terça-feira, 15 de agosto de 2023

REFLEXÕES DE VERÃO

 (vigésimo oitavo dia do sexto mês de dois mil e vinte e três. )

Falta amor, digam o que disserem, falta compaixão, digam o que disserem, falta esta força mãe de todas as forças, como a água falta à terra e a luz a cada folha.
A humanidade transformou-se numa bizarria disfarçada de empatia onde raramente dá um passo, diz uma palavra, dá um abraço, de graça.
O que me interessa é que o fluxo seja contínuo e fluido nas quatro cavidades que me sustentam. Que todos os verbos de dar sejam sempre a somar. É assim que combato as guerrilhas da apatia e esquecimento que proliferam como o plasmodium que em tempos me atingiu.
Créditos, visualizações, somatórios para uma existência que se quer positiva mas se desdobra mil vezes negativa.
(Vigésimo sexto dia do sétimo mês de dois mil e vinte e três.)
Entre uma frase e um aquecer de água para chá dobro um pano esquecido do fundo do cesto interminável como a história. Já não sinto a chuva na pele há pelo menos quatro dias e as neblinas só as vejo se as procurar.
A chaleira apita e corro para o fundo da cozinha como antes corria para a quinta estação. A direcção era sempre a mesma e a urgência um ponto por picar. Ouço as queixas dos amigos ao longe sobre o excesso de gente em todos os lugares e ouço novamente o lamento dos meus pensamentos sobre a ausência de humanidade. Afinal havia outro pano por dobrar e a constatação de ter uma cesta interminável. Combato a humidade com lavagens e secagens na esquinas mais ventosas. Posso ter ar de patroa mas sou a minha melhor empregada. Sei o lugar de tudo e a quem pertence. Sei a estória de cada fronha e de quem deitou a cabeça nela. Sei os porquês sem nunca os indagar, sem saber porquê todas as verdades me caem na cabeça como naquela história do pinto que achava que o céu estava a cair.
Hoje ao deixar de olhar para a cesta e de me aparecer mais um pano por dobrar voltarei à casa que em breve será minha e irei pintar mais uma trave, mais uma porta, e deixarei entrar mais um pedaço de luz da primeira rua da minha existência.
É natural que me caia mais uma lasca de céu pela cabeça abaixo, certeira até ao peito. É essa pequena queda que me levantará até ao lugar dos bons pensamentos e das boas pessoas.
Décimo primeiro dia do oitavo mês de dois mil e vinte e três.
Voltou a chuva, o nevoeiro e a humidade no olhar. Os pensamentos estalam-me como no princípio da fogueira e voam para paragens longínquas que antes eram tão próximas e param na Penn Station em Newark há mais de dez anos. Corpos vazios vagueiam no eco da estação. Vestem roupas de ouvir gospel, olham para o vazio e gritam com as paredes enquanto se abrigam do frio. Eram mais de dez e eu novamente a tentar entender os porquês. Hoje, depois de tantos anos passados e antes do que comecei a escrever, entendi. Perdi horas de sono e dias de paz. Perdi mergulhos no mar cristalino e banhos de sol, mas entendi. Perdi horas de escrita que são as horas mais minhas e o motivo de aqui estar,para começar a entender.
Porém ganhei muito entre tanto perder. E aprendi ainda mais sobre o valor das mãos que se estendem e dos braços que nos acolhem. São o triplo daqueles que se recolhem.
Em breve o sol voltará e eu voltarei às coisas por fazer que são a minha terapia ocupacional. Por cada uma, e são tantas,um gospel e a gratidão às fadas que me rodeiam. Um batalhão delas contra o empardecer de cada olhar.
Elsa Bettencourt

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