se conjugam clichés documentais roubados e planos muito compostos, superfícies vazias (a fachada de um hotel) e ícones simbólicos ( a biblioteca destruída e de novo aberta aos leitores); é na mesma imagem que os índios emplumados se exprimem com as palavras de Darwich diante da ponte de Mostar em reconstrução (recordamos os efeitos-boomerang de Ne Touche Pas À La Femme Blanche de Marco Ferreri).

Notre Musique fala da questão israelo-palestiniana no coração das feridas nunca cicatrizadas do conflito na ex-Jugoslávia, uma vez que a reflexão de Godard é sempre mediatizada, distanciada, descentrada, tomando de empréstimo o pensamento de outros como a música de Sibelius, Part ou Monk para compôr as suas próprias harmonias. Na postura de "heroína" de uma ausência de intriga, a jovem Olga tem dificuldade em compreender aquilo que precisa, aquilo que procura, os laços que tece entre a sua história familiar de ontem (o seu avô durante a Ocupação) e a situação internacional actual. Godard tudo faz para a tornar cinematograficamente atraente e depois, perto do fim, faz-nos saber que ela partiu para Jerusalém a fim de organizar uma tomada de reféns onde vai encontrar a morte. O que significa dizer-se judeu hoje ? O destino dessa terrorista cultural a favor da paz provoca no espectador diversos tipos de interrogações e fá-lo chegar aquilo mesmo que Heidegger chamava "caminhos de floresta", ou seja, caminhos que conduzem a uma clareira que não vai dar a lado nenhum. Godard não queria outra coisa.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

CEM ANOS DE POETISA - TRINTA DE SAUDADE


 


«Porque a poesia é a ignorância propositada de coisas estúpidas que os políticos e politizados tomam a sério para adiarem o real humano que exige um mundo sem metrificadores que vivam à custa dela»


Natália Correia


13/ 09/ 1923

                      16/ 03/ 1993

sábado, 26 de agosto de 2023

O HOMEM MULTIPLICADO


 

 

O homem caminhou uma boa parte do dia debaixo de um Sol permanente e impiedoso. A última boleia tinha-o deixado à beira da estrada solitária, pouco depois do meio-dia. Estava cansado e tinha sede. Tinha ainda uns bons cinco, seis quilómetros pela frente. O caminho recordado apresentava incertezas, espaços vazios abertos pelo passar dos anos. Podia estar mais perto ou mais longe do lugar, podia até ter escolhido a estrada errada. Assim que avistou o mar recuperou o ânimo. Seria a partir daí a referência maior até chegar à casa. Paralelo, ao longe, embora nunca fora de vista. Era assim que lembrava as manhãs de Verão quando acordava no andar de cima embalado pelos cheiros do café e das torradas do pequeno-almoço dos avós. De uma forma ou de outra acabaria por lá chegar. Acreditava nos sistemas de navegação universais que atraem os corpos através do pensamento que emanam, na familiaridade da lei da atracção, em suma, tinha a certeza que chegaria onde queria chegar porque assim tinha de ser. As botas cobertas de pó tinham mudado de cor. A mochila puxava-lhe as costas, puxava-lhe os ombros, puxava-o para dentro da terra através de uma espécie de peso que ia aumentando. Pouco antes do final da tarde uma brisa ligeira veio aliviar por algum tempo aquela canseira geral que tomava conta dele. Já devia estar perto. Finalmente ao longe um caminho com ciprestes altos e uns arbustos dispersos nas margens. Plantas teimosas que resistiram e que, ao fazê-lo, lhe apontavam a direcção do que procurava. E não se tinha enganado. No fim daquele caminho abria-se o edifício de dois pisos meio amarelado meio acastanhado, meio descascado de pintura. Uma casa desabitada com partes penduradas, pedaços de telhas quebradas no chão, janelas sem vidros, portas entreabertas de forma permanente, ervas daninhas à solta na entrada. O alpendre da entrada era uma estrutura incompleta e desdentada de tábuas soltas com ervas a crescer pelo meio delas. Os intermináveis  lanches no Verão eram ali, entre fatias de pão caseiro barradas com manteiga e cachos de uvas.  Tinha chegado finalmente. Esquecendo por instantes o cansaço continuou ainda mais determinado. Contornou a casa pelo lado poente e atravessou o espaço onde ficava a casota do cão e o estacionamento do barco do avô (depois o barco do tio, e durante alguns anos a teimosia dele em Setembro de ir às docas da cidade que ficava para Norte em busca de pechinchas de barcos para vender que os donos já não queriam) no Inverno. Do outro lado da casa o que restava do jardim e, em frente, ao longe, o mar.  Entrou pela porta da cozinha muito lentamente como quem visita um dormitório a meio da noite sem querer acordar ninguém. Só o vento e alguma madeira rangente lhe disseram alguma coisa. Depois da cozinha a sala, os almoços e jantares, a família toda reunida o ruído da boa disposição, o princípio da idade adulta e a sensação de que se viveria para sempre…que todos viveriam para sempre. O lugar do móvel da arrumação da louça e ao lado a porta para o pátio interior. Se bem se recordava havia lá dentro um poço ao centro. Talvez ainda tivesse água, talvez ainda se conseguisse ver o pôr do Sol do terraço, talvez houvesse ainda um quarto para poder passar a noite. Abriu a porta e reconheceu o poço e o páteo, e o céu por cima da cabeça iluminado por um Solde fim de tarde amarelo torrado. A mochila foi escorregando pelas costas abaixo até ao chão. Espreitou para dentro do poço e constatou que ainda tinha água. Um balde tosco e ferrugento agarrado a uma corda quer se ia desfazendo foi até lá abaixo. Quando içou o balde quase cheio sentiu a frescura da água. Levou-a à boca e percebeu rapidamente que era salobra por isso não bebeu muito. Lavou a cara e despejou o resto pela cabeça abaixo. Depois sentou-se ajeitando a mochila para servir de almofada. Pousou a cabeça e ficou a olhar para o céu satisfeito em ter conseguido chegar ali, ao lugar onde mais de metade das suas recordações se encontravam enquadradas. A casa desfazia-se aos poucos e ele não tinha capacidade para a poder recuperar, a família ia desaparecendo, uma geração atrás da outra e, ele próprio já caminhava a passos largos na estrada do seu último terço de existência. Sentia-se como a casa, a desfazer-se lentamente em frente ao mar dia após dia, ano após ano. Sem conseguir tomar uma decisão vagueava entre o passado e o presente certo de que em algum tempo não muito longínquo tudo iria desparecer, até ele e as suas indecisões, as suas memórias, a sua vontade. Com tudo isto a girar dentro dele acabou por se deixar adormecer. Estava tão cansado que não se preocupou em ficar ali, ao relento, entregue ao silêncio e à solidão. Algum tempo depois caiu a noite e tudo ficou escuro à excepção das estrelas no céu.

A certa altura julgou ouvir o ranger de uma porta que abria e se voltava a fechar. Um ruído longínquo que atribuiu ao vento, não fazendo caso disso. Depois a mesma sequência de sons. Três, quatro vezes. Mesmo assim não ligou e enroscou-se melhor para continuar a dormir. Algum tempo depois teve a sensação de estar acompanhado, a presença de mais do que uma pessoa perto dele. Abriu os olhos e ficou assustado com o que viu. Quatro vultos de pé cercavam o poço virados para dentro sem se mexerem. Levantou-se bruscamente e observou-os. Permaneciam nas suas posições, quietos a olhar em frente, indiferentes à sua presença. Numa segunda observação percebeu serem homens de diferentes idades e ao fim de mais algum tempo deu conta que todos eles eram ele próprio em diferentes tempos da sua existência. Um rapaz com cerca de dez anos, um jovem de vinte, um adulto de quarenta e, ao seu lado esquerdo um homem bastante idoso. E todos tinham o seu rosto. Ocupou o espaço vazio que faltava e deixou-se ficar ali olhando para um e para outro sem nada dizer. Devia ser um sonho por muito estranho que parecesse. Só que nunca tinha tido nenhum parecido com aquela situação. A certa altura o idoso olhou para ele e sorriu. Depois falou como se estivesse à conversa com um amigo de longa data.

Tenho oitenta e quatro anos e ainda consigo ir com as mãos até ao chão sem dobrar as pernas.

E logo de seguida dobrou o corpo pela cintura abrindo as mãos até tocar o chão tal como havia dito. Levantou-se lentamente.

Nada mal, hã?

O homem sorriu e comentou:

Com essa idade isso é muito bom.

O velho abriu a expressão das sobrancelhas enquanto sacudia as mãos. Depois apontou para os outros um por um, por ordem crescente de idade. Depois para o homem. Por fim para ele.

Dali até aqui e daqui até sabe-se lá onde. Não te preocupes. De uma maneira ou de outra tudo se resolve ou nada fica por resolver. Não é grave. Nada é grave e tudo acaba por passar. Por isso, não te preocupes. Por cada idade nova há um fantasma do passado atrás de nós. É apenas uma pele que vai acabando por cair. Faz aquilo que tiveres que fazer e segue o teu caminho. Nós cá estaremos para te ajudar.

 

Artur


terça-feira, 15 de agosto de 2023

REFLEXÕES DE VERÃO

 (vigésimo oitavo dia do sexto mês de dois mil e vinte e três. )

Falta amor, digam o que disserem, falta compaixão, digam o que disserem, falta esta força mãe de todas as forças, como a água falta à terra e a luz a cada folha.
A humanidade transformou-se numa bizarria disfarçada de empatia onde raramente dá um passo, diz uma palavra, dá um abraço, de graça.
O que me interessa é que o fluxo seja contínuo e fluido nas quatro cavidades que me sustentam. Que todos os verbos de dar sejam sempre a somar. É assim que combato as guerrilhas da apatia e esquecimento que proliferam como o plasmodium que em tempos me atingiu.
Créditos, visualizações, somatórios para uma existência que se quer positiva mas se desdobra mil vezes negativa.
(Vigésimo sexto dia do sétimo mês de dois mil e vinte e três.)
Entre uma frase e um aquecer de água para chá dobro um pano esquecido do fundo do cesto interminável como a história. Já não sinto a chuva na pele há pelo menos quatro dias e as neblinas só as vejo se as procurar.
A chaleira apita e corro para o fundo da cozinha como antes corria para a quinta estação. A direcção era sempre a mesma e a urgência um ponto por picar. Ouço as queixas dos amigos ao longe sobre o excesso de gente em todos os lugares e ouço novamente o lamento dos meus pensamentos sobre a ausência de humanidade. Afinal havia outro pano por dobrar e a constatação de ter uma cesta interminável. Combato a humidade com lavagens e secagens na esquinas mais ventosas. Posso ter ar de patroa mas sou a minha melhor empregada. Sei o lugar de tudo e a quem pertence. Sei a estória de cada fronha e de quem deitou a cabeça nela. Sei os porquês sem nunca os indagar, sem saber porquê todas as verdades me caem na cabeça como naquela história do pinto que achava que o céu estava a cair.
Hoje ao deixar de olhar para a cesta e de me aparecer mais um pano por dobrar voltarei à casa que em breve será minha e irei pintar mais uma trave, mais uma porta, e deixarei entrar mais um pedaço de luz da primeira rua da minha existência.
É natural que me caia mais uma lasca de céu pela cabeça abaixo, certeira até ao peito. É essa pequena queda que me levantará até ao lugar dos bons pensamentos e das boas pessoas.
Décimo primeiro dia do oitavo mês de dois mil e vinte e três.
Voltou a chuva, o nevoeiro e a humidade no olhar. Os pensamentos estalam-me como no princípio da fogueira e voam para paragens longínquas que antes eram tão próximas e param na Penn Station em Newark há mais de dez anos. Corpos vazios vagueiam no eco da estação. Vestem roupas de ouvir gospel, olham para o vazio e gritam com as paredes enquanto se abrigam do frio. Eram mais de dez e eu novamente a tentar entender os porquês. Hoje, depois de tantos anos passados e antes do que comecei a escrever, entendi. Perdi horas de sono e dias de paz. Perdi mergulhos no mar cristalino e banhos de sol, mas entendi. Perdi horas de escrita que são as horas mais minhas e o motivo de aqui estar,para começar a entender.
Porém ganhei muito entre tanto perder. E aprendi ainda mais sobre o valor das mãos que se estendem e dos braços que nos acolhem. São o triplo daqueles que se recolhem.
Em breve o sol voltará e eu voltarei às coisas por fazer que são a minha terapia ocupacional. Por cada uma, e são tantas,um gospel e a gratidão às fadas que me rodeiam. Um batalhão delas contra o empardecer de cada olhar.
Elsa Bettencourt

domingo, 6 de agosto de 2023

PÉROLA NEGRA


O DVD “The Doors”, editado em 2001, contém um inestimável documento que, a diversos títulos, se revela essencial para a compreensão da extrema radicalidade de Absolutely Live. Trata-se de um “clip” video que recria “The Ghost Song”, uma música publicada pela primeira vez em 1978, no álbum An American Prayer. Esse registo, lançado sete anos depois da morte de Jim Morrison, é composto de recitais da sua poesia, a que se acrescenta música tocada pelos outros elementos da banda e canções que não foram registados nos outros discos. Constitui, sob todas as perspectivas, uma magnífica homenagem póstuma de Manzarek, Krieger e Densmore ao poeta Morrison e não à estrela rock ou ao “Mickey Mouse de Sade”, como alguém lhe chamou. O video que refiro resulta da recitação hipnótica de um dos poemas mais fulgurantes e profundos de Morrison, uma peça lírica que condensa as crenças filosóficas e metareligiosas do poeta, convocando literalmente os fantasmas de que a sua mente se alimentou ao longo da sua dolorosa e apocalíptica aprendizagem. A imagética presente é muito forte: sucedem-se metáforas alucinadas, visões herméticas, citações literárias e apelos lancinantes a uma mais profunda compreensão da vida e da morte. Os músicos tocam “por cima” dessas palavras exaltantes e enigmáticas e sucedem-se imagens fixas e em movimento de Morrison, das vastas paisagens desérticas do Arizona, de rituais mágicos dos índios norte-americanos, um feiticeiro comparece no espaço em que os músicos tocam, os espíritos totémicos saturam a atmosfera, recordações de antigas sabedorias transformam o poeta e os músicos em demiurgos, xamãs, intermediários, celebrantes de um ritual que tem por mote “the lust for life” e a fusão total entre a expressão artística e o impulso vital.
A pérola negra que veio a chamar-se Absolutely Live é um estranho objecto, lançado em 1970, resultando da compilação de excertos de diversas actuações ao vivo, em várias cidades dos Estados Unidos. No seu conjunto, revela menos o estilo ao vivo da banda do que um sentido de “montagem” (no sentido cinematográfico do termo), reunindo peças tão díspares como “Who Do You Love” de Bo Didley e “Alabama Song” de Kurt Weill, os temas mais antigos da banda e, sobretudo, as grandes peças de resistência: “When The Music’s Over”, “Celebration Of The Lizard” e “The End” : Morrison está no auge da sua capacidade interpretativa, mostrando um fulgurante poder de comunicação, de celebração e de comunhão com um público completamente rendido ao lirismo intenso da poesia e subjugado ao carisma radical do cantor e ao modo como a banda preenche os espaços vazios em volta do buraco negro constituído pela voz, o corpo, a expressão física e o “pathos” das palavras de Morrison. O grande admirador do filósofo alemão Friedrich Nietzsche prova em Absolutely Live que só a força se pode juntar à força e que é preciso o caos interior para gerar uma estrela dançante. E a “estrela dançante” revela-se aqui deambulando entre a metafísica de canções como “Universal Mind”, a lírica profética de “When The Music ‘s Over”, a encenação da personagem de um pregador em “Petition The Lord With Prayer” e a terrível, lancinante poesia narrativa de “The End”. E revela-se, também, na inusitada capacidade de improviso da banda, também ela no auge da sua capacidade musical, metamorfoseando as canções e expandindo os seus limites para territórios até aí inexplorados de consciência e percepção.
Se, como atrás ficou dito, Absolutely Live não é exactamente um disco ao vivo – já que não resulta da gravação homogénea de um único concerto – resultando, isso sim, de uma “montagem” altamente criteriosa de momentos escolhidos de vários concertos, destinada antes de mais a compor um retrato multiforme das actuações ao vivo da banda, o registo ilustra cabalmente o modo como Morrison assimilou e interpretou “A Origem da Tragédia”, de Nietzsche, a dualidade entre apolíneo e dionisíaco e o modo como essa dualidade ultrapassa o antagonismo e se transmuta em palco numa catarse colectiva orgiástica, celebratória e xamanística.
Falta ainda referir uma outra dimensão, evanescente e seguramente a mais importante deste documento: a forma como Morrison, o poeta, á solta num palco com a sua banda, face à multidão de co-celebrantes embriagados de música e de palavras, excitada até aos limites do suportável pelo carisma e energia do cantor, se confronta com a sua própria mortalidade e com ela se concilia, ao mesmo tempo que convoca e apela às forças primordiais da vida. Aliás, a outra coisa não se refere o título Absolutely Live.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

ROCK NUMA TARDE DE VERÃO

 

 

O Verão entrava em velocidade de cruzeiro e o calor apertava sem piedade. Num vale esquecido do interior norte (como em quase todas as povoações no mês de Agosto) celebrava-se a festa da terra ou do santo padroeiro, ou de outra coisa qualquer. O importante naquela época do ano era celebrar, aproveitar o regresso temporário dos emigrantes, o ar livre, os comes e bebes, enfim, julgo que já perceberam a ideia…

A banda cumpria o calendário estabelecido pelo empresário em finais de Maio. E, se nalguns locais a magia era enorme e as noites inesquecíveis, noutros era apenas uma data sem memória, uma hora de música tocada pela banda em circuito fechado e um bando de basbaques a olhar para nós e a tentar perceber o que se passava no palco. Mas naquela tarde não foi assim. Aliás essa foi a actuação que marcou para sempre a memória da digressão daquele ano.

Avancemos…

Devia ser por volta das cinco, cinco e meia da tarde que o mestre de cerimónias nos apresentou. De manhã tinha havido procissão com o andor do santo da terra seguido de missa, almoço, romaria, foguetes. Comera-se bem e bebera-se ainda melhor. Depois de tanta cerimónia, tanto foguetório e tanta comezaina, um breve concerto de Rock talvez não fosse o remate adequado para aquele dia. Havia pessoal a cantar sozinho, um ou outro dormia debaixo da tenda da quermesse com os pés de fora, enfim, o cenário estava muito mais virado para o fim de uma dura batalha do que para musica e cantorias. Daí que, a assistência fosse muito limitada, não mais do que dez, quinze pessoas. Olhámos uns para os outros, encolhemos os ombros e arrancámos. Havia um contrato para cumprir e uma digressão para executar. E fomos. No fim da primeira canção recebemos uns aplausos esparsos de boa vontade porque afinal “os rapazes estavam ali a trabalhar”… A meio da segunda canção começamos a perceber que a atenção da assistência mudava de direcção. De vez em quando olhavam para o lado direito e esqueciam-se completamente do palco. Ainda pensei que estávamos a tocar mal mas rapidamente percebi que não era o caso. As anteparas laterias não nos deixavam ver o que se passava, só conseguíamos ver à nossa frente. Começámos a perceber que naquele dia não nos conseguiríamos entender. Era abreviar e despachar para voltar à estrada a caminho de outra terra na esperança de audiências mais colaborantes. Até que , a meio do terceiro tema que estávamos a tocar, as pessoas arrancam e vão-se embora na direcção para onde estavam a olhar anteriormente. Não ficou ninguém. Um a um fomos silenciando os instrumentos. Viémos à boca do palco e espreitámos. Finalmente a solução do mistério. Quatro ou cinco bêbados à porrada entre eles e a multidão a observar entusiasmada. Mistério resolvido. Sentámo-nos na beira do palco e ficámos por ali a observar também, concluído que estava mais um dia de trabalho. Pouco depois chegou o jipe da guarda com dois elementos. O condutor, assim que saiu torceu um pé e já não conseguiu andar mais. O outro ajudou-o a sentar-se na parte de trás da viatura com a perna estendida. Passou por nós, cumprimentou-nos e dirigiu-se até ao foco da ocorrência. Com as mãos nas ancas olhou para uma lado e para o outro, avaliando a situação. Depois dirigiu-se a uma das barracas da feira e pegou num poste comprido que estava perdido no chão. Voltou ao local e com o poste foi empurrando o grupo para um lado e para o outro até os conseguir juntar. Quando estavam todos ao alcance do comprimento do poste empurrou-os devagarinho para fora do recinto na direcção de um curral vazio. Com muita perícia e muito jeitinho conseguiu meter o grupo todo dentro do curral. De seguida rodou a cancela e trancou-a com uma argola metálica. Sacudiu as mãos, voltou a passar em frente ao palco e concluiu :

Podem continuar o espectáculo…


(Esta história é verdadeira e foi-me contada há muitos anos por um amigo, músico profissional)


Artur

domingo, 30 de julho de 2023

PELA ÁGUA - APOCALYPSE NOW

 


O poeta faz-se vidente com uma prolongada, imensa e meditada desregra de todos os sentidos. Tortura inefável onde ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, onde se faz, entre todos, o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito e o Supremo Sábio.

Arthur Rimbaud "Carta Ao Vidente"


Existe luz bastante para iluminar os eleitos e obscuridade bastante para os humilhar. Existe obscuridade bastante para ofuscar os réprobos e luz bastante para os tornar indesculpáveis.

Blaise Pascal "Pensées".



Nota prévia: Não pretendo analisar "Stalker", um objecto artístico que não é analisável, já que está para além das categorias analíticas comuns. Como, de resto, todos os restantes filmes de Andrei Tarkovski. O que aqui fica, se ficar, são apenas algumas intuições recorrentes de cada vez que o revejo, e reveste-se este texto necessariamente de um carácter impressionista ou expressionista. À escolha.


K. J. lembra-se de uma história murmurada numa noite de Verão por uma voz que diz:

Comi carne humana. Os cadáveres dos meus camaradas de campo. De doentes, de fracos que não aguentaram o golpe...

    A voz que falava nas trevas pertencia ao monitor de um campo de férias que K.J. frequentava em 1957, um antigo resistente, regressado do Gulag siberiano, capturado pelo Exército Vermelho, como tantos outros, ironicamente acusado de colaboração com o inimigo. Tinha regressado de onde nunca se regressa, mesmo quando se regressa. A sua, digamos assim, "confissão", porque murmurada e não gritada, porque feita na obscuridade e não em plena luz do dia, não corresponde a nenhuma necessidade de catarse colectiva, mas antes a um diálogo consigo mesmo que, só por acidente, se tornou público. 

    Tarkovski, adolescente e jovem adulto, também viveu o apocalipse da guerra e logo a seguir os das purgas, dos campos, e foi testemunha de uma esquizofrenia colectiva inscrita num sistema político baseado na mentira e no terror. A mesma mentira e o mesmo terror que, anos mais tarde, trucidariam o cineasta e mutilariam sem remédio a sua obra. "Eu, estou em todo o lado na prisão", diz o Stalker à sua mulher no início do filme.

A Tarkovski aplica-se na perfeição algo que Jean Renoir afirmou: "Um realizador faz um único filme em toda a sua vida. Depois, quebra-o em pedaços e fá-lo de novo". Ou aquilo que Raymond Bellour afirma no ensaio "Ciné-Répetitions" quando considera formas internas e externas de repetição no cinema, desde as formas de interacção dos ensaios à capacidade de o cinema re-inscrever os sonhos e desejos dos espectadores, preenchendo assim o seu desejo como repetição, o desejo como repetição. No caso de Tarkovski, tal expressa a profunda auto-consciência do seu desejo e da sua angústia.

"Stalker" foi realizado por Andrei Tarkovski em 1979 e é o mais devastado e devastador de todos os filmes. Nem o cinema americano, com toda a panóplia de efeitos especiais e artifícios técnicos disponíveis, nas inúmeras vezes que procurou representar o Armagedão, conseguiu atingir um tal grau de desolação, sentido de perda e percepção da catástrofe que as imagens puras e poéticas deste filme nos dão a ver (e ouvir). Para mais, com um tal desprezo não dissimulado pelo militantismo na arte, virando as costas a um discurso politizante e dirigindo-se a uma outra fonte e que é constituído pela sede de espiritualidade inerente a todos e cada um dos homens, e a que George Steiner chamou "a nostalgia do Absoluto". Depois do fim das grandes narrativas (hegelianismo, marxismo, positivismo) e da consequente perda de influência dos sistemas simbólicos - política, religião, filosofia, etc.) só a grande arte se acha capaz de dar ainda uma resposta a esse anseio. No cinema, Tarkovski foi o máximo cultor dessa tendência de substituição numa modernidade inacabada e aos soluços. Neste filme, fá-lo através de uma narrativa que acompanha a demanda de três homens após o fim da história da humanidade, numa temporalidade abolida, em ruptura definitiva e irredimível entre Natureza e História. Ninguém parece dar-se conta que o Apocalipse já ocorreu, ou seja, de que já ocorreu aquilo que estava anunciado há quase dois milénios, que o Sétimo Selo já foi rompido e a que a cólera do Cordeiro se derramou sobre o mundo.

 A ZONA




Aberta a todas as interpretações, e todas as interpretações são válidas, o que é a Zona exactamente ? Em primeiro lugar é o paradigma, ou o arquétipo de todas as zonas modernas (irresistível e tangencialmente somos levados a estabelecer uma estranha relação com as paisagens de "Deserto Vermelho" de Michelangelo Antonioni), desprovida de qualquer tipo de emoções, a não ser as que têm origem num profundo sentido de inquietação e desestabilização. E não poderia ser de outro modo: esta é a paisagem da mais absoluta ruína, composta por destroços, terrenos vazios, vias de caminho de ferro que não conduzem a nenhum lado, água por todo o lado. Já vimos antes esta paisagem: nos documentários sobre as cidades devastadas durante a II Guerra Mundial, em "Germania Anno Zero" de Roberto Rossellini, em "Nuit et Brouillard" de Alain Resnais, nas fotografias das cidades sírias bombardeadas até ao chão, em Mariupol arrasada pela artilharia russa e em todos os locais e em todos os locais que se tornaram não-locais. Temos olhos para ver e vemos. Mais ainda: a Zona está delimitada e guardada por militares: o direito encerra e guarda este sítio de não-direito. Delimitada por barreiras de arame farpado e por obstáculos metálicos, desorganizada, radicalmente desestruturada. Um espírito mais ou menos ordenado, que tentasse descortinar o seu plano, extensão, partes, orientação, sairia frustrado, tal a dimensão do caos que se apresenta, juncada de destroços humanos e materiais. Muito menos conseguiria descobrir a sua origem (o que é, de onde vem ?). Uma única certeza: apareceu assim, com esta natureza, depois da catástrofe, mas uma catástrofe imensa, sem retorno e sem remissão. Teve ou não lugar o desastre nuclear ? Dado o comportamento bizarro do tempo na Zona, pode ter ocorrido, pode vir a ocorrer; a estrutura da temporalidade é completamente subvertida e deixou de ser linear. 

OS HOMENS




Neste filme assombroso e assombrado, o stalker é o guia, aquele que conduz os outros no interior da Zona; um Professor e um Escritor. Nunca saberemos os seus nomes, nem isso importa. São personagens arquetípicas, cuja função simbólica vamos pouco a pouco construindo, a partir das suas acções. Não são sequer muito importantes na diegese; são um pretexto para o caminho espiritual do stalker no interior da Zona. Esse é o personagem principal, digamos, o ponto focal de todo o filme, à medida que a sua função intermedial se vai apagando, dando lugar à proeminência da sua verdadeira estatura: só ele encontra nas ruínas da Zona a melancolia e a nostalgia, a imensa tristeza que lhe confere um sentido. Só ele é capaz de compreender o sentido da expressão latina lacrimae rerum. E quem é esse que tudo compreende, mesmo aquilo que está para além da possibilidade de compreensão, para além ainda os juízos lógicos, de toda a racionalidade ? Um louco, um simples de espírito, um iluminado, um sacerdote, um guia, aquele que avança furtivamente. E compreende assim porque vive no interior da natureza simbólica das coisas, uma simbólica complexa e viva, que escapa às predicações, e porque existe no interstício entre dois mundos que nunca se encontram e que, sobretudo, nunca se reconciliam. Não existe mensagem nenhuma no filme; tentar encontrar a mensagem equivale a desapossar os símbolos da sua essência. No entanto, é inevitável que a nossa intuição nos indique que, para além de toda a vontade de verdade, para além de todo o desejo de saber, se insinue a convicção de que, no fim, é o mundo natural que prevalece, que vence o combate e que, sobre as ruínas de uma civilização devastada e perdida, os elementos naturais readquirem os seus direitos, tudo invadindo, e que os elementos dessa civilização - que aqui são representados pelos carros de combate destruídos, pelas armas espalhadas por todo o lado, pelos corpos calcinados daqueles que pereceram na catástrofe - são sobrepujados pelas plantas que os cobrem; o mundo torna-se liquído, o elemento omnipresente, fazendo lembrar a dominância desse elemento em "O Espelho" e, sobretudo, em "Nostalgia".

Se o poeta de "Nostalgia" parecia caminhar sobre as águas:



O stalker, por sua vezdeixa que a chuva os encharque, essas chuvas intensas (apocalípticas) que apaziguam todas as paixões e permitem reencontrar a esperança possível. Mas a água é também dotada de uma imensa carga emocional, comum aos dois filmes (três, se lhes juntarmos "O Espelho"). Numa das sequências mais extraordinárias do filme, os três homens param a sua deambulação pela Zona e, deitados numa posição quase fetal na superfície das águas, meditam. É um momento em que a acção - se de acção, no sentido clássico, se pode falar - pára, o tempo desacelera; a carga emotiva exerce sobre o plano uma tensão que Tarkovski tinha eliminado de quase todo o filme. Quase, porque, parecendo que a todo o momento escapa ao controlo do cineasta esses momentos de tensão existem e são quase insuportáveis de tão belos e emocionantes. Deixemos apenas um exemplo:
No início do filme, quando o stalker desperta do sono, vemos um copo que, por acção da vibração de um comboio que passa, se desloca sobre a mesa. Vê-lo-emos de novo, no fim, quando a filha muda do stalker, uma mutante sem pernas, o faz deslocar com a simples força do olhar; o círculo fechou-se. Mas aquilo que acontecia por força das leis da física, acontece agora pela simples força de vontade dessa rapariga estranha, dotada - suspeitamos - de uma fé inabalável: a força centrífuga passa a força centrípeta. Quem poderá salvar-nos ? O stalker, essa espécie de Cristo andrajoso, que tropeça na sua própria dúvida ? O Professor e o Escritor, meras peças de um jogo que não dominam ? Ou essa criança que vive no silêncio e no imobilismo e cuja força resulta de uma fé inabalável num poder que a transcende ?
A melancolia que se desprende destas imagens tem duas origens: o conhecimento do futuro e a angústia que esse conhecimento carreia; aquilo que o filósofo Martin Heidegger chamou "esquecimento do ser" - ou a memória desse esquecimento, e como me congratulo com este paradoxo ! - que invade a modernidade tecnológica, mediática, obcecada pelo sucesso e desligada da essência humana. Onde estão agora, pobre Heidegger, o ser-aí e o estar-no-mundo (in-der-Welt-sein) ?
Na realidade, "Stalker", muito antes das grandes teorias sobre o "fim da História", proclama bem alto que esse fim chegou, não por via de um cume de perfeição do capitalismo que aboliria a necessidade de ideologias e que, por ter atingido tal grau de perfeição, se teria tornado o álfa e o ómega da existência humana na Terra. Antes, ou melhor, sobretudo, porque a História e a sua legião de falhas, desencontros e absurdos, foi definitivamente derrotada pela Natureza, essa entidade física e metafísica, à qual se opôs desde sempre e que no derradeiro combate lhe determina o fim. Ou, como diz Milan Kundera em "A Arte do Romance":
Mas se o homem perdeu a necessidade de poesia, será que se apercebe do seu desaparecimento ? O fim não é uma explosão apocalíptica. Talvez não haja nada mais tranquilo que o fim.






quinta-feira, 27 de julho de 2023

J.D.SALINGER


 


You're not the first person who was ever confused and frightened and even sickened by human behavior. You're by no means alone on that score. Many, many men have been just as troubled morally and spiritually as you are right now. Happily, some of them kept records of their troubles. You'll learn from them—if you want to. Just as someday, if you have something to offer, someone will learn something from you. It's a beautiful reciprocal arrangement. And it isn't education. It's history. It's poetry. ~J.D. Salinger

quarta-feira, 12 de julho de 2023

A PROPÓSITO DE LEVEZAS INSUSTENTÁVEIS


 


 

Depois de Sartre, depois de Camus, depois do ensino secundário, mais ou menos entre o segundo ano da Faculdade e a tropa, diria que a obra de Milan Kundera entrou nas nossas vidas na mesma altura em que demos entrada na vida adulta. Não se poderá dizer que foi um passeio agradável ou sequer uma catástrofe mas, uma das primeiras lições que a obra de Kundera me transmitiu foi a de que havia vidas bem piores que a minha. O C foi o primeiro a ler “A Insustentável Leveza do Ser” e passava noites a fio a elogiar a obra. Era a continuação das leituras anteriores, era Kafka e Nietzsche no melhor de cada um, era o novo marco na literatura europeia. Numa noite de Sábado, finalmente, emprestou-me o livro com todo o cuidado, como quem passa uma relíquia sagrada de uma igreja para outra. Sem ter ainda largado o livro ainda houve tempo para uma breve advertência: o livro não estava completo, faltavam-lhe mais ou menos umas dez, quinze páginas. Depois me explicaria a razão, agora não era o tempo disso. Não liguei e quase que lhe arranquei o livro dos dedos ainda indecisos. O C era feito de mistérios e enredos inacabados. Claro que devorei o livro mesmo sem as páginas referidas o que me obrigaria a reler mais duas ou três vezes, agora já na forma completa. O romance apoiado numa estrutura fragmentada faz cruzar personagens e ambientes de uma forma fluída, cujo sentido se vai fortalecendo como um curso de água que desce de montanhas escarpadas e irregulares para se espraiar num amplo estuário, misto de suavidade e angústia. Fala de amor e lealdade, de liberdade e opressão, caricatura do comportamento humano, desventuras e breves alegrias. Fala na busca da felicidade e das várias transformações em que ela se vai tornando. Entre os dois mundos do tempo da Guerra Fria as pessoas procuram desesperadamente a sua felicidade carregando consigo os fantasmas do passado exigindo da existência coisas diferentes. Um pouco autobiográfico “A Insustentável Leveza do Ser” é contada a partir do lado de lá da cortina de ferro onde a liberdade é um sonho e os conceitos se confundem de acordo com as leituras oficiais do partido único. Do lado de cá também não se poderá falar exactamente do Paraíso na Terra, havendo bastantes contradições e manchas a assinalar. De um lado e de outro os sistemas desfazem-se sobre as suas próprias contradições devorando gerações, uma a seguir à outra.

 

As fronteiras do silêncio voltavam a fechar-se sobre a Europa, e a Grande Marcha já não desfilava senão em cima de um pequeno estrado no centro do planeta. As multidões que outrora se acotovelavam ao pé do estrado tinham partido há muito e a Grande Marcha continuava sozinha e sem espectadores…..

…..a Grande Marcha continua, apesar da indiferença do mundo, mas está a tornar-se nervosa, febril, ontem contra a ocupação do Vietname pelos americanos, hoje contra a ocupação do Cambodja pelos vietnamitas, ontem para apoiar Israel, hoje pelos palestinianos, ontem para apoiar Cuba, amanhã contra Cuba, e sempre contra a América, sempre contra os massacres e sempre em apoio a outros massacres, continua a Europa sempre a desfilar, e para poder acompanhar o ritmo dos acontecimentos sem falhar um único acelera cada vez mais o passo, de modo que a Grande Marcha já só é um cortejo de gente apressada a desfilar a galope, e a cena cada vez se encolhe mais, até ao dia em que finalmente há-de tornar-se apenas um ponto sem dimensões.

(A Insustentável Leveza do Ser)

 

 Não vou perder aqui tempo a descrever todos os aspectos do romance. Limitar-me-ei a referir a sua grande importância no momento em que surgiu na medida em que abriu um caminho onde o humor, a memória, e a percepção da beleza podem reclamar um novo Homem, uma nova Literatura desde que combinados num padrão de exigência e rigor que se eleve acima da espuma dos dias. Claro que não aconteceu nada como é habitual. A mediocridade e o kitsh político e social prosseguiram o seu caminho como sempre. A arte é feita de sobressaltos ocasionais em que a estrutura abana mas não cai, a evolução espreita mas depois vai esconder-se a correr. Sobre os personagens sopram os ventos da História interferindo nos seus percursos mais ou menos intensos, mais ou menos elaborados, varrendo-os de qualquer maneira da mesa onde depositaram as suas aspirações iniciais.

 

 

 

O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a estupidez. Viva Trotski

Ludvik

 (A Brincadeira)

 

Seguiram-se mais romances que fui devorando ao longo dos anos. O primeiro de todos da sua biografia, “A Brincadeira”, escrito entre 1962 e 1965. Marketa e Ludvik são estudantes universitários em Praga. Ela identificava-se com tudo o que vivia, o campo de férias num castelo na Boémia, as aulas de ginástica os programas do partido em geral para os jovens. Ludvik até concordava com ela mas naquele instante queria era que estivessem juntos em Praga e não suportava a ideia de que ela estaria mais feliz no campo de férias.  Resolve ser irónico. Numa breve piada escrita num postal para a namorada num campo de férias tudo acaba por se precipitar indo parar a um campo de reeducação e ficando com a sua vida virada de pernas para o ar. Para sempre…  Acaba por encontrar Lúcia com quem se envolve mas sem a conseguir amar ou sequer tratar bem. Em cima de uma pilha de mal-entendidos, cada um transportará a sua verdade ,

alheia à verdade dos outros, todas elas devastadas pelos ventos da História.

Kundera reflecte, caricaturiza, compadece-se, odeia, explode de raiva e resigna-se, e pelo caminho retrata pessoas e o mundo como quem relata um combate no qual todos acabamos por perder no fim. A sua obra marca uma época que já não existe embora a maior parte das angústias e do sofrimento sejam os mesmos. O cenário mudou mas a peça será sempre a mesma.

Muitos anos depois perguntei ao C o que é que tinha acontecido às páginas perdidas da “Insustentável Leveza do Ser”. Fez um ar solene e inspirou fundo. Estava no fim da recruta, ne semana de campo. A certa altura no meio do mato deu-lhe aquele ataque inequívoco e imprescindível de se ter que agachar atrás de uma moita. No fim, o único papel disponível era o do livro que o acompanhava dentro da mochila. Uma história que Kundera poderia ter escrito.

 

Artur


MILAN KUNDERA

 




                                                                        1929  -  2023

segunda-feira, 10 de julho de 2023

AUTORETRATO DO ESQUECIMENTO E DAS COISAS QUE ME ALEMBRAR


A espuma cuspia-me na cara mesmo com a proteção dos braços da minha mãe. O meu peito ressoava mais forte do que as ondas lá embaixo contra as rochas e contra o casco.
O barco içado pelo guindaste no cais molhado balançava ao ritmo do vento forte. No intervalo das rajadas ficava o frio do medo e do tempo, e a esperança do chão aproximava-se lenta, custosa e incerta. Quando a terra finalmente aconteceu, o cheiro a vomitado ficou para trás e os gritos de alegria sobrepuseram-se aos de agonia.
Os credos passaram a bênçãos, os braços que me seguravam antes elevaram-me ao céu em agradecimento ao Espírito Santo.
- Benzá Deus!
Gritavam as vozes agradecidas entre choro e alegria.
Minha mãe procurou um lugar seco, juntamente com as onze famílias que iam seguir viagem, para nos enxugarmos e apanhar um carro de praça até ao Terminal. A pobreza era sinónimo de humildade e asseio, e não íamos entrar num carro para sujar os bancos com indisposições e água do mar.
Uma barra de sabão azul e branco, uma fralda de pano com outro uso de tão puída por ele mas seca e molhada nas gotas que caiam dos beirais. Uma muda de roupa vinda da terra para onde íamos e estávamos prontos para continuar viagem. Meu pai compôs os meus dois irmãos maiores com o pente que trazia na algibeira, uma réstia de sabão molhado para prender os fios de cabelo que teimavam em eriçar-se. Deixou-se para o fim na manobra dos asseios usando o resto do resto de sabão e as gotas que terminavam de pingar.
O cabelo rijo e negro ficou brilhante como os calhaus da ribeira cheia em dia de irmos lavar a roupa.
Quando pus os pés no chão já estava calçada com as botas que nos tinham mandado no barril da América. Eram dois números acima mas aguentavam-se nos meus pés graças às folhas de jornal que faziam de palmilhas. Meu irmão acima de mim estava pior porque, além de não estar habituado a sapatos, os dele eram um número abaixo. Não engordamos com papas de carrilho mas crescíamos de tamanho e de pés.
Meu pai levantou os olhos para olhar nos de Jaime que começava a ficar afogueado com os apertos e não precisou dizer nada. Fez-lhe uma festa na cabeça a endireitar a mecha de cabelo que fugia para a testa e pôs-lhe a mão no ombro. Meu irmão Joaquim, onze meses mais velho, pôs-se ao lado dele, disse-lhe um escuto, pôs-lhe a mão no outro ombro e agarrou na mão de minha mãe que segurava a minha.
O carro de praça chegou e sentamo-nos todos atrás.
Meu pai arrumou a mala pequena que ia pela metade com tudo o tínhamos e sentou-se ao lado do condutor simpático que nos levou ao aeroporto.
Eu, Maria José, tinha cinco anos, meu irmão Jaime, oito e Joaquim em breve teria nove.
-Parece que já estamos na América! Mas pechinchinha!
Dizia o condutor.
-Os americanos deixaram estas lembranças aqui para termos vontade de continuar até à América maior.
Subimos a estrada da Birmânia a arregalar os olhos pelo caminho fora do Açucareiro até ao Terminal, passamos por casas de lata pintadas de branco cor de farinha, outras compridas como metades de tubos gigantes com jardins cheios de flores e erva verde que só tinha visto nas pastagens da minha ilha mas sem vacas à vista.
Em frente à piscina o senhor José abrandou ainda mais para vermos melhor. Passamos um edifício grande de madeira e por rapazes a correr para ele, todos vestidos de branco, a vir da piscina mais acima, duma prova de mergulhos que estava a acontecer. Olhamos à direita logo a seguir e, apesar das luzes ainda não estarem acesas e de eu não saber o que era luz elétrica senão mais tarde, pasmamos.
-Cinema! Gritaram Jaime e Joaquim ao mesmo tempo.
-Mêpai, está uma senhóra naquele vidro que parece nhamãe.
O condutor José parou para me dar razão.
-A pequenina tem razão. Parece a sua senhora já americana. Com os cabelos ripados, um sorriso parecido pintado de vermelho cereja.
Já não sentíamos a humidade no corpo e quando olhei para minha mãe ela sorria como a senhora do cartaz.
- Se os senhores se não se importarem, e como este é o meu último serviço, gostava de os convidar para um prato de sopa em minha casa. A minha senhora já deve ter a mesa posta.
O avião é depois de amanhã e os senhores precisam descansar e ganhar forças para essa viagem tão comprida.
O Terminal está cheio de famílias a dormir pelos bancos e eu gostava que a vossa família ficasse com a minha. Ao menos uma há-de descansar melhor do que as outras. O quarto da minha falecida mãe está vazio e tem espaço para os senhores e para os pequenos.
Sempre é melhor do que os bancos duros da espera.
Assim foi. Meu pai, Jeremias Figueiredo,homem de poucas palavras e de muito trabalho, sempre ajudou quem pode apesar de não termos nada e minha mãe ajudava-o sempre a repartir o nada por todos, deixando-se sempre ficar para o fim até adormecer de estômago vazio, dia após dia, noite após noite. Salgava os peixes que a gente pescava no calhau da nossa ilha até ao último grão de sal, nos dias de verão. Cozia pão quando recebia farinha em troca dos seus serviços de costura e empregada de quartos na casa grande.
Era tudo muito pouco, o sal, a farinha, os peixes, o conduto. Os escudos eram uma visão rara que passavam da mão dos senhores para a mão de meu pai que os dava a minha mãe, que por sua vez ia pagar o fiado à loja e voltava com nada.
Quando chegamos a casa do tio José, a sua senhora também Maria como minha mãe e eu, parecia que nos esperava.
Não havia telefones mas ela conhecia o homem que a escolheu para mulher desde os bancos de escola.
Protegia-a das reguadas do professores de todas as formas possíveis, até errando de propósito para malharem nele em vez de malharem nela.
Aquela família parecia a nossa. Quando dei por minha mãe já estava na cozinha a ajudar a senhora Maria comigo agarrada à saia dela, a tirar pratos, a juntar água à sopa, a partir pão. Nunca tinha visto uma torneira que não fosse a da fonte onde íamos buscar água em púcaros para encher o talhão feito do barro de Santa Maria. Lavei as mãos na pia da cozinha e não parava de cheirá-las enquanto faziam tanta espuma como as nuvens do céu.
A luz daquela casa e daquele lugar que se chama Aeroporto, não vinha da chama das candeias, das velas, ou dos candeeiros de petróleo. Vinha pelos fios e chegava aos globos de vidro que brilhavam como pequenos sóis. Estávamos todos pasmados por tudo o que nunca tínhamos visto mas eu era a única a abrir a boca o mais que podia, até a minha mãe me segurar no queixo,
empurrando-o devagarinho para cima com o indicador.
Meus irmãos estavam contidos pelo olhar de meu pai enquanto ajudavam o senhor José a acartar cobertores para fazerem camas no chão.
-Mêpai vê-se tudo lá fora como se fora quase dia e ainda falta para chegar a manhã.
Dizia Jaime.
-Mêpai esta luz é mais forte que a do candeeiro de petróleo da nossa casa e nunca se acaba.
Dizia Joaquim.
Ti José falou por ele.
- Na vossa próxima casa, com a graça de Deus, a luz será assim, a água vai correr assim, a comida não há-de faltar, nem a saúde, nem a união desta vossa família.
Os pés vão caber nos sapatos e a roupa há-de ser à medida.
Nosso senhor não nos deu filhos para podermos acolher os que por nós passam como se filhos fossem. O que eu aprendi com o meu avô foi de ouvir da boca de meu pai. Só se pode aprender ouvindo com atenção e com o coração. Eu ensino a quem passa, como um pai a um filho que sabe ouvir e aprendo com quem ensino que estamos no caminho certo.
Há muitos caminhos errados e um único certo que é o do bem. A luz que ilumina as nossas famílias é maior do que a que ilumina estas casas ou o caminho lá fora. Está cá dentro de nós e é esta que nunca se apaga dentro do caminho certo.
-Obrigada Ti José, seja pela sua saúde e dos seus.
Disse Mêpai.
- Agora vamos comer que vocês devem estar esganados e eu também. E muito mais cansados do que eu.
Nhamãe deu graças pelo abrigo e comida, eu acrescentei graças pelo vinho doce e pela bondade dos novos tios. Depois do Amen as colheres começaram a ouvir-se e Mêpai, do outro lado da mesa, levantou os olhos para meus irmãos e pra mim.
-Bem sei, Mêpai desculpe, mas está mesmo poderes de bum.
Quase adormeci à mesa à medida que a barriga se enchia de canja de peixe. A minha cabeça já tombava para dentro do prato quando Mermão Jaime a segurou e Mermão Joaquim me amparou.
-Zézinha já come e sonha e antes só sonhava que comia.
De certeza que ainda não estamos na América?
Disse Jaime
- Zézinha mais a gente, atravessamos o mar bravo até chegar aqui. Já vimos mais nestas duas horas do que na vida toda!De certeza que ainda não chegamos à América?
Disse Joaquim.
Meus irmãos seguiam o pensamento um do outro como se gémeos verdadeiros fossem. As palavras e as frases trocavam-se e completavam-se. O gosto pela leitura foi passado pelo senhor padre da nossa freguesia em troca de ajuda na missa e dos arranjos nos paramentos que Nhamãe fazia. Aprenderam a ler num ai para me contarem as histórias dos santos e lerem as cartas que Mêtio Jebedias mandava da América.
O galo escondido cantou o amanhecer e meus pais já não estavam na cama. Meus irmãos dormiam a sono solto e eu gritei por minha mãe:
-Nhamãe onde é que estou?
-Nhamãe onde é que está?
Minha mãe estava nas traseiras da casa com tia Maria a estender roupa debaixo dum sol que nunca mais senti assim. O calor naquele lugar vinha perfumado de poejos e hortelã.
A tia tinha molhos de ervas amarrados e dependurados num telheiro que filtrava a luz às fatias e os secava entre a sol e a sombra. Mal vi a água na pia da roupa e senti o cheiro de sabão azul e branco, atirei os braços lá para dentro para lavar a cara.
-Vais lavar-te com a roupa, Zézinha?
Perguntou a tia ao mesmo tempo que me içava com os seus braços e fazia jeitos de me aboiar para todos os lados.
-Esta está bem “bua”,tia Maria!
E lá fui eu já em coiro, de cabeça, até me puxarem pra cima.
Elsa Bettencourt.
Conto escrito para a Associação Daniel de Sá há alguns anos e que nunca enviei por estar sempre a fazer coisas pelos outros. Agora é por mim e pela minha ilha mal lembrada. Aquela que até o verão se esqueceu.