A pérola negra que veio a chamar-se Absolutely Live é um estranho objecto, lançado em 1970, resultando da compilação de excertos de diversas actuações ao vivo, em várias cidades dos Estados Unidos. No seu conjunto, revela menos o estilo ao vivo da banda do que um sentido de “montagem” (no sentido cinematográfico do termo), reunindo peças tão díspares como “Who Do You Love” de Bo Didley e “Alabama Song” de Kurt Weill, os temas mais antigos da banda e, sobretudo, as grandes peças de resistência: “When The Music’s Over”, “Celebration Of The Lizard” e “The End” : Morrison está no auge da sua capacidade interpretativa, mostrando um fulgurante poder de comunicação, de celebração e de comunhão com um público completamente rendido ao lirismo intenso da poesia e subjugado ao carisma radical do cantor e ao modo como a banda preenche os espaços vazios em volta do buraco negro constituído pela voz, o corpo, a expressão física e o “pathos” das palavras de Morrison. O grande admirador do filósofo alemão Friedrich Nietzsche prova em Absolutely Live que só a força se pode juntar à força e que é preciso o caos interior para gerar uma estrela dançante. E a “estrela dançante” revela-se aqui deambulando entre a metafísica de canções como “Universal Mind”, a lírica profética de “When The Music ‘s Over”, a encenação da personagem de um pregador em “Petition The Lord With Prayer” e a terrível, lancinante poesia narrativa de “The End”. E revela-se, também, na inusitada capacidade de improviso da banda, também ela no auge da sua capacidade musical, metamorfoseando as canções e expandindo os seus limites para territórios até aí inexplorados de consciência e percepção.
Se, como atrás ficou dito, Absolutely Live não é exactamente um disco ao vivo – já que não resulta da gravação homogénea de um único concerto – resultando, isso sim, de uma “montagem” altamente criteriosa de momentos escolhidos de vários concertos, destinada antes de mais a compor um retrato multiforme das actuações ao vivo da banda, o registo ilustra cabalmente o modo como Morrison assimilou e interpretou “A Origem da Tragédia”, de Nietzsche, a dualidade entre apolíneo e dionisíaco e o modo como essa dualidade ultrapassa o antagonismo e se transmuta em palco numa catarse colectiva orgiástica, celebratória e xamanística.
Falta ainda referir uma outra dimensão, evanescente e seguramente a mais importante deste documento: a forma como Morrison, o poeta, á solta num palco com a sua banda, face à multidão de co-celebrantes embriagados de música e de palavras, excitada até aos limites do suportável pelo carisma e energia do cantor, se confronta com a sua própria mortalidade e com ela se concilia, ao mesmo tempo que convoca e apela às forças primordiais da vida. Aliás, a outra coisa não se refere o título Absolutely Live.
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