As Partes do Todo deseja um Feliz Natal a todos os seus leitores
(Fotografia de Helen Jordan)
São muito pouco conhecidas as relações entre Albert Camus e André Malraux, ofuscadas pela muito comentada e analisada até à exaustão extraordinária relação de amizade entre Camus e Jean-Paul Sartre e a ainda mais comentada ruptura entre os dois, provocada pela publicação de "O Homem Revoltado". A obra "Correspondance 1941-1959" vem por isso preencher essa lacuna. Trata-se de uma edição da NRF Gallimard de 2016 e, como é habitual nessa chancela, é de uma sobriedade total: limita-se a reproduzir a correspondência trocada entre os dois entre 1941 e 1959, exarando algumas notas de rodapé que enquadram as missivas trocadas no seu contexto histórico e nos respectivos percursos biográficos, deixando para o leitor a interpretação literal daquilo que uniu essas duas personalidades ímpares do século XX europeu. Agradecemos que assim seja, que sejamos livres para traçarmos o retrato dessas relações a partir das palavras dos próprios. Sophie Doudet, que organizou e apresenta a correspondência, limitou-se a organizá-la cronologicamente e, como já disse, a enquadrar o contexto em que ela ocorre, apresentando, isso sim, uma bibliografia que permite ao leitor, se assim o desejar, aprofundar o conhecimento da biografia e obra dos escritores.
A primeira coisa a reter é o papel fundamental desempenhado por Malraux na entrada de Camus na Gallimard e na publicação conjunta de "O Estrangeiro" e de "O Mito de Sísifo". Sabe-se que Camus prezava acima de tudo a triangulação que consistia em, sobre um determinado tema, escrever uma obra de ficção, um ensaio e uma peça de teatro. E sabe-se também que Gaston Gallimard não estava muito pelos ajustes na publicação do ensaio filosófico de um jovem a quem não reconhecia profundidade e sistematicidade suficientes para que as suas elaborações filosóficas tivessem bom acolhimento no ambiente da França ocupada e em grande tumulto. Já quanto ao romance era diferente: a recomendação de Malraux e de outros intelectuais de peso garantia a repercussão dessa obra inicial que inaugurava uma das mais extraordinárias aventuras do pensamento e da arte do século XX. É assim que ficamos a saber que Malraux recebeu um exemplar de "O Mito" com uma dedicatória que rezava:
"À André Malraux avec l'admiration et l'amitié d'Albert Camus"
É importante referir que Malraux é mencionado quatro vezes no ensaio sobre o Absurdo, o que atesta a admiração que Camus tinha por ele e também a amizade que o mais jovem sempre dedicou aquele que considerava como seu mestre. E, no entanto, e na verdade, o que poderia unir esses dois homens cujas vidas não poderiam diferir mais ? Malraux nasceu em Paris no seio da burguesia endinheirada, filho de uma civilização que depressa vai descobrir que é mortal. Quando Malraux parte para a Ásia e dá início a uma série quase inacreditável de aventuras, Camus é ainda uma criança pobre na Argélia francesa e quando "A Condição Humana" obtém o Prémio Goncourt de 1933, este último é um jovem estudante prometedor que, mais tarde, irá adaptar ao teatro "Le Temps du Mépris", e que, ainda não tendo publicado nada se vai medir com uma personalidade que ombreia com Dostoievski, Proust, Gide e com a elite dos intelectuais franceses que gravitavam em torno da NRF. Portanto, tudo os distinguia: a origem social, os estudos que fizeram, a idade, a intervenção pública: em 1936, quando Camus organiza a representação colectiva "A Revolta das Astúrias", que precede em muito a publicação de "L'Espoir", Malraux é já o comandante da aviação estrangeira que combateu do lado republicano na Guerra Civil espanhola; Camus "apenas" militava civicamente em prol da justiça e da liberdade. Podemos imaginar a emoção de Albert quando desembarcou em Paris e assistiu à exibição de "Espoir - Sierra de Teruel", realizado por Malraux e com origem na sua experiência no combate espanhol, um Malraux símbolo da resistência anti-fascista e no auge da sua glória literária. O que é certo , e disso esta correspondência dá conta, é que Camus e Malraux se admiravam mutuamente e que foram desenvolvendo uma amizade sem mácula ao longo do tempo, apesar de divergirem séria e profundamente no que concerne às respectivas posições políticas depois da Libertação. Porque antes disso, e no essencial, estavam de acordo. E como não estariam ? Certamente Malraux, ele próprio empenhado na denúncia do colonialismo francês na Indochina, admirava a denúncia que Camus fazia do colonialismo francês no Norte de África nos artigos publicados no jornal "Alger Républicain".
Uma das mais extraordinárias trocas de correspondência entre os dois ocorre quando Albert Camus lhe pede autorização para adaptar ao teatro e encenar no Théâtre du Travail "Le Temps du Mépris". A resposta de Malraux é peremptória e definita, consistindo numa única palavra: "Joue !", sem sequer cuidar de saber em que termos Camus iria adaptar e encenar o seu texto. O que atesta o nível de confiança na integridade de Camus e na certeza de que combatiam o mesmo combate. Ainda não se tinham encontrado pessoalmente. Esse encontro dá-se, como já foi dito, por ocasião da estreia em Paris do filme de Malraux, portanto sob o signo do apoio à causa republicana espanhola e à defesa da República; ambos denunciam - com os meios e recursos que tinham à sua disposição - o golpe de estado franquista e não se cansaram nunca de condenar veementemente o miserável abandono, a terrível negligência a que a comunidade internacional votou a República espanhola. Essas duas vertentes da sua intervenção pública - denúncia do colonialismo e condenação do fascismo espanhol - acabariam por cimentar ainda mais a amizade e admiração mútuas. E Malraux nunca se esqueceu do que viu em Espanha: as acções dos conselheiros soviéticos, mais preocupados em esmagar as veleidades não ortodoxas dos anarquistas e outras facções de esquerda do que em combaterem os franquistas. Foi aí que começou a deixar de ser um "compagnon de route" do Partido Comunista. E nunca voltou a Espanha. Olivier Todd, um dos grandes biógrafos de Malraux (cf. "André Malraux - Une Vie", Paris, Gallimard, 2001) conta que em 1972 recusou desembarcar em Cádiz aquando de um cruzeiro que fez no Mediterrâneo. Camus, pelo seu lado, demitiu-se em 1952 da Unesco por a organização ter aceite a Espanha franquista no seu seio.
Passo por alto as relações entre eles durante a II Guerra Mundial e a Ocupação, período em que as cartas entre ambos se tornam raras por motivos óbvios. Interessará saber que, em 1943, Malraux foi decisivo na escolha de Camus e Sartre como jurados do Prémio Literário Pléaide, criado pela Gallimard e pela escolha de Camus como integrante do comité de leitura da Gallimard, cargo que ocupará até à sua morte em 1960; que Camus ajudou inúmeras vezes Malraux nas suas acções como resistente; que, no jornal "Combat", em 1944, fez titular a primeira página com o anúncio "André Malraux est vivant", depois de ter sido anunciada a sua captura pelos alemães e o seu fuzilamento. Ferido, capturado e evadido para continuar o combate. Camus escrevia:
"Nous n'avions jamais accepté la nouvelle de sa mort. L'amitié a son espérance et ses raisons plus fortes que la raison. Car il était, "il est", de nos amis et l'idée qu'il pouvait être tombé dans une lutte qui était la sienne et la nôtre depuis tant d'années, avant de connaître la victoire, cette idée nous serrait le coeur et nous remplissait d'amertume (...) Quelques semaines avant la Libération, Malraux nous quittait pour la dernière fois, sur le Pont Royal, les cheveux sur le front, la cigarette vissée au coin de la bouche et l'imperméable volant au vent de la Seine (...) Nous avons dit "Veillez sur vous" et Malraux riait".
Este e outros textos podem ser lidos na indispensável recolha "Éditoriaux et Articles d'Albert Camus 1944-1947", edição estabelecida por Jacqueline Lévi-Valensi, Paris, Gallimard, 2002.
Termino, sem terminar, referindo a última troca de correspondência e a última interacção entre os dois. Ocorreu em 1959, quando Malraux era Ministre des Affaires Culturels (um ministério da cultura criado por De Gaulle à altura e dimensão da figura de Malraux), já no fim do ano. Malraux conseguiu desenredar as teias burocráticas e financeiras para a atribuição permanente de uma sala de teatro parisiense a Albert Camus, para que este a gerisse administrativa e artisticamente com toda a liberdade. Já não houve tempo; Camus morria a 4 de Janeiro de 1960.
(Crónica de uma guerra qualquer)
A noite estava ainda fechada sobre a sua escuridão e o ar do
quarto era denso. Sentado aos pés da cama James olhava lá para fora através da
janela. Não tinha a certeza de ter acordado muito cedo ou se sequer tivesse
pregado olho. A chuva intensa das últimas horas tinha finalmente cessado, dando
lugar a um silêncio total, quase mágico. Envolvido no fumo do cigarro que lhe
ia ardendo entre os dedos estava incerto quanto ao que sentir. O seu pensamento
era vago tal como o olhar que, olhando, não conseguia ver nada, registar fosse
o que fosse. Deixou-se embriagar por instantes naquela atmosfera de vazio total
que o fazia sentir vagamente em paz. Os tempos eram pesados, a maior parte das
vezes incompreensíveis. A guerra tinha vindo como uma tempestade negra virar tudo
ao contrário. A vida das pessoas, o espaço vivido, e à medida que se instalou
foi toldando esperanças, interrompendo existências, eliminando expectativas.
Uma nova realidade passou a tomar conta dos dias obrigando todos a reformularem
os seus planos. A outrora promessa da arquitetura, especializada em restauro de
casas antigas, era agora um homem em uniforme dentro de uma hierarquia rígida
que recebia e cumpria missões de defesa do território do seu país tentando
abater o maior número de inimigos. Pelo menos voava, uma das actividades que dantes
mais prazer lhe dava nos tempos livres. Olhou para o lado onde Martha dormia
descontraída, indiferente à noite e ao mundo em geral. Lembrou-se da
intensidade das últimas horas vivida entre eles. Da loucura, da paixão bem como
da tremenda discussão no fim. Há cerca de três anos que se encontravam em
espaços escondidos, há três anos que desesperavam um pelo outro, há três anos
que se amavam apaixonadamente. James entendia que era hora de juntarem as suas
vidas. Martha, dez anos mais velha que ele, era casada. Amava-o mas não era
capaz de deixar o marido. Havia a sociedade, o contrato do casamento, as convenções
e mais um sem fim de razões que a prendiam. Não podia deitar tudo pela janela
fora por mais que gostasse dele. Um beco sem saída que James tolerava cada vez
menos. Se tudo tinha ficado virado do avesso com a guerra, se nada voltaria a
ser como dantes, para quê insistir em hábitos condenados a desparecer? Era
Martha que o amava, era Martha que não aguentava dois dias sem o ver, era
Martha que dormia despreocupada naquela cama ao seu lado… Mas era lady Clarence
que queria continuar a ser, era lady Clarence que se recusava a morrer para
deixar Martha livre de viver a sua vida com o homem que desejava.
Para James naquela noite tinha sido tudo dito. Daí para a
frente não tinha ainda uma ideia nítida do que iria fazer mas nada voltaria a
ser como antes. Tal como a varredura dos ventos de guerra que destroem uma
ordem e permitem que outra se erga sob as suas cinzas, a sua existência sofria
uma metamorfose sem desfecho previsível.
O que for, seria.
Levantou-se para apagar o cigarro no cinzeiro em cima da mesa
e viu o seu blusão de voo pendurado numa cadeira esquecida. Por cima,
entrelaçado, o cachecol branco de seda que ela lhe tinha oferecido no seu
último aniversário. Vestiu-se e vasculhou nos bolsos. Tirou um bloco de notas e
um pequeno lápis para fora e escreveu uma frase breve. Depois dobrou o cachecol
com muito cuidado e deixou-o sobre a mesa de cabeceira do lado dela. Arrancou a
folha onde tinha estado a escrever com um movimento seco, dobrou-a ao meio e
colocou-a sobre o cachecol. Observou o corpo dela meio destapado pela última
vez naquela noite. Uma perna pendurada para fora da cama, as costas livres, as
nádegas soltas. Martha emitiu um tímido gemido quando a empurrou levemente para
dentro e a tapou. De seguida aproximou- se dos seus lábios e beijou-a quase sem
lhe tocar para que continuasse a dormir.
Já cá fora sentiu o arrepio da madrugada nos ossos. Colocou
os óculos protectores e montou a motorizada que usava desde que se tinha dado
como voluntário para as fileiras. Empurrou-a com as pernas sem a ligar até
estar bastante longe da estalagem. Só depois o ruído do motor e o frio da
madrugada se tornaram seus companheiros de velocidade a caminho da base. Sem
saber porquê recordou a Biblioteca do pai, aquele espaço onde tinha passado
tantas tardes fascinado com os livros, os seus livros e os seus mistérios. Ali
tinha percebido a primeira noção de eternidade. E ali também a última conversa
com o pai que se ofereceu mais do que uma vez para lhe arranjar uma tarefa
menos perigosa, mais recuada da linha da frente. Com dois telefonemas resolvia
aquilo e não havia nenhuma razão para ele correr tantos riscos. Também se falou
de Martha mas o assunto foi rapidamente arrumado. James recusou a ajuda do pai.
Rupert, o irmão mais velho é que devia ser o alvo dessa protecção. Na qualidade
de mais velho tinha sido uma vida inteira preparado para suceder ao progenitor.
Ele não. Tinha trilhado o seu caminho e assim continuaria. Sem preparação para
Lord, sem formação para a actividade política, sem vocação nenhuma para
herdeiro. Ao fim de uma hora o pai compreendeu e acabou por aceitar as suas
razões. Concordava com elas sem o admitir, admirava-o sem o conseguir
expressar. Mas James conhecia-o, sabia ler nas esquinas das palavras que
ficavam a pairar no ar até aterrarem na lombada de um livro, uma vida inteira
depois de aprender a deixar as emoções tapadas. A sua despedida foi um enérgico
e seco aperto de mão onde os desejos de boa sorte e felicidades futuras ficaram
subentendidos. Como dois amigos de longa data. Quando os pais morressem era da
biblioteca que iria ter mais saudades.
Chegou com a primeira claridade da alvorada no horizonte. O
céu continuava escuro e a chuva ameaçava voltar outra vez em força. Ouviu o
briefing meio distraído, meteorologia, movimentos inimigos, previsões para
aquele dia em geral. Através da janela conseguia ver a cauda do seu avião
estacionado sobre a erva verde e húmida. Uma máquina extraordinária, fácil de
manobrar, suave e elegante. Com uma manutenção adequada podia fazer quase tudo
com ele. A previsão não era de grande actividade para aquele dia se bem que tudo
poderia mudar numa questão de minutos. No fim do briefing dirigiu-se à
cafetaria improvisada e decidiu-se por uma bebida quente. Além de Gilles, o
francês da esquadrilha que tinha já combatido nos céus de Espanha, James era o
único que preferia café quente ao chá tradicional daquelas paragens. Carrancudo e homem de poucas falas, Gilles
transportava sempre consigo um termos de café da Guiana. Convicto e destemido
dizia que o fascismo o tinha abatido uma vez e que não iria permitir que isso
se voltasse a repetir. Enquanto o dia ia nascendo trocaram algumas ideias
acerca da antevisão dos próximos tempos. Por enquanto estavam a aguentar o
ímpeto invasor, mas até quando? Se a América não se despachasse a entrar
rapidamente na guerra o seu esforço poderia não ser suficiente. Enquanto
falavam foram interrompidos pelo som da sirene estridente da base. Uma
esquadrilha de bombardeiros estava a caminho vinda de Leste. Com asas nos pés
todos os homens correram para os seus postos e em dez minutos toda a
esquadrilha estava no ar. Passada alguma turbulência o tecto das nuvens era
ultrapassado e o Sol iluminava o céu como se tivessem passado de um mundo para
outro. Ao fim de alguns minutos os aviões inimigos tinham sido avistados.
Seguiu-se mais uma batalha aérea, outra página do livro da Batalha de
Inglaterra. Enfrentaram primeiro uma barreira de caças inimigos. Depois foram
no encalço dos bombardeiros. Os aviões corriam em todas as direcções como
mosquitos ao som das explosões. Gilles acertou em cheio no depósito de um
bombardeiro inimigo, James contabilizou dois caças abatidos. Quando tudo
parecia estar a terminar, caça inimigo surgiu do lado do Sol e apontou ao seu
avião. Quando se apercebeu do que estava a acontecer já era tarde. O motor
tinha sido atingido, a seguir a hélice deixou de funcionar. Restava-lhe planar
para lugar seguro, perder rapidamente altitude e sair dali. Uma explosão
encheu-lhe o cockpit de fumo. Pelo rádio ainda teve tempo de ouvir o comandante
de esquadrilha aos gritos a dizer-lhe para saltar. James levantou um braço à
procura da alavanca para abrir a carlinga. Encontrou-a já a pique sobre o mar.
Tinha um minuto se tanto para conseguir sair e abrir o paraquedas com sucesso.
A mão continuou agarrada à pega de emergência. Não a abriu. Despenhou-se no mar
a uma velocidade vertiginosa que o mataria logo no impacto. A esquadrilha regressou
com menos três elementos naquela manhã. James passaria a número estatístico de
análise da batalha. Substantivo anónimo e colectivo no discurso político, herói
fantasma decorado com uma lápide e uma medalha. Mas James deixou de ser James
no momento em que o seu avião se despenhou no mar. Ou talvez porque o oceano o
reclamou tivesse deixado de pertencer a si próprio. Ou talvez nada em relação a
milhões de vidas que se encaminhavam numa direcção e que deixaram de ser só
porque alguma razão implacável as decidiu reclamar.
Martha acordou já a manhã ia alta. Espreguiçou-se e
sentou-se na cama. Olhou lá para fora a chuva que continuava sem fim. Relembrou
a noite anterior. A paixão e a conversa final. Pôs um robe por cima das costas
e acendeu um cigarro enquanto se dirigiu até à janela. Como se regressada de
uma longa viagem tentava alinhar as suas prioridades para os próximos dias.
Havia tanto para fazer que não sabia para onde se virar. James tinha partido
amuado mas era sua convicção que havia de lhe passar. A guerra dava cabo dos
nervos a todos. Era uma questão de tempo até se voltarem a encontrar. Ao mesmo
tempo que pensava isto sentiu um frio estranho alojar-se no peito, um tremor a
percorrer-lhe as costas como se alguém tivesse deixado uma janela aberta. Foi
quando se sentou de novo na cama que reparou no cachecol pousado na mesa de
cabeceira. Agarrou-o e encostou-o à cara sentindo ainda o cheiro dele. No chão
um pequeno papel dobrado chamou-lhe a atenção. Uma mensagem de despedida,
pensou, antes de o começar a ler. Abriu o papel
Se de alguma
forma quiseres honrar o tempo que estivemos juntos peço-te um último favor:
Nunca mais estejas com ninguém enquanto estiver a chover
James
Dedicado à Matilde, minha querida filha e uma mente brilhante
Um destes dias, já não sei qual, fui à FLAD assistir ao lançamento do livro "Hannah Arendt - Uma Biografia" (Relógio d'Água, 2022) pela sua autora, a Prof. Samantha Rose Hill e lembrei-me que este blog estava a cometer uma enorme injustiça: se não me engano, nunca publicámos um texto sobre Hannah Arendt, uma das maiores pensadoras do século XX, cuja fecundidade de reflexão continua a ecoar em todos os problemas que se nos deparam, sejam eles de cariz político, sociológico ou filosófico. Talvez tenhamos feito referências esparsas à sua obra em outros textos, mas este é o momento de começar a preencher essa lacuna inadmissível. Não sendo eu um especialista no seu pensamento - não sou, aliás e ainda bem, especialista em nada - sou ainda assim um devoto leitor das suas obras e delas me tenho servido muitas vezes para me guiar no labirinto da contemporaneidade. E tenho, sobretudo, procurado compreender as suas posições e perspectivas em relação à acção política, sabendo que a filósofa o fez sempre a partir de um horizonte ético que se baseia sempre na interrogação primicial: como podem os homens agir em conjunto (portanto, política e publicamente) no sentido de expressarem o seu amor uns pelos outros e pelo mundo que habitam.
Não sendo, como já referi, um especialista no pensamento de Arendt, não procuro traçar um panorama completo desse pensamento, mas antes iniciar um série que se debruçará sobre aspectos da sua reflexão que se me oferecem como fundamentais, começando, como já adivinharam, pelo conceito de "amor mundi". Antes de me abalançar a tão arriscada tarefa, quero deixar uma nota introdutória que consiste em relembrar que, apesar dos tormentos pessoais que quase a fizeram colapsar (nomeadamente a sua fuga da Alemanha nazi, a sua fuga posterior de França quando esta foi invadida, a morte de Walter Benjamin, a sua chegada a Nova Iorque completamente desprovida de meios materiais, etc.) Hannah sempre foi uma pessoa com uma imensa alegria de viver e dotada de um incomensurável sentido de humor. E também quero assinalar que, apesar de ter estudado e convivido com os grandes peso-pesados da Filosofia do século XX - Martin Heidegger, Edmund Husserl, Karl Jaspers - manteve sempre uma enorme abertura de espírito e permanentemente procurou uma certa leveza que, sem prejudicar a profundidade, justeza e rigor do seu pensamento, a tornam mais próxima de nós, mais presente na nossa fragilidade e vulnerabilidade, mais ciente dos nossos erros e dos nossos fracassos. Em suma: mais humana.
Para início de conversa, relembro que a sua tese de doutoramento tem como título "O Conceito de Amor Em Santo Agostinho - Uma Reflexão Filosófica" (Instituto Piaget, 1997), texto no qual, distanciando-se da dimensão teológica, Arendt identifica e analisa uma das dimensões do conceito de "amor" em Agostinho: o princípio ético que vincula os homens uns aos outros e através do qual é possível formar comunidades. A questão, para a filósofa alemã consiste em determinar se esse conceito de amor é por si só capaz de gerar conexões sociais e determinar a acção política. Para o que aqui me traz, não me interessa desenvolver muito este tema, remetendo os eventuais interessados para a referida obra disponível numa excelente tradução e numa edição muito cuidada como é apanágio das edições do Instituto Piaget. O que me importa reter é a centralidade do conceito de amor em todo do pensamento de Arendt (desde esse texto de 1929) até ao seu fim. E também me importa assinalar que a apresentação que possa fazer do conceito de "amor mundi" ficará sempre aquém da complexidade e da profundidade da sua formulação.
Se, como diz Samantha Rose Hill, os sentimentos são perigosos em política, a solidariedade e o pensamento crítico são essenciais, teremos que concluir que o primeiro requisito é o de ver os outros tal como são, o que parece ser uma verdade banal, mas que já não o é tanto se reformularmos a expressão, acrescentando-lhe: "ver os outros tal como são, não em função do nosso próprio desejo ou a partir de uma concepção abstracta de mesmidade". O que Arendt visa acima de tudo (depois de ter analisado e desconstruído os dois tipos de amor que S. Agostinho concebia - o amor-desejo e o amor-memória - é o amor que ama o próximo e o mundo em toda a sua alteridade. E, provavelmente fruto das suas próprias experiências, amar o mundo significa amá-lo na sua totalidade, incluindo o sofrimento, a injustiça, a fealdade, a falta de verdade ,de justiça e de felicidade que, evidentemente, não são deste mundo.
O processo de Arendt é constituído por uma análise altamente sofisticada das patologias do amor, relembrando que o amor é muito mais do que o amado e o amante; há um mundo entre eles que tem que ser cuidado, num espaço político onde todos os actores estão presentes todo o tempo, interagindo e baralhando os dados de um sistema que só na aparência é robusto e eficaz. Na última obra que produziu - "A Vida do Espírito - Volume II Querer", Instituto Piaget, s.d.), Arendt volta a afirmar que o amor é o reconhecimento da alteridade dos nossos semelhantes e pré-condição para a criação do espaço político. Sublinhando que para Agostinho é o amor que transforma a vontade dividida, diz: "não existe uma afirmação mais forte de algo ou alguém do que amá-lo, ou seja, dizer: Quero que existas - Amo: volo ut sis".
É preciso, então, que voltemos a repensar esse conceito, para percebermos onde errámos, em que encruzilhada virámos na direcção errada, em que altura deixámos de ver com clareza e nos tornámos os autómatos da modernidade, os zombies da tecnologia, os arautos (mesmo que involuntários) da função, do empreendedorismo e de todas as outras barbaridades com que enfeitamos o nosso vazio existencial.
Aliás, deixo já aqui uma pista para um próxima abordagem do pensamento de Hannah Arendt:
Por que razão, depois dos grandes capítulos que se intitulam "Anti-Semistismo", "Imperialismo" e "Totalitarismo", termina "As Origens do Totalitarismo" com as seguintes palavras:
Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter.
A solidão, a sério ?
DA ESTUPIDEZ
Nos dias de hoje, é muito comum ouvirmos expressões que têm como ponto de partida comum a denominada "honestidade intelectual" : "é preciso ser intelectualmente honesto"," por uma questão de honestidade intelectual", "a bem da honestidade intelectual", etc. Como todas as expressões linguísticas, e sobretudo aquelas que se tornaram chavões ou bordões, conviria esclarecer o seu sentido. Enfim, o que quer dizer "honestidade intelectual" ? Num primeiro nível (básico, muito básico), indicaria um acordo de princípio entre factos e discurso (ordum idearum, ordum rerum idem est). Mas, neste nível, com esta escassez de análise não chegamos a lado nenhum. Nietszche dizia que não existiam factos, mas apenas interpretações. Assim, a equação ficaria amputada de um dos seus termos. Num segundo nível, mais profundo - e por este me detenho - significaria um acordo da consciência consigo mesma. Aqui, estaríamos mais próximos de uma definição aceitável da tal "honestidade intelectual", desde que tal implicasse uma exteriorização da consciência, isto é, desde que ela fosse tornada pública e assim sujeita ao escrutínio dos vigilantes da honestidade, ainda por cima intelectual. O que, só por si, cria um paradoxo: sabe-se que os menos honestos dos seres humanos são justamente os intelectuais. Por outro lado, a honestidade é um valor sobrestimado, com um valor de mercado a que não corresponde nenhum valor seguro, nenhum depósito fiduciário.
Tudo isto para dizer que não é honestamente intelectual, ou intelectualmente honesto, dizer que o putin é louco, ou psicopata. Para além de fácil, tal explicação dos seus actos implicaria uma desresponsabilização que é injusta: um inimputável, por muito pernicioso e danoso que se revele, não é, de um ponto de vista jurídico, passível de ser perseguido e castigado de acordo com o código penal e, eticamente, é injusto aplicar-lhe penas correspondentes às aplicáveis a todos aqueles que são imputáveis. Assim para além de ser um político (?) pós-moderno e kitsch, o que ele é e digo-o sem medo das palavras, é um ser profundamente estúpido; ele é a Fossa das Marianas, o Evereste da estupidez. Com ele, a célebre frase de Einstein segundo a qual "há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana e em relação ao universo não estou completamente certo" ganha um outro sentido. Assim como se aprofunda a resposta de Roland Barthes a um pedido de definição de estupidez, quando respondeu: "A estupidez é a euforia do lugar".
Para além disso, é um homem baixinho, com o complexo de o ser. As duas coisas (estatura e complexo) não se determinam necessariamente entre si. Ou seja, um homem baixinho não tem necessariamente que ser complexado; conheço alguns que não só não se importam de ser baixos, como ainda se agigantam quando as ocasiões o requerem. Ou seja, apesar da baixa estatura, estão à altura do que lhes acontece (passe o trocadilho). Não assim com o putinzinho; bombardear os outros, desfazer países, crivar de mísseis as populações civis, matar e tortura indiscriminadamente são outras tantas formas de acalmar o complexo da baixa estatura e a fealdade com que se olha ao espelho.
II
DA CLARIVIDÊNCIA
Em 1978, Alexander Zinoviev publicou em Paris um livro a que chamou "L'Avenir Radieux" (publicado em Portugal em 1987, pela D. Quixote, com o título "O Futuro Radioso"). Nessa altura, o pequeno putin ainda estava em Dresden a fingir que era um competente e patriótico espião ao serviço do KGB, e passeava pela "Democrática" Alemanha de Leste a sua baixa estatura e a sua ainda incipiente mas prometedora estupidez. Aquela que haveria de demonstrar na Chechénia, Geórgia, Síria e Ucrânia.
Zinoviev, por seu lado, construía uma poderosa fábula satírica, demolidora, sarcástica sobre o sistema soviético, representado em última instância pelos intelectuais: aqueles que estavam encarregados de demonstrar que a URSS era o melhor país do mundo, onde toda a gente exultava de felicidade e bem-estar, que o marxismo-leninismo era a única ideologia capaz de conduzir o homem à plenitude das suas faculdades e satisfazer todas as suas necessidades. Eram até encarregues de demonstrar que o país produzia tantos cereais que já não sabiam o que fazer deles (embora tivessem que comprar cereais ao Ocidente, pedinchando descontos e facilidades de pagamento). O que resulta numa demonstração prática da tese que acima enunciei e que liberta os intelectuais em geral, e os soviéticos em particular, de qualquer veleidade de honestidade (intelectual ou outra). O humor negro que pontua a obra resulta premonitório, assustadoramente premonitório. De entre as múltiplas personagens que vão comentando a situação, salienta-se um jovem poeta que vai escrevendo uns poemas satíricos sobre a sociedade soviética e os seus chefes. Obviamente, Zinoviev não conhecia o putinzinho, mas quem negará que este poema encaixa perfeitamente na personagem ?
O menor dos seus gestos é acontecimento histórico
O menor dos seus passos tem alcance mundial
Este teorizador não fez nada teórico
Nenhuma batalha foi ganha por este Marechal
Cada palavra que diz é revelação genial,
Sobre cada mistério um entender profundo
Uma evolução nova da doutrina final
Uma directiva sábia que dá a a todo o mundo
E o delírio eterniza-se de ano para ano
E ninguém tem coragem para dizer de caras.
Então não veêm que é um palhaço tolo,
Que só sabe fazer e dizer macacadas ?
III
DA IDEOLOGIA
Sabem os filósofos e sabemos nós o seguinte: existe uma distinção fundamental entre ideologia formal e ideologia real. E também sabemos que o cinismo não é um traço visível e marcante da natureza humana. O putinzito mostra-nos que é uma forma de ideologia que rege o seu comportamento. Na formação da sua personalidade o indivíduo pode chegar a esta ideologia se passar pelo conhecimento da verdade - coisa que o pequeno acha que aconteceu consigo, uma crença que decorre não da sua suposta psicopatologia, mas da sua estupidez, como espero ter demonstrado -, a escolha da sua posição - no caso deste pequerrucho, a posição ("a estupidez é a euforia do lugar") permite-lhe não só ter acesso aos meios para combater o seu complexo, como também lhe permite aceder aos bens tangíveis e materiais com que se tem vindo a locupletar com brio, ou, dito de outro modo, a roubar à vontade -, ou ainda pelo entorpecimento da sensibilidade emocional - esta última determinação está-lhe patente nas ventas; já vi barras de sabão-macaco com mais expressividade do que aquela face absolutamente desprovida de emoções. Tal significa, em última análise, que a ideologia do petiz - o cinismo, ou o ponto de vista do cão -não é uma ideologia real, mas uma reacção a um ideologia formal que, quando racional, o impediria de ser o que é. Este prognóstico, que não é minimamente arriscado, pois coincide necessariamente com os dados empíricos que temos disponíveis, pois, mesmo nas suas manifestações, digamos, mais "subtis", o homenzinho está sujeito às leis gerais da análise combinatória e da auto-conservação: retomando o título de um filme de Werner Herzog: "até os anões começaram pequenos".
Ainda mais: no caso deste homem pequenino, a ideologia formal (que ele tende a transformar em "oficial") é uma forma hipócrita, mas muito cómoda, que dissimula (pensa ele) aquilo que há de ignóbil na sua personalidade e que se resume aquilo que ele é e não ao que ele julga ser, o que significa que a sua monstruosa auto-afirmação e arrivismo (já pouco triunfante) alastram a toda a sociedade e poluem a vida comum, não só na Rússia, como no resto do mundo. Quando atrás disse que putin era um político pós-moderno, essa afirmação não foi fundamentada. Faço-o agora. A modernidade ensinou-nos que os indivíduos podem distinguir-se da massa que os gerou e da qual fazem parte e a considerarem-se assim valores intrínsecos. A história da civilização levou essa capacidade a um grau muito elevado. Por outro lado, a estrutura da nossa sociedade avança no sentido da despersonalização (total ou parcial). Desta tensão entre individuação e despersonalização decorrem, naturalmente, todas as formas monstruosas de auto-afirmação, de que o nosso pequenito constitui o clímax e que, sejamos intelectualmente honestos, não se distingue de todas essas nulidades que elevamos à categoria de génios, todas as intermináveis e insuportáveis auto-recompensas que permitimos a qualquer palhaço que se apresente bem vestido e bem falante, todos esses títulos que lhes atribuímos sem que minimamente os mereçam, em suma, todos aqueles a quem pagamos e recompensamos para que nos fodam a vida, todos aqueles gangsters que acabamos por dignificar e credibilizar são, todos sem excepção, pequenos putins sem as armas nucleares. Seria bom que refletíssemos um pouco mais sobre isto, sob pena de não percebermos que nenhum deles é uma personalidade; apenas querem ser percebidos como tal e essa percepção depende de nós mesmos, ou seja, depende de nós mesmos negar-lhes esse estatuto e mostrar-lhes que, tal como são, não podem ser percebidos como tal.
Como os eventuais leitores já perceberam, o putinzeco não é a face do Mal; não tem envergadura para tal (mais uma vez, peço desculpa pelo trocadilho involuntário).
Se insistirmos em falar com o passado, apesar de surdo e
distraído, há sempre um dia em que ele acaba por nos responder. Umas vezes não
dando a resposta que esperávamos, outras trazendo memórias tão óbvias que nunca
nos teriam ocorrido se não falássemos com ele.
Ao fim de uma vida intensa por esse mundo fora, repleta de
lugares e pessoas diferentes, Rodrigo viu-se de novo na sua cidade de sempre.
Mas a cidade já não era a mesma, tinha partes inteiras que não conseguia
reconhecer. As ruas estavam apinhadas de gente, trânsito, ruído. Não se
conseguia entrar normalmente num restaurante, numa loja, andar pela rua sem deparar
com multidões em todas as direcções como enxames de insectos. A cidade onde
sempre viveu definitivamente já não lhe pertencia. Vistas bem as coisas, se quisesse
colocar a questão de uma forma global, já nada lhe pertencia. Só ele a si
próprio e mesmo assim, temporariamente. Por isso falava com o Passado.
Lembrando-se, avaliando, julgando, mantendo um diálogo morno consigo enquanto o
conseguisse escutar. Interrogava-o nos livros que lia, chamava por ele nos
breves instantes antes de adormecer à noite, reconstruia memórias cheias de
espaços vazios que não conseguia preencher.
Decidiu mudar-se para uma casa no campo, herdada de uma tia
recentemente desaparecida, e estabelecer a partir daí a base dos seus dias. A
política de rescisões e despedimentos da empresa em situação económica difícil
permitiu-lhe um estatuto de pré-reforma devolvendo-lhe o tempo que nunca tinha
enquanto trabalhava. A profissão, a ex mulher, os filhos e até a cidade onde
sempre viveu já não lhe pertenciam, mas em contrapartida passou a ser dono do
seu tempo e da sua rotina. Uma nova ordem erguia-se sobre as cinzas de uma
ordem anterior. A velocidade abrandava, as obrigações diminuíam e os dias,
finalmente, pertenciam-lhe. Passou a dar longas caminhadas pelo campo fora, que
normalmente iam dar ao castelo onde tantas vezes brincou na sua infância
acompanhado pela Moody, uma “pastor alemão” de meia idade que o seguia como uma
sombra. Usando horários onde encontrasse menos visitantes entrava ou ao
amanhecer ou ao fim do dia. Depois escolhia um lugar para se sentar e ficava
por ali alguns minutos a contemplar o céu. Fechava os olhos e tentava imaginar o castelo em
outros tempos. As vozes dos habitantes, os cascos dos cavalos, o bater metálico
do ferreiro ao longe. Quase sem dar por isso passou a tirar uma fotografia do
interior das muralhas todos os dias. Ou de manhã ou ao entardecer. Depois à
noite seleccionava as melhores imagens e publicava-as num blogue que tinha construído
para o efeito. Em cada dia uma entrada. O Sol através das ameias, uma janela de
pedra aberta sobre o horizonte, tudo servia para preencher este seu novo hobby.
Foi após uma noite mal dormida que algo de novo aconteceu.
Levantou-se e saiu de casa pouco antes do amanhecer com a Moody atrás a farejar
todos os recantos do caminho, reclamando do sono interrompido e do pequeno-almoço
que ficou para mais tarde. Entrou no castelo quando o Sol já se fazia notar no
horizonte e subiu por umas escadas que levavam ao topo da muralha. Continuou a
andar até que encontrou a imagem daquele dia. O desenho de uma janela em
ruínas virada a Oeste estava ali, teimosamente erguida no vazio como último testemunho de uma
estrutura outrora completa, inteira. Esperou um pouco e preparou a câmara.
Deixou o Sol passar para a base do parapeito e disparou várias vezes. A meio
ouviu um rosnar da cadela mas não lhe ligou. Foi logo a seguir ao momento em
que julgou ver uma sombra, ou um vulto ou qualquer coisa do género do lado
superior esquerdo do enquadramento. Mais tarde já em casa ao rever as imagens
percebeu que não tinha sido só uma impressão. Era a sombra de uma cabeça de
mulher. Cabelos compridos e um resto de rosto. Resolveu ampliar, reenquadrou,
brincou com o contraste, inventou. No fim conseguiu construir um rosto sereno
de uma mulher nova, de cabelos ruivos e ondulados numa expressão tranquila. Um
sorriso meigo por baixo de um olhar doce, uma expressão de saudação a alguém
que reconhecia. Primeiro ficou curioso, depois deixou-se perturbar. Por fim
encarou tudo aquilo como uma viagem qualquer das muitas que tinham feito parte
da sua vida. Outros lugares, outras gentes, outras latitudes, outras
realidades. Talvez um soluço quântico do universo na hora de nascer o dia.
Talvez um encontro de impossibilidades que se tornou real numa fracção do
tempo. E que aconteceu, sobre isso não restavam dúvidas. A imagem registada e o
rosnar da cadela assim o indicavam.
Nessa noite sentiu um cansaço muito grande e resolveu
deitar-se cedo. Sonhou a noite toda, andou por várias paragens até que foi parar
outra vez ao castelo. Estava numa enorme sala de decoração medieval e envergava
uma capa branca. Estava cansado mas satisfeito. Ao fundo o dono do castelo
recebia a sua mulher após uma longa viagem. Nesse momento percebeu que aquela
mulher era a mulher que a tecnologia o havia ajudado a desenhar no computador.
O cabelo longo e ruivo, o sorriso meigo e a expressão tranquila. Observava toda
aquela cena apoiado na sua lança de cavaleiro. De repente a mulher notou a sua
presença. Olhou para ele e acenou com a cabeça sorrindo. E nesse instante
percebeu que a tinha escoltado até ali enquanto seu guarda pessoal. Que a sua
função era garantir a sua segurança ao longo daquela jornada. E por fim, percebeu
também pelo mexer dos lábios dela que lhe agradecia o seu empenho e a sua
tarefa que terminava naquele dia. Quando acordou decidiu transformar todo
aquele cenário numa breve alegoria. A de ter conduzido a sua existência até àquele
tempo e de ter desempenhado a sua tarefa de forma satisfatória. Pelo menos
havia alguém que lhe agradecia o esforço. Alguém que reconhecia o bom
desempenho da tarefa. Nem que esse alguém fosse um vulto indiferenciado ao
amanhecer que as várias modalidades da tecnologia transformassem numa
possibilidade real de um ser efectivo.
Artur
Devo esta honestidade de viver o poema ao invés de o publicar.Devo a vós meus filhos, neta, amigos,pais e avós.
Sia la ventura
di uno stimolo
qualunque.
Lo stato vegetativo
della vita procrastinata
non è bello.
Ché, se il tedio
fosse bello,
la rinuncia
un prodigio,
allora il paradiso
sarebbe il mondo.
La paura
una ventura,
quel che fugge
il vero tesoro
e l’Inverno
l’allegria
di un rinnovamento.
[Haja a ventura / De um estímulo / Qualquer. // O estado vegetativo / Da vida adiada / Não é belo. // Pois, se o tédio / Fosse belo, / A renúncia / Um prodígio, / Então o paraíso / Seria o mundo. / O medo / Uma ventura, / O que escapa / O verdadeiro tesouro / E o Inverno / A alegria / De uma renovação.]
***
Quanto feroce
è il tempo?
Quanto funerea
è la vita?
Vorrei strappare
i miasmi della
paura,
raggiungere
mille orgasmi
di Sole.
[Quão feroz / É o tempo? / Quão funérea / É a vida? // Quisera rasgar / Os miasmas do / medo, / Alcançar / Mil orgasmos / de sol.]
***
Ascoltate:
la vera radice
della penuria
è quel che
si ruba
alla coscienza.
[Escutai: / A vera raiz / Da penúria / É aquilo que / Se furta / À consciência.]
***
Che non vi sia passaggio
delle ore.
Il tempo è ristagno,
o ruota e dismisura.
Il momento fugge,
l’occaso giunge.
Un tempo vi era luce,
e mare e cielo e orizzonte.
[Não haja passagem / Das horas. / O tempo é estanque, / Ou roda e desmesura. // O momento foge, / O ocaso chega. / Outrora havia luz / E mar e céu e horizonte.]
***
L’urgenza sgorga
dal volere
il mondo.
Forse per questo,
certe cose dello
spirito,
sono
nel pieno
indugio.
[A urgência brota / De querer / O mundo. / Talvez por isso, / Certas coisas do / espírito, / Sejam / Na plena / demora.]
*Occaso: voci poetiche dal Portogallo é uma rubrica do blog bottega portosepolto.it, com a curadoria de Fabrizio Boscaglia.
Atrevo-me a dizer que não me apetece dizer nada. Ficar
esquecido num canto e deixar esgotar o frenesim que foi toda uma vida a correr
atrás de metas, sonhos, objectivos nunca alcançados, ou conquistados mas nunca
conseguidos. Atrevo-me a dizer que me sinto melhor quando estou calado a
observar o tempo que acontece, a folha da árvore que ondula com a brisa, o gato
a espreguiçar-se sobre o muro. Ter muito para dizer e não haver recipiente onde
o despejar torna-se inútil, frustrante, deprimente. As histórias escrevem-se
para serem transmitidas a um receptor, pressupõem uma reacção, uma resposta. As
histórias são breves pedaços de comunicação, memórias partilhadas, tempo
dividido. Mas a ligação do indivíduo que simplesmente se cala e observa o tempo
a acontecer, a Natureza que se manifesta, é também uma espécie de comunicação.
Dizem que o Universo mantém um diálogo permanente connosco desde
o dia que nascemos. Na maior parte das vezes estabelece essa comunicação
através de sinais. Imagens, números, estruturas, o comportamento do corpo,
sonhos, leituras, etc, que provocam em nós alguma reacção, actuam um sistema
qualquer que…dá sinal. Podem ser avisos em relação ao caminho que se apresenta
adiante. Podem ser necessidades de corrigir a rota ou pode ser simplesmente que
exista dentro de nós uma linguagem sinalizadora que funciona como a sala de
navegação de uma existência. Normalmente não se conseguem decifrar com a razão…sentem-se,
fazem pressentir, ressoam, tornam-se reconhecíveis. Por isso levam algum tempo
até se conseguirem esclarecer. Se houver algum caminho a percorrer neste
universo e se for essa a nossa tarefa permanente, então os sinais são para
interpretar enquanto grupo de regras dessa viagem. O caminho, esse, continua
sempre, sem se interromper, sem hesitações, indiferente à decifração.
Deixemos no ar enigmas e mensagens cifradas ou, muito
simplesmente, comunicações que não fazem sentido nenhum. Aparentemente acabarão
por o fazer em algum lugar, em algum tempo.
Atrevo-me a dizer que na maior parte das vezes não me
apetece dizer nada, guardo as memórias numa caixa e fico a ver a coloração de
uma flor ou a caminhada do gato sobre o muro assim que estão encerradas as
cerimónias da sua higiene diária. E distraio-me ao fim da tarde com o melro
pontual que aterra sobre a relva do jardim em busca de uma minhoca para o
jantar. Tudo já foi inventado, para quê pretender a forma original, para quê
escrever melhor que o outro? Escreve-se e pronto. Quando me apetece, quando a
voz interior fala mais alto e sai pelas entranhas, quando me lembro daquela
história que ouvi, daquela personagem que cruzou o meu caminho. Não que tenha
interesse nenhum para ninguém querer ouvir. Simplesmente resulta de um acto de
higiene diária que se executa sobre o muro que separa o absurdo do racional, a
vontade da inércia, a vida da morte. O muro fica, os passos da saída sobre ele
são executados com estilo e o Sol volta a descer no horizonte enquanto um melro
atrevido nos olha encantado com uma minhoca pendurada no bico.
Artur
A realidade, o quotidiano em geral, a vida como a conhecemos
está de saída. Fica de pé à porta do nosso quarto, dá-nos alguns minutos para
fazer o saco vai lá para fora à espera Não que nos ralemos muito com o assunto.
Continuamos a viver exactamente da mesma maneira, a cometer os mesmos erros e a
desprezar aquilo a que deveríamos dar valor. Que se lixe. As pragas vão caíndo
uma a seguir à outra, a guerra e a consequente destruição total vai pairando em
cima das nossas cabeças mas ninguém se rala desde que não lhe toque pela porta.
Van Gogh escreveu a certa altura que a humanidade tinha sido uma experiência
que correu mal ao Criador. Nos dias que correm podemos imaginar o Criador
a recolher os tubos de ensaio, a lavar as amostras e a limpar o laboratório
antes de desligar as luzes e ir à sua vida. E mesmo estes tempos apocalípticos
acabam por ter as suas vantagens. Há uma quantidade de imbecis que nunca mais
voltaremos a ver, um sem fim de dores que irão desaparecer e se voltarmos a
acordar noutro lado qualquer saberemos que estamos vivos de alguma maneira. Não
que tudo seja mau na humanidade…de maneira nenhuma. O problema é que no cenário
em que nos encontramos foi sempre o pior de nós que prevaleceu, foram sempre as
qualidades mais negativas a ter mais força e a dominar os dias. Por isso não
estou preocupado com coisa nenhuma. Se for o vazio total será a consciência
zero e a preocupação nula, se for outro tipo de existência, dá-me a sensação
que não vou ter que pagar impostos. Por isso, marchemos contentes e felizes a
caminho da destruição final porque nada mais há a fazer.
Artur
“A Sabedoria edificou a sua casa,
lavrou as suas sete colunas.”
Livro dos Provérbios, IX.I
Para perceber é preciso tempo,
diria alguém mais velho ou mais sábio a alguém menos entendido. Ou talvez não.
Talvez aqueles quem têm alguma coisa a dizer, algum conselho a dar não sejam
exactamente homens sábios. Talvez sejam simplesmente “sabedores” em vez de sábios,
tipos que relatam partes do caminho a quem chega lá de trás e ainda não o
conhece no local em que se encontra.
(ganda seca, até faz lembrar a entrada daquela
famosa série “Lin Chung O Justiceiro” do final dos anos 70, onde cenas
colossais de pancadaria eram interrompidas por citações de Confúcio ou de um
outro sábio qualquer para grande azar do espectador adolescente que queria era
ver acção, isto é, tareia da boa)
Talvez essa espécie de pessoas
(os sábios) sejam tipos de uma fibra diferente que faz passar a sua mensagem de
todas as maneiras menos através da palestra, do conselho, da aula. Talvez sejam
tipos capazes de com um breve apontamento, uma história, uma alegoria,
conseguir fazer passar um tratado de conceitos, filosofias, aspectos
existenciais que o receptor consegue apreender com rapidez e evoluír mais um
bocado no seu trajecto.
(Por acaso, nos tempos que correm
não faço a mínima ideia do que será bom senso, lógica determinativa, evolução,
desenvolvimento no que à nossa espécie diz respeito. Para onde vamos, o que é
que andamos aqui a fazer, quem é que apagou a luz, como é que tudo é desprovido
de sentido são as questões que mais me assaltam quando me lembro do sítio onde
estou).
Devo ter conhecido dois ou três
sábios ao longo da minha vida. Um deles, o padre Viana, era um jesuíta que passou
três anos na paróquia da área onde eu morava em miúdo. De manhã levantava-se e
empurrava a estante dos livros até à janela aberta porque entendia que eles
precisavam de apanhar ar. Ao fim da tarde voltava a empurá-los de volta ao
sítio original. Era o recordista das confissões (actividade que detestava). As
velhas de sempre mal tinham tempo de se ajoelhar já eram bombardeadas com a
penitência e a absolvição e toca a andar que ele tinha mais que fazer. Era um
erudito, dava aulas de Teologia na Universidade e o seu mundo era o estudo, o conhecimento
e a espiritualidade. Não julgava, não criticava nem impunha. Limitava-se a
responder acerca daquilo que lhe perguntavam, a executar a sua tarefa
profissional de forma institucional sem se deixar envolver. Eu, como outros do
bairro, rapidamente nos rendíamos aquela figura peculiar de padre do
conhecimento, muito mais empenhado em explicar os mistérios do universo do
pensamento do que em impor condutas, julgar comportamentos, elencar o caderno
dos castigos para aqueles que se portavam mal. Às vezes era visto à noite em
passada larga à volta da igreja a apanhar ar antes de ir dormir. Um autêntico
comboio a deitar fumo do seu cachimbo ao qual nos juntávamos por vezes. Nessas
voltas eternas em torno da igreja falava-se de tudo e de nada. Nenhum tema era
incómodo para ele. Temas da actualidade social e política, temas de outras
religiões, espiritismo, fenómenos estranhos, Filosofia, História, etc. De vez em quando uma pausa para contemplar a
margem Sul do Tejo e o Seminário de Almada onde tinha feito os seus estudos
antes de ingressar na Ordem. Recordava as tardes de jogatinas de futebol ao fim
de semana e da alegria que isso lhe dava. A vontade de rir a correr com mais
vinte alunos de batina até aos pés e sapatos de trabalho, dado que era proibido
o uso de calções ou camisolas adequadas à prática desportiva. Graças ao padre
Viana fiquei a saber os clássicos gregos com uma ótima nota a Filosofia no fim
do secundário. Em marcha rápida às voltas e voltas ao redor da igreja ia-se visitando
a Escola de Atenas como quem vai a casa da família de um amigo. Sócrates,
Platão, Aristóteles, eram-nos apresentados de uma forma desassombrada, as
razões de ser da forma como pensavam, o tempo em que viviam, etc, etc.
Em poucas sessões nocturnas
acabámos por nos tornar amigos. De tal maneira que, uma vez por outra, combinávamos
um jantar. Havia no entanto duas épocas específicas em que não se podia contar
com ele. Em Outubro e em Junho o padre Viana fazia o seu retiro nos arredores
de Lisboa. Durante uma semana numa cela fria e húmida de um convento abandonado
praticava o jejum e a meditação a kilómetros de distância da povoação mais
próxima. Ora acontece que esse convento era conhecido por estar associado a
acontecimentos bizarros que ocorriam na sua proximidade. Em grupos de amigos
havia sempre alguém que tinha uma história para contar, normalmente assustadora.
Ou de corujas que se atravessavam na estrada e desapareciam, gritos de vozes ao
longe, até mesmo a falha mecânica temporária de um carro que deixou de
trabalhar de um momento para o outro. Quando soubemos do paradeiro dos retiros
do padre Viana, o Rodrigo que era mais velho e que já tinha lido mais alguns
livros do que o resto da malta lançou-lhe o desafio num jantar.
- Não tem medo de estar sozinho
num local daqueles de que se contam histórias terríveis e assustadoras ? – ao que
ele respondia descontraído
- Oh meu amigo, eu sou padre.
Acredito em Deus. É na graça dele que me entrego. Se tivesse dúvidas ou medo de
alguma coisa tinha que escolher outra profissão.
E ficávamos por ali sem mais
esclarecimentos. Havia água num regato que por lá passava que lhe mataria a
sede. De resto só levava um missal, um terço e um saco-cama. O resto era
meditação e oração. Purificação para uma nova época. Mito urbano ou espaço
assombrado o certo é que até eu me aventurei (de dia) por aquelas bandas com
mais dois “valentões” numa tarde primaveril. Por sugestão ou puro cagaço, o
certo é que não nos aproximámos mais do que uns cinquenta metros do local.
Voltámos para trás com a ideia reforçada da coragem e singularidade daquele
homem de meia-idade que nunca contava tudo o que sabia.
Numa noite de festa de fim de ano
lectivo e santos populares voltámos a jantar todos juntos. Talvez devido ao
calor toda a gente bebeu mais um pouco do que devia. Após a breve troca de
informações (as notas finais e os desejos de continuidade escolar), já depois
das sobremesas o padre Viana anunciou que depois do Verão seria colocado numa
nova paróquia ainda por determinar. Nós seríamos sempre bem-vindos se o
quiséssemos visitar. Na semana seguinte faria mais um dos seus retiros. Ficámos
calados a digerir o jantar e a informação. Olhámos uns para os outros como quem
interroga quem é que vai fazer a pergunta. O Rodrigo voltou a avançar. Contou a
nossa breve aventura de cagarolas e de como não nos conseguimos aproximar do
convento em ruínas. E disse qualquer coisa como nunca o iríamos esquecer, nem a
sua amizade nem a sua coragem de asceta em permanecer sozinho num lugar
daqueles. O padre Viana sorriu, mandou vir uma bagaceira e acendeu o cachimbo.
Depois olhou em redor.
- Já que para o ano não vou estar
cá quero-vos deixar uma lembrança antes de partir. Aquele lugar de que vocês
tanto falam em ignorância e medo foi em tempos habitado por um grupo de monges
que fazia voto de silêncio. Viviam do que produziam numa horta e dedicavam o
seu tempo à meditação e oração. Durante as invasões francesas houve um
esquadrão de cavalaria inimigo que passou por ali. Quando deram com o convento
roubaram os mantimentos, pilharam as poucas relíquias que lá existiam, incendiaram
o edifício e massacraram todas aquelas duas dezenas de almas que lá viviam. Desde
esse trágico dia nunca mais ninguém lá viveu. Ficaram as paredes e o regato
como únicos testemunhos do que uma vez terá sido um espaço habitado por alguém.
E agora digam-me vocês..? Que espécie de
vibrações é que poderia ter um lugar onde tudo isto aconteceu?
Artur
Quarto dia do quarto mês de dois mil e vinte e dois.