Vigésimo oitavo dia do décimo segundo mês de dois mil e vinte e três.
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
2023.....12.....28
sexta-feira, 22 de dezembro de 2023
segunda-feira, 11 de dezembro de 2023
AFLUENTE DE UM SERENO DEVIR
sábado, 9 de dezembro de 2023
FAIRYTALE OF NEW YORK - SINGING AND DANCING AT SHANE McGOWAN'S FUNERAL
sexta-feira, 1 de dezembro de 2023
FAIRYTALE OF NEW YORK
In the drunk tank
An old man said to me, won't see another one
And then he sang a song
The Rare Old Mountain Dew
I turned my face away
And dreamed about you
Came in eighteen to one
I've got a feeling
This year's for me and you
So happy Christmas
I love you baby
I can see a better time
When all our dreams come true
They've got rivers of gold
But the wind goes right through you
It's no place for the old
When you first took my hand
On a cold Christmas Eve
You promised me
Broadway was waiting for me
You were pretty
Queen of New York City
When the band finished playing
They howled out for more
Sinatra was swinging
All the drunks they were singing
We kissed on a corner
Then danced through the night
Were singing Galway Bay
And the bells were ringing out
For Christmas day
You're a punk
You're an old slut on junk
Lying there almost dead on a drip in that bed
You scumbag, you maggot
You cheap lousy faggot
Happy Christmas your arse
I pray God it's our last
Still singing Galway Bay
And the bells are ringing out
For Christmas day
Well so could anyone
You took my dreams from me
When I first found you
I kept them with me babe
I put them with my own
Can't make it all alone
I've built my dreams around you
Still singing Galway Bay
And the bells are ringing out
For Christmas day
quinta-feira, 30 de novembro de 2023
quarta-feira, 1 de novembro de 2023
1 DE NOVEMBRO DE 1755
Hoje faz 268 anos que era Sábado e nessa manhã, Lisboa foi arrasada.
Era 1 de Novembro de 1755 e, apesar de ser Dia de Todos os Santos, nem eles, conseguiriam evitar a catástrofe. O Sismo de 1755, destruiu a cidade e provocou incêndios. Muitas pessoas fugiram em direcção ao Rio e foram engolidas por um Tsunami.
Nessa manhã de Sábado de 1755, logo cedo, centenas de igrejas começaram a encher-se de povo. Milhares de velas acesas. Repentinamente, comecou a ouvir-se um rugido, uma vibração semelhante à passagem de milhares de cavalos e carruagens. No ar, um odor a enxofre e, subitamente, durante sete minutos, a cidade foi sacudida três vezes. Os abalos provocaram o desmoronamento de Casas, Igrejas, Conventos((Carmo e Trindade) e nem o Paço Real, a Patriarcal e a recém inaugurada Opera do Tejo, escaparam. (D. José escapou porque, nesse dia estava na Real Quinta de Belém mas, não ganhou para o susto.... A partir desse dia, decidiu nunca mais viver num Palácio de Pedra. Por sua vontade, a familia Real e a Corte, viveriam na Real Barraca da Ajuda, onde faleceu em 1777.)
Devido a geometria da cidade , ainda um pouco medieval, o fogo facilmente se espalhou e, em minutos, toda a cidade ardia.
Pelas ruas milhares de pessoas perdidas, fugiam sem saber para onde. Tentavam chegar ao rio, ao Terreiro do Paço. Muitos tentavam embarcar nos barcos ancorados no rio.
De repente, o povo viu algo que nunca ninguém tinha testemunhado. As aguas do rio, recuaram, deixando a descoberto destroços de navio afundados no Tejo.
Apreensivos, os mais corajosos, atreveram-se a atravessar o rio.
De subito, um ruido, um urro que foi aumentando à medida que se aproximava do Terreiro do Paço.
Do Tejo, uma colossal parede de água escura, entrando barra adentro varreu a cidade por três vezes, levando tudo e todos à sua frente, apagando alguns incêndios, mas, matando milhares de pessoas. Pensa-se que o total, contando com desabamentos, incêndio e doenças, tenha sido entre 20.000 a 100.000. À data, a cidade de Lisboa tinha cerca de 250.000 habitantes.
De acordo com os estudos, o Terramoto de Lisboa não terá tido uma magnitude tão grande como se pensa. Ter-se-á situado nos 7,7 da escala de Ritcher e, terá tido o seu epicentro a Sul do Cabo São Vicente, possivelmente no banco de Gorrinje.
Devido à sua origem oceanica, provocou o Tsunami que não só varreu o litoral Português, como o Sul de Espanha, Marrocos, na Europa, o Sul de Inglaterra foi varrido por ondas de 3 Metros, Escócia, Finlândia.
O Tsunami também se fez sentir nas Caraíbas.
Três anos depois da Catástrofe, Lisboa já tinha um plano para a sua reconstrução. Seria o famoso plano de 1758, que se revelaria um verdadeiro terramoto na sociedade Portuguesa, afectando em particular a Alta Nobreza, sendo o motivo dos vários atentados contra o Rei e o seu Ministro...
terça-feira, 24 de outubro de 2023
FRIENDS WILL BE FRIENDS...
Se não houvesse espaço para uma pausa tudo seria muito mais
difícil de aguentar. De vez em quando fazemos uma. Esquecemos o mundo e a vida
por umas horas e juntamo-nos como costumamos fazer há uma vida inteira. Um
jantar, um jogo de futebol na televisão e umas garrafas de vinho. As conversas
de sempre que nunca se repetem, algumas memórias trocadas, a novidade dos netos
para alguns. O nosso pequeno mundo construído em conjunto ao longo de décadas,
a nossa bolha onde nada nos pode acontecer enquanto estivermos juntos, cada um
vigilante do seu canto na mesma casa. Depois de levantar a mesa e colocar a
louça na máquina, depois dos cafés, os sofás da sala e uma garrafa de whisky
irlandês para ver o resumo dos golos. Por fim a breve assembleia com um único
ponto na ordem de trabalhos: “O que é que vamos ouvir hoje?” E em breves
instantes é eleita uma banda, um concerto para a continuidade do serão.
É sempre bom fazer uma pausa e falar um pouco à mesa do
jantar com esta família onde todos têm lugar, onde todos se conhecem à
exaustão, não havendo por isso, espaço nenhum para surpresas. Uma espécie de
lar que fica na casa de cada um quando nos encontramos. Uma breve conversa e um
longo silêncio porque não é preciso acrescentar mais nada que não se saiba já.
Fica a música e a garrafa de whisky irlandês em cima da mesa, ficamos nós em
cima do sofá com os gatos a passear pelos nossos colos como vigilantes do turno
da noite a certificar que tudo está a correr bem. E por vezes viajamos dali
para uma praia onde fomos adolescentes e corríamos o dia todo como selvagens
sem nunca nos cansarmos, do mar para a areia, da areia para o mar, da mata a
apanhar paus para uma fogueira, de uma paixão para a outra. Mas sempre nós,
tribo antiga e solidária, especialista em pausas, especialistas em horas de
alegria e bem estar. Ou continuamos a viajar com o Rock em som de fundo e vamos
parar ao recreio da escola, à bicicleta que batia todos os recordes, às motas.
Estremeço e regresso ao sofá. A Joana cabeceia o vazio de olhos fechados,
depois acorda também. Olhamos um para o outro e sorrimos. O Pedro e a Mariana
discutem acerca da utilização do comando da televisão. São onze da noite e
parece que já são duas. Conseguimos ainda ouvir mais uma música antes de
começarmos a sinfonia do Uber para nos levar a casa. Despedimo-nos uns dos
outros entre risota e bocejos. Atiramos datas prováveis para o próximo encontro.
Abraços e beijos e vamos indo que temos pressa de nos deitar.
A filha do Pedro um dia perguntou-me se tinha alguma ideia
em relação ao segredo da longevidade da nossa amizade. Ao todo seremos uns dez
ou quinze que se conhecem desde a adolescência, outros ainda mais atrás. Não foi
preciso reflectir muito e a resposta saiu-me no automático :
“Acho que foi tomarmos conta uns dos outros…” respondi.
Se não foi isso que decidimos foi aquilo que fizemos ao
longo de uma vida inteira. Não é interesse, não é amor, não é tristeza nem
solidão. É algo muito maior que nos fez ter sempre a mão estendida para o outro,
a observação distante mas atenta, a disponibilidade, a palavra solidária no
tempo necessário. É qualquer coisa enraizada entre a tribo e a família e ao
mesmo tempo muito mais antiga que a nossa própria noção de existência. Por
vezes não foi suficiente e houve um ou outro que teve que sair mais cedo.
Quando a força do exterior foi superior à nossa.
Nascemos numa realidade caótica e difícil de compreender,
atravessámos essas terras do caos em quase toda a nossa existência e
dificilmente teríamos sobrevivido se não nos tivéssemos uns aos outros . Não
conseguimos compreender a morte mas isso pouco importa porque também nunca
compreendemos a vida. Sairemos daqui no meio do caos e da destruição tal e qual
como entrámos. Não interessa. Cá dentro de mim há algo que me diz que os que
foram à frente vão estar à nossa espera para continuarmos o caminho. E também
me parece que nesse trajecto não vão faltar concertos de Rock e whisky irlandês.
Artur
Imagens de Luis Pereira
quinta-feira, 5 de outubro de 2023
ENTRETEMPO
Tudo tem um tempo, o seu tempo. O tempo de correr e o tempo
de gritar, o tempo de ficar quieto e o tempo de calar, de ficar escondido no
canto escuro, de subir ao palco e declamar, o tempo de contemplar e o tempo de
mergulhar no meio das vagas sem vagar nem espaço para respirar. Tudo tem um
tempo e o tempo tem tudo nas suas mãos. A favor do vento, com a maré sorridente
ou com falta de tempo na esquina do salto para o outro lado do tempo. As faces
do tempo que nunca jogou póquer mas que se sabe vestir de enigmas, atravessar a
mesa do jogo com os óculos escuros e a boca contorcida entre o sorriso e o
sarcasmo. O tempo, sempre o tempo, o vento que corre apressado, o coelho da
Alice sempre atrasado, o carro contra a árvore estampado que terminou o seu
tempo. Nos cantos do espaço, no sucesso e no fracasso, apertado em máquinas para
o contar, relógio de água, de areia ou sombra da luz solar, o tempo maior que
tudo e mais alguma coisa, que não cabe em nenhuma tentativa de o medir porque respira
sempre sem parar levando tudo à sua volta a explodir no marco do fim de cada
coisa. O tempo entretempo que nos faz percorrer a linha da vida até à morte,
sem sinal nem preferências, sem escolhas nem juízos. Apenas tempo no entretempo
que dispomos para o conhecer. O tempo de estar e de fugir, o tempo de chorar e
de sorrir, sem cor nem cheiro, um tanque cheio que esvazia para voltar a
encher. O tempo de começar e o tempo de nada acontecer. E sobre o universo um
manto infinito de tempo que não se move…apenas “É” a cada instante.
Artur
sexta-feira, 29 de setembro de 2023
INACTUAIS - NOTRE MUSIQUE / A NOSSA MÚSICA
Michel Foucault
Notre Musique, de 2004, é uma continuação do discurso político, filosófico e poético sobre o nosso presente que Jean-Luc Godard vinha mantendo há longos anos, com uma nova e inusitada predicação: ler o futuro no passado é agora assumido como necessidade absoluta, como um determinismo ou uma predestinação incontornável, feita de fragmentos de filmes e de actualidades, que tecem uma quase insuportável rede de atrocidades e dor, em que a memória consigna à montagem a vontade de pensamento, retendo o tempo da tragédia: os símbolos do Inferno, do Purgatório e do Paraíso que declinam nesta nova Commedia a derrota da Razão. Porquê ? O silêncio contém a resposta. Soldados e vítimas desenham a crueldade e parecem ressoar a frase do filósofo Emmanuel Lévinas: "Só a humanidade desarmada merece esse nome". Epifânia do olhar, campo e contracampo, a lição de cinema continua, somente a união dos olhares constrói o discurso, abre a dialética, a imagem clama pela imagem, a forma o seu conteúdo, o castelo de Elsinor é um dado anagráfico, o castelo de Hamlet é o signo poético, Elsinore é o real, Hamlet o imaginário. O cinema é a razão, a verdade, o discurso que esmurra as coisas, mostrar é compreender, olhar é interpretar. A última praia, o Paraíso, é a ironia de um Pierrot le Fou revisitado, a dança, o Éden, os bosques e fluxos dos Umiliati de Jean-Marie Straub. A Razão como utopia, ainda o segredo do cinema, notre musique.
Em relação a For Ever Mozart e Éloge De L'Amour é um filme mais modesto (uma "petite musique" em suma, fermentando menos coisas "juste une conversation" (nem um discurso, nem um panfleto), uma troca de ideias (ou seja, imagens e sons), uma mistura de real e ficção a partir de uma actualidade política que fornece o ponto de partida de uma meditação de Godard que se apoia obsessivamente sobre os signos metafóricos e outros estigmas da História já visados nos filmes precedentes. A estrutura escolhida é a do tríptico : o quadro central (o reino do Purgatório) situa-se durante os Encontros Europeus do Livro, Sarajevo, Outono de 2002. Mais curtos, e mais conceptuais e plásticos (o Inferno, o Paraíso), os dois quadros laterais enquadram - ou melhor, precedem e seguem-se, já que estamos no cinema, e onde mais poderíamos estar ?) - o motivo principal como que para o fazer ressoar (no ruído do mundo) e raciocinar (segundo a teoria da dúvida e a prática de colocar em cena e à prova o autor-filósofo).
O inferno é a guerra das imagens (os cavaleiros teutónicos de Alexandre Nevsky), mas também a ideologia (a navegação dos Anges du Péché ou a bandeira americana flutuando no capot de um automóvel) como em Histoire(s) du Cinéma ou um filme de Pelechian colorizado numa vaga de lava incandescente carreando o horror. O paraíso é simultaneamente muito belo (o rosto majestático da jovem mulher) e derrisório: por detrás de um posto de controle mantido por fuzileiros americanos, situa-se um bosque onde se joga à bola em fato de banho como num acampamento um pouco "grunge". Mas pelo olhar, jurar-se-ia que a tristeza durará para sempre (Van Gogh/Pialat).
Godard ele mesmo (um pouco mais sorridente, ou menos soturno do que é costume) confere uma semelhança de organização à narrativa do amplo quadro impressionista, primeiro pelo seu papel de mensageiro da imagem, mas também pelo seu génio de cineasta-montador hábil na criação de correspondências, fazendo dialogar tudo e o seu contrário, e sobretudo a filmar a banalidade do quotidiano como poesia pura (um eléctrico atravessando uma terra de ninguém nocturna), uma composição estética (um pé que desce uma escada) ou um suspense intrigante (apelos da ficção a partir de uma simples rapariga correndo na multidão ou de diplomatas chegando em viaturas). Tirando fotografias da sua mochila, Godard explica as virtudes da montagem (relação ou oposição, e mais ainda questionamento perturbador) a um público de estudantes pouco atentos, e sobretudo cruzando a expressão de pessoas reais (o poeta palestino Mahmoud Darwich ou o escritor catalão Juan Goytisolo) com as personagens de ficção, nomeadamente o tradutor de português-hebraico-russo-espanhol-francês e a sua sobrinha judia francesa de origem russa, jornalista-oportunista. De facto, como se conjugam clichés documentais roubados e planos muito compostos, superfícies vazias (a fachada de um hotel) e ícones simbólicos ( a biblioteca destruída e de novo aberta aos leitores); é na mesma imagem que os índios emplumados se exprimem com as palavras de Darwich diante da ponte de Mostar em reconstrução (recordamos os efeitos-boomerang de Ne Touche Pas À La Femme Blanche de Marco Ferreri).
Notre Musique fala da questão israelo-palestiniana no coração das feridas nunca cicatrizadas do conflito na ex-Jugoslávia, uma vez que a reflexão de Godard é sempre mediatizada, distanciada, descentrada, tomando de empréstimo o pensamento de outros como a música de Sibelius, Part ou Monk para compôr as suas próprias harmonias. Na postura de "heroína" de uma ausência de intriga, a jovem Olga tem dificuldade em compreender aquilo que precisa, aquilo que procura, os laços que tece entre a sua história familiar de ontem (o seu avô durante a Ocupação) e a situação internacional actual. Godard tudo faz para a tornar cinematograficamente atraente e depois, perto do fim, faz-nos saber que ela partiu para Jerusalém a fim de organizar uma tomada de reféns onde vai encontrar a morte. O que significa dizer-se judeu hoje ? O destino dessa terrorista cultural a favor da paz provoca no espectador diversos tipos de interrogações e fá-lo chegar aquilo mesmo que Heidegger chamava "caminhos de floresta", ou seja, caminhos que conduzem a uma clareira que não vai dar a lado nenhum. Godard não queria outra coisa.
quarta-feira, 13 de setembro de 2023
CEM ANOS DE POETISA - TRINTA DE SAUDADE
«Porque a poesia é a ignorância propositada de coisas estúpidas que os políticos e politizados tomam a sério para adiarem o real humano que exige um mundo sem metrificadores que vivam à custa dela»
Natália Correia
13/ 09/ 1923
16/ 03/ 1993
sábado, 26 de agosto de 2023
O HOMEM MULTIPLICADO
O homem caminhou uma boa parte do dia debaixo de um Sol
permanente e impiedoso. A última boleia tinha-o deixado à beira da estrada solitária,
pouco depois do meio-dia. Estava cansado e tinha sede. Tinha ainda uns bons
cinco, seis quilómetros pela frente. O caminho recordado apresentava
incertezas, espaços vazios abertos pelo passar dos anos. Podia estar mais perto
ou mais longe do lugar, podia até ter escolhido a estrada errada. Assim que
avistou o mar recuperou o ânimo. Seria a partir daí a referência maior até
chegar à casa. Paralelo, ao longe, embora nunca fora de vista. Era assim que
lembrava as manhãs de Verão quando acordava no andar de cima embalado pelos
cheiros do café e das torradas do pequeno-almoço dos avós. De uma forma ou de
outra acabaria por lá chegar. Acreditava nos sistemas de navegação universais
que atraem os corpos através do pensamento que emanam, na familiaridade da lei
da atracção, em suma, tinha a certeza que chegaria onde queria chegar porque
assim tinha de ser. As botas cobertas de pó tinham mudado de cor. A mochila
puxava-lhe as costas, puxava-lhe os ombros, puxava-o para dentro da terra
através de uma espécie de peso que ia aumentando. Pouco antes do final da tarde
uma brisa ligeira veio aliviar por algum tempo aquela canseira geral que tomava
conta dele. Já devia estar perto. Finalmente ao longe um caminho com ciprestes
altos e uns arbustos dispersos nas margens. Plantas teimosas que resistiram e
que, ao fazê-lo, lhe apontavam a direcção do que procurava. E não se tinha
enganado. No fim daquele caminho abria-se o edifício de dois pisos meio
amarelado meio acastanhado, meio descascado de pintura. Uma casa desabitada com
partes penduradas, pedaços de telhas quebradas no chão, janelas sem vidros, portas
entreabertas de forma permanente, ervas daninhas à solta na entrada. O alpendre
da entrada era uma estrutura incompleta e desdentada de tábuas soltas com ervas
a crescer pelo meio delas. Os intermináveis
lanches no Verão eram ali, entre fatias de pão caseiro barradas com
manteiga e cachos de uvas. Tinha chegado
finalmente. Esquecendo por instantes o cansaço continuou ainda mais
determinado. Contornou a casa pelo lado poente e atravessou o espaço onde ficava
a casota do cão e o estacionamento do barco do avô (depois o barco do tio, e
durante alguns anos a teimosia dele em Setembro de ir às docas da cidade que
ficava para Norte em busca de pechinchas de barcos para vender que os donos já
não queriam) no Inverno. Do outro lado da casa o que restava do jardim e, em
frente, ao longe, o mar. Entrou pela
porta da cozinha muito lentamente como quem visita um dormitório a meio da
noite sem querer acordar ninguém. Só o vento e alguma madeira rangente lhe
disseram alguma coisa. Depois da cozinha a sala, os almoços e jantares, a
família toda reunida o ruído da boa disposição, o princípio da idade adulta e a
sensação de que se viveria para sempre…que todos viveriam para sempre. O lugar
do móvel da arrumação da louça e ao lado a porta para o pátio interior. Se bem
se recordava havia lá dentro um poço ao centro. Talvez ainda tivesse água,
talvez ainda se conseguisse ver o pôr do Sol do terraço, talvez houvesse ainda
um quarto para poder passar a noite. Abriu a porta e reconheceu o poço e o
páteo, e o céu por cima da cabeça iluminado por um Solde fim de tarde amarelo
torrado. A mochila foi escorregando pelas costas abaixo até ao chão. Espreitou
para dentro do poço e constatou que ainda tinha água. Um balde tosco e
ferrugento agarrado a uma corda quer se ia desfazendo foi até lá abaixo. Quando
içou o balde quase cheio sentiu a frescura da água. Levou-a à boca e percebeu
rapidamente que era salobra por isso não bebeu muito. Lavou a cara e despejou o
resto pela cabeça abaixo. Depois sentou-se ajeitando a mochila para servir de
almofada. Pousou a cabeça e ficou a olhar para o céu satisfeito em ter
conseguido chegar ali, ao lugar onde mais de metade das suas recordações se
encontravam enquadradas. A casa desfazia-se aos poucos e ele não tinha
capacidade para a poder recuperar, a família ia desaparecendo, uma geração
atrás da outra e, ele próprio já caminhava a passos largos na estrada do seu
último terço de existência. Sentia-se como a casa, a desfazer-se lentamente em
frente ao mar dia após dia, ano após ano. Sem conseguir tomar uma decisão
vagueava entre o passado e o presente certo de que em algum tempo não muito
longínquo tudo iria desparecer, até ele e as suas indecisões, as suas memórias,
a sua vontade. Com tudo isto a girar dentro dele acabou por se deixar adormecer.
Estava tão cansado que não se preocupou em ficar ali, ao relento, entregue ao
silêncio e à solidão. Algum tempo depois caiu a noite e tudo ficou escuro à
excepção das estrelas no céu.
A certa altura julgou ouvir o ranger de uma porta que abria
e se voltava a fechar. Um ruído longínquo que atribuiu ao vento, não fazendo
caso disso. Depois a mesma sequência de sons. Três, quatro vezes. Mesmo assim
não ligou e enroscou-se melhor para continuar a dormir. Algum tempo depois teve
a sensação de estar acompanhado, a presença de mais do que uma pessoa perto
dele. Abriu os olhos e ficou assustado com o que viu. Quatro vultos de pé
cercavam o poço virados para dentro sem se mexerem. Levantou-se bruscamente e observou-os.
Permaneciam nas suas posições, quietos a olhar em frente, indiferentes à sua
presença. Numa segunda observação percebeu serem homens de diferentes idades e
ao fim de mais algum tempo deu conta que todos eles eram ele próprio em
diferentes tempos da sua existência. Um rapaz com cerca de dez anos, um jovem
de vinte, um adulto de quarenta e, ao seu lado esquerdo um homem bastante
idoso. E todos tinham o seu rosto. Ocupou o espaço vazio que faltava e
deixou-se ficar ali olhando para um e para outro sem nada dizer. Devia ser um
sonho por muito estranho que parecesse. Só que nunca tinha tido nenhum parecido
com aquela situação. A certa altura o idoso olhou para ele e sorriu. Depois
falou como se estivesse à conversa com um amigo de longa data.
Tenho oitenta e quatro anos e ainda consigo ir com as mãos
até ao chão sem dobrar as pernas.
E logo de seguida dobrou o corpo pela cintura abrindo as
mãos até tocar o chão tal como havia dito. Levantou-se lentamente.
Nada mal, hã?
O homem sorriu e comentou:
Com essa idade isso é muito bom.
O velho abriu a expressão das sobrancelhas enquanto sacudia
as mãos. Depois apontou para os outros um por um, por ordem crescente de idade.
Depois para o homem. Por fim para ele.
Dali até aqui e daqui até sabe-se lá onde. Não te preocupes.
De uma maneira ou de outra tudo se resolve ou nada fica por resolver. Não é
grave. Nada é grave e tudo acaba por passar. Por isso, não te preocupes. Por
cada idade nova há um fantasma do passado atrás de nós. É apenas uma pele que
vai acabando por cair. Faz aquilo que tiveres que fazer e segue o teu caminho.
Nós cá estaremos para te ajudar.
Artur
terça-feira, 15 de agosto de 2023
REFLEXÕES DE VERÃO
(vigésimo oitavo dia do sexto mês de dois mil e vinte e três. )
domingo, 6 de agosto de 2023
PÉROLA NEGRA
A pérola negra que veio a chamar-se Absolutely Live é um estranho objecto, lançado em 1970, resultando da compilação de excertos de diversas actuações ao vivo, em várias cidades dos Estados Unidos. No seu conjunto, revela menos o estilo ao vivo da banda do que um sentido de “montagem” (no sentido cinematográfico do termo), reunindo peças tão díspares como “Who Do You Love” de Bo Didley e “Alabama Song” de Kurt Weill, os temas mais antigos da banda e, sobretudo, as grandes peças de resistência: “When The Music’s Over”, “Celebration Of The Lizard” e “The End” : Morrison está no auge da sua capacidade interpretativa, mostrando um fulgurante poder de comunicação, de celebração e de comunhão com um público completamente rendido ao lirismo intenso da poesia e subjugado ao carisma radical do cantor e ao modo como a banda preenche os espaços vazios em volta do buraco negro constituído pela voz, o corpo, a expressão física e o “pathos” das palavras de Morrison. O grande admirador do filósofo alemão Friedrich Nietzsche prova em Absolutely Live que só a força se pode juntar à força e que é preciso o caos interior para gerar uma estrela dançante. E a “estrela dançante” revela-se aqui deambulando entre a metafísica de canções como “Universal Mind”, a lírica profética de “When The Music ‘s Over”, a encenação da personagem de um pregador em “Petition The Lord With Prayer” e a terrível, lancinante poesia narrativa de “The End”. E revela-se, também, na inusitada capacidade de improviso da banda, também ela no auge da sua capacidade musical, metamorfoseando as canções e expandindo os seus limites para territórios até aí inexplorados de consciência e percepção.
Se, como atrás ficou dito, Absolutely Live não é exactamente um disco ao vivo – já que não resulta da gravação homogénea de um único concerto – resultando, isso sim, de uma “montagem” altamente criteriosa de momentos escolhidos de vários concertos, destinada antes de mais a compor um retrato multiforme das actuações ao vivo da banda, o registo ilustra cabalmente o modo como Morrison assimilou e interpretou “A Origem da Tragédia”, de Nietzsche, a dualidade entre apolíneo e dionisíaco e o modo como essa dualidade ultrapassa o antagonismo e se transmuta em palco numa catarse colectiva orgiástica, celebratória e xamanística.
Falta ainda referir uma outra dimensão, evanescente e seguramente a mais importante deste documento: a forma como Morrison, o poeta, á solta num palco com a sua banda, face à multidão de co-celebrantes embriagados de música e de palavras, excitada até aos limites do suportável pelo carisma e energia do cantor, se confronta com a sua própria mortalidade e com ela se concilia, ao mesmo tempo que convoca e apela às forças primordiais da vida. Aliás, a outra coisa não se refere o título Absolutely Live.
quarta-feira, 2 de agosto de 2023
ROCK NUMA TARDE DE VERÃO
O Verão entrava em velocidade de cruzeiro e o calor apertava
sem piedade. Num vale esquecido do interior norte (como em quase todas as
povoações no mês de Agosto) celebrava-se a festa da terra ou do santo
padroeiro, ou de outra coisa qualquer. O importante naquela época do ano era
celebrar, aproveitar o regresso temporário dos emigrantes, o ar livre, os comes
e bebes, enfim, julgo que já perceberam a ideia…
A banda cumpria o calendário estabelecido pelo empresário em
finais de Maio. E, se nalguns locais a magia era enorme e as noites
inesquecíveis, noutros era apenas uma data sem memória, uma hora de música
tocada pela banda em circuito fechado e um bando de basbaques a olhar para nós
e a tentar perceber o que se passava no palco. Mas naquela tarde não foi assim.
Aliás essa foi a actuação que marcou para sempre a memória da digressão daquele
ano.
Avancemos…
Devia ser por volta das cinco, cinco e meia da tarde que o
mestre de cerimónias nos apresentou. De manhã tinha havido procissão com o
andor do santo da terra seguido de missa, almoço, romaria, foguetes. Comera-se
bem e bebera-se ainda melhor. Depois de tanta cerimónia, tanto foguetório e tanta
comezaina, um breve concerto de Rock talvez não fosse o remate adequado para
aquele dia. Havia pessoal a cantar sozinho, um ou outro dormia debaixo da tenda
da quermesse com os pés de fora, enfim, o cenário estava muito mais virado para
o fim de uma dura batalha do que para musica e cantorias. Daí que, a
assistência fosse muito limitada, não mais do que dez, quinze pessoas. Olhámos
uns para os outros, encolhemos os ombros e arrancámos. Havia um contrato para
cumprir e uma digressão para executar. E fomos. No fim da primeira canção
recebemos uns aplausos esparsos de boa vontade porque afinal “os rapazes
estavam ali a trabalhar”… A meio da segunda canção começamos a perceber que a
atenção da assistência mudava de direcção. De vez em quando olhavam para o lado
direito e esqueciam-se completamente do palco. Ainda pensei que estávamos a
tocar mal mas rapidamente percebi que não era o caso. As anteparas laterias não
nos deixavam ver o que se passava, só conseguíamos ver à nossa frente. Começámos
a perceber que naquele dia não nos conseguiríamos entender. Era abreviar e
despachar para voltar à estrada a caminho de outra terra na esperança de
audiências mais colaborantes. Até que , a meio do terceiro tema que estávamos a
tocar, as pessoas arrancam e vão-se embora na direcção para onde estavam a
olhar anteriormente. Não ficou ninguém. Um a um fomos silenciando os
instrumentos. Viémos à boca do palco e espreitámos. Finalmente a solução do
mistério. Quatro ou cinco bêbados à porrada entre eles e a multidão a observar
entusiasmada. Mistério resolvido. Sentámo-nos na beira do palco e ficámos por
ali a observar também, concluído que estava mais um dia de trabalho. Pouco
depois chegou o jipe da guarda com dois elementos. O condutor, assim que saiu
torceu um pé e já não conseguiu andar mais. O outro ajudou-o a sentar-se na
parte de trás da viatura com a perna estendida. Passou por nós,
cumprimentou-nos e dirigiu-se até ao foco da ocorrência. Com as mãos nas ancas
olhou para uma lado e para o outro, avaliando a situação. Depois dirigiu-se a
uma das barracas da feira e pegou num poste comprido que estava perdido no
chão. Voltou ao local e com o poste foi empurrando o grupo para um lado e para
o outro até os conseguir juntar. Quando estavam todos ao alcance do comprimento
do poste empurrou-os devagarinho para fora do recinto na direcção de um curral
vazio. Com muita perícia e muito jeitinho conseguiu meter o grupo todo dentro
do curral. De seguida rodou a cancela e trancou-a com uma argola metálica.
Sacudiu as mãos, voltou a passar em frente ao palco e concluiu :
Podem continuar o espectáculo…
(Esta história é verdadeira e foi-me contada há muitos anos por um amigo, músico profissional)
Artur
domingo, 30 de julho de 2023
PELA ÁGUA - APOCALYPSE NOW
O poeta faz-se vidente com uma prolongada, imensa e meditada desregra de todos os sentidos. Tortura inefável onde ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, onde se faz, entre todos, o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito e o Supremo Sábio.
Arthur Rimbaud "Carta Ao Vidente"
Existe luz bastante para iluminar os eleitos e obscuridade bastante para os humilhar. Existe obscuridade bastante para ofuscar os réprobos e luz bastante para os tornar indesculpáveis.
Blaise Pascal "Pensées".
Nota prévia: Não pretendo analisar "Stalker", um objecto artístico que não é analisável, já que está para além das categorias analíticas comuns. Como, de resto, todos os restantes filmes de Andrei Tarkovski. O que aqui fica, se ficar, são apenas algumas intuições recorrentes de cada vez que o revejo, e reveste-se este texto necessariamente de um carácter impressionista ou expressionista. À escolha.
K. J. lembra-se de uma história murmurada numa noite de Verão por uma voz que diz:
Comi carne humana. Os cadáveres dos meus camaradas de campo. De doentes, de fracos que não aguentaram o golpe...
A voz que falava nas trevas pertencia ao monitor de um campo de férias que K.J. frequentava em 1957, um antigo resistente, regressado do Gulag siberiano, capturado pelo Exército Vermelho, como tantos outros, ironicamente acusado de colaboração com o inimigo. Tinha regressado de onde nunca se regressa, mesmo quando se regressa. A sua, digamos assim, "confissão", porque murmurada e não gritada, porque feita na obscuridade e não em plena luz do dia, não corresponde a nenhuma necessidade de catarse colectiva, mas antes a um diálogo consigo mesmo que, só por acidente, se tornou público.
Tarkovski, adolescente e jovem adulto, também viveu o apocalipse da guerra e logo a seguir os das purgas, dos campos, e foi testemunha de uma esquizofrenia colectiva inscrita num sistema político baseado na mentira e no terror. A mesma mentira e o mesmo terror que, anos mais tarde, trucidariam o cineasta e mutilariam sem remédio a sua obra. "Eu, estou em todo o lado na prisão", diz o Stalker à sua mulher no início do filme.
A Tarkovski aplica-se na perfeição algo que Jean Renoir afirmou: "Um realizador faz um único filme em toda a sua vida. Depois, quebra-o em pedaços e fá-lo de novo". Ou aquilo que Raymond Bellour afirma no ensaio "Ciné-Répetitions" quando considera formas internas e externas de repetição no cinema, desde as formas de interacção dos ensaios à capacidade de o cinema re-inscrever os sonhos e desejos dos espectadores, preenchendo assim o seu desejo como repetição, o desejo como repetição. No caso de Tarkovski, tal expressa a profunda auto-consciência do seu desejo e da sua angústia.
"Stalker" foi realizado por Andrei Tarkovski em 1979 e é o mais devastado e devastador de todos os filmes. Nem o cinema americano, com toda a panóplia de efeitos especiais e artifícios técnicos disponíveis, nas inúmeras vezes que procurou representar o Armagedão, conseguiu atingir um tal grau de desolação, sentido de perda e percepção da catástrofe que as imagens puras e poéticas deste filme nos dão a ver (e ouvir). Para mais, com um tal desprezo não dissimulado pelo militantismo na arte, virando as costas a um discurso politizante e dirigindo-se a uma outra fonte e que é constituído pela sede de espiritualidade inerente a todos e cada um dos homens, e a que George Steiner chamou "a nostalgia do Absoluto". Depois do fim das grandes narrativas (hegelianismo, marxismo, positivismo) e da consequente perda de influência dos sistemas simbólicos - política, religião, filosofia, etc.) só a grande arte se acha capaz de dar ainda uma resposta a esse anseio. No cinema, Tarkovski foi o máximo cultor dessa tendência de substituição numa modernidade inacabada e aos soluços. Neste filme, fá-lo através de uma narrativa que acompanha a demanda de três homens após o fim da história da humanidade, numa temporalidade abolida, em ruptura definitiva e irredimível entre Natureza e História. Ninguém parece dar-se conta que o Apocalipse já ocorreu, ou seja, de que já ocorreu aquilo que estava anunciado há quase dois milénios, que o Sétimo Selo já foi rompido e a que a cólera do Cordeiro se derramou sobre o mundo.
A ZONA
quinta-feira, 27 de julho de 2023
J.D.SALINGER
You're not the first person who was ever confused and frightened and even sickened by human behavior. You're by no means alone on that score. Many, many men have been just as troubled morally and spiritually as you are right now. Happily, some of them kept records of their troubles. You'll learn from them—if you want to. Just as someday, if you have something to offer, someone will learn something from you. It's a beautiful reciprocal arrangement. And it isn't education. It's history. It's poetry. ~J.D. Salinger
quarta-feira, 12 de julho de 2023
A PROPÓSITO DE LEVEZAS INSUSTENTÁVEIS
Depois de Sartre, depois de Camus, depois do ensino
secundário, mais ou menos entre o segundo ano da Faculdade e a tropa, diria que
a obra de Milan Kundera entrou nas nossas vidas na mesma altura em que demos
entrada na vida adulta. Não se poderá dizer que foi um passeio agradável ou
sequer uma catástrofe mas, uma das primeiras lições que a obra de Kundera me
transmitiu foi a de que havia vidas bem piores que a minha. O C foi o primeiro
a ler “A Insustentável Leveza do Ser” e passava noites a fio a elogiar a obra. Era
a continuação das leituras anteriores, era Kafka e Nietzsche no melhor de cada
um, era o novo marco na literatura europeia. Numa noite de Sábado, finalmente,
emprestou-me o livro com todo o cuidado, como quem passa uma relíquia sagrada
de uma igreja para outra. Sem ter ainda largado o livro ainda houve tempo para
uma breve advertência: o livro não estava completo, faltavam-lhe mais ou menos
umas dez, quinze páginas. Depois me explicaria a razão, agora não era o tempo
disso. Não liguei e quase que lhe arranquei o livro dos dedos ainda indecisos.
O C era feito de mistérios e enredos inacabados. Claro que devorei o livro
mesmo sem as páginas referidas o que me obrigaria a reler mais duas ou três
vezes, agora já na forma completa. O romance apoiado numa estrutura fragmentada
faz cruzar personagens e ambientes de uma forma fluída, cujo sentido se vai
fortalecendo como um curso de água que desce de montanhas escarpadas e
irregulares para se espraiar num amplo estuário, misto de suavidade e angústia.
Fala de amor e lealdade, de liberdade e opressão, caricatura do comportamento
humano, desventuras e breves alegrias. Fala na busca da felicidade e das várias
transformações em que ela se vai tornando. Entre os dois mundos do tempo da
Guerra Fria as pessoas procuram desesperadamente a sua felicidade carregando
consigo os fantasmas do passado exigindo da existência coisas diferentes. Um
pouco autobiográfico “A Insustentável Leveza do Ser” é contada a partir do lado
de lá da cortina de ferro onde a liberdade é um sonho e os conceitos se
confundem de acordo com as leituras oficiais do partido único. Do lado de cá
também não se poderá falar exactamente do Paraíso na Terra, havendo bastantes
contradições e manchas a assinalar. De um lado e de outro os sistemas
desfazem-se sobre as suas próprias contradições devorando gerações, uma a
seguir à outra.
As fronteiras do silêncio voltavam a fechar-se sobre a
Europa, e a Grande Marcha já não desfilava senão em cima de um pequeno estrado
no centro do planeta. As multidões que outrora se acotovelavam ao pé do estrado
tinham partido há muito e a Grande Marcha continuava sozinha e sem espectadores…..
…..a Grande Marcha continua, apesar da indiferença do
mundo, mas está a tornar-se nervosa, febril, ontem contra a ocupação do Vietname
pelos americanos, hoje contra a ocupação do Cambodja pelos vietnamitas, ontem
para apoiar Israel, hoje pelos palestinianos, ontem para apoiar Cuba, amanhã
contra Cuba, e sempre contra a América, sempre contra os massacres e sempre em
apoio a outros massacres, continua a Europa sempre a desfilar, e para poder
acompanhar o ritmo dos acontecimentos sem falhar um único acelera cada vez mais
o passo, de modo que a Grande Marcha já só é um cortejo de gente apressada a
desfilar a galope, e a cena cada vez se encolhe mais, até ao dia em que finalmente
há-de tornar-se apenas um ponto sem dimensões.
(A Insustentável Leveza do Ser)
Não vou perder aqui
tempo a descrever todos os aspectos do romance. Limitar-me-ei a referir a sua
grande importância no momento em que surgiu na medida em que abriu um caminho
onde o humor, a memória, e a percepção da beleza podem reclamar um novo Homem,
uma nova Literatura desde que combinados num padrão de exigência e rigor que se
eleve acima da espuma dos dias. Claro que não aconteceu nada como é habitual. A
mediocridade e o kitsh político e social prosseguiram o seu caminho como
sempre. A arte é feita de sobressaltos ocasionais em que a estrutura abana mas
não cai, a evolução espreita mas depois vai esconder-se a correr. Sobre os
personagens sopram os ventos da História interferindo nos seus percursos mais
ou menos intensos, mais ou menos elaborados, varrendo-os de qualquer maneira da
mesa onde depositaram as suas aspirações iniciais.
O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são
tresanda a estupidez. Viva Trotski
Ludvik
(A Brincadeira)
Seguiram-se mais romances que fui devorando ao longo dos
anos. O primeiro de todos da sua biografia, “A Brincadeira”, escrito entre 1962
e 1965. Marketa e Ludvik são estudantes universitários em Praga. Ela
identificava-se com tudo o que vivia, o campo de férias num castelo na Boémia,
as aulas de ginástica os programas do partido em geral para os jovens. Ludvik
até concordava com ela mas naquele instante queria era que estivessem juntos em
Praga e não suportava a ideia de que ela estaria mais feliz no campo de férias.
Resolve ser irónico. Numa breve piada
escrita num postal para a namorada num campo de férias tudo acaba por se
precipitar indo parar a um campo de reeducação e ficando com a sua vida virada
de pernas para o ar. Para sempre… Acaba
por encontrar Lúcia com quem se envolve mas sem a conseguir amar ou sequer
tratar bem. Em cima de uma pilha de mal-entendidos, cada um transportará a sua
verdade ,
alheia à verdade dos outros, todas elas devastadas pelos
ventos da História.
Kundera reflecte, caricaturiza, compadece-se, odeia, explode
de raiva e resigna-se, e pelo caminho retrata pessoas e o mundo como quem
relata um combate no qual todos acabamos por perder no fim. A sua obra marca
uma época que já não existe embora a maior parte das angústias e do sofrimento
sejam os mesmos. O cenário mudou mas a peça será sempre a mesma.
Muitos anos depois perguntei ao C o que é que tinha
acontecido às páginas perdidas da “Insustentável Leveza do Ser”. Fez um ar
solene e inspirou fundo. Estava no fim da recruta, ne semana de campo. A certa
altura no meio do mato deu-lhe aquele ataque inequívoco e imprescindível de se
ter que agachar atrás de uma moita. No fim, o único papel disponível era o do livro
que o acompanhava dentro da mochila. Uma história que Kundera poderia ter
escrito.
Artur