São muito pouco conhecidas as relações entre Albert Camus e André Malraux, ofuscadas pela muito comentada e analisada até à exaustão extraordinária relação de amizade entre Camus e Jean-Paul Sartre e a ainda mais comentada ruptura entre os dois, provocada pela publicação de "O Homem Revoltado". A obra "Correspondance 1941-1959" vem por isso preencher essa lacuna. Trata-se de uma edição da NRF Gallimard de 2016 e, como é habitual nessa chancela, é de uma sobriedade total: limita-se a reproduzir a correspondência trocada entre os dois entre 1941 e 1959, exarando algumas notas de rodapé que enquadram as missivas trocadas no seu contexto histórico e nos respectivos percursos biográficos, deixando para o leitor a interpretação literal daquilo que uniu essas duas personalidades ímpares do século XX europeu. Agradecemos que assim seja, que sejamos livres para traçarmos o retrato dessas relações a partir das palavras dos próprios. Sophie Doudet, que organizou e apresenta a correspondência, limitou-se a organizá-la cronologicamente e, como já disse, a enquadrar o contexto em que ela ocorre, apresentando, isso sim, uma bibliografia que permite ao leitor, se assim o desejar, aprofundar o conhecimento da biografia e obra dos escritores.
A primeira coisa a reter é o papel fundamental desempenhado por Malraux na entrada de Camus na Gallimard e na publicação conjunta de "O Estrangeiro" e de "O Mito de Sísifo". Sabe-se que Camus prezava acima de tudo a triangulação que consistia em, sobre um determinado tema, escrever uma obra de ficção, um ensaio e uma peça de teatro. E sabe-se também que Gaston Gallimard não estava muito pelos ajustes na publicação do ensaio filosófico de um jovem a quem não reconhecia profundidade e sistematicidade suficientes para que as suas elaborações filosóficas tivessem bom acolhimento no ambiente da França ocupada e em grande tumulto. Já quanto ao romance era diferente: a recomendação de Malraux e de outros intelectuais de peso garantia a repercussão dessa obra inicial que inaugurava uma das mais extraordinárias aventuras do pensamento e da arte do século XX. É assim que ficamos a saber que Malraux recebeu um exemplar de "O Mito" com uma dedicatória que rezava:
"À André Malraux avec l'admiration et l'amitié d'Albert Camus"
É importante referir que Malraux é mencionado quatro vezes no ensaio sobre o Absurdo, o que atesta a admiração que Camus tinha por ele e também a amizade que o mais jovem sempre dedicou aquele que considerava como seu mestre. E, no entanto, e na verdade, o que poderia unir esses dois homens cujas vidas não poderiam diferir mais ? Malraux nasceu em Paris no seio da burguesia endinheirada, filho de uma civilização que depressa vai descobrir que é mortal. Quando Malraux parte para a Ásia e dá início a uma série quase inacreditável de aventuras, Camus é ainda uma criança pobre na Argélia francesa e quando "A Condição Humana" obtém o Prémio Goncourt de 1933, este último é um jovem estudante prometedor que, mais tarde, irá adaptar ao teatro "Le Temps du Mépris", e que, ainda não tendo publicado nada se vai medir com uma personalidade que ombreia com Dostoievski, Proust, Gide e com a elite dos intelectuais franceses que gravitavam em torno da NRF. Portanto, tudo os distinguia: a origem social, os estudos que fizeram, a idade, a intervenção pública: em 1936, quando Camus organiza a representação colectiva "A Revolta das Astúrias", que precede em muito a publicação de "L'Espoir", Malraux é já o comandante da aviação estrangeira que combateu do lado republicano na Guerra Civil espanhola; Camus "apenas" militava civicamente em prol da justiça e da liberdade. Podemos imaginar a emoção de Albert quando desembarcou em Paris e assistiu à exibição de "Espoir - Sierra de Teruel", realizado por Malraux e com origem na sua experiência no combate espanhol, um Malraux símbolo da resistência anti-fascista e no auge da sua glória literária. O que é certo , e disso esta correspondência dá conta, é que Camus e Malraux se admiravam mutuamente e que foram desenvolvendo uma amizade sem mácula ao longo do tempo, apesar de divergirem séria e profundamente no que concerne às respectivas posições políticas depois da Libertação. Porque antes disso, e no essencial, estavam de acordo. E como não estariam ? Certamente Malraux, ele próprio empenhado na denúncia do colonialismo francês na Indochina, admirava a denúncia que Camus fazia do colonialismo francês no Norte de África nos artigos publicados no jornal "Alger Républicain".
Uma das mais extraordinárias trocas de correspondência entre os dois ocorre quando Albert Camus lhe pede autorização para adaptar ao teatro e encenar no Théâtre du Travail "Le Temps du Mépris". A resposta de Malraux é peremptória e definita, consistindo numa única palavra: "Joue !", sem sequer cuidar de saber em que termos Camus iria adaptar e encenar o seu texto. O que atesta o nível de confiança na integridade de Camus e na certeza de que combatiam o mesmo combate. Ainda não se tinham encontrado pessoalmente. Esse encontro dá-se, como já foi dito, por ocasião da estreia em Paris do filme de Malraux, portanto sob o signo do apoio à causa republicana espanhola e à defesa da República; ambos denunciam - com os meios e recursos que tinham à sua disposição - o golpe de estado franquista e não se cansaram nunca de condenar veementemente o miserável abandono, a terrível negligência a que a comunidade internacional votou a República espanhola. Essas duas vertentes da sua intervenção pública - denúncia do colonialismo e condenação do fascismo espanhol - acabariam por cimentar ainda mais a amizade e admiração mútuas. E Malraux nunca se esqueceu do que viu em Espanha: as acções dos conselheiros soviéticos, mais preocupados em esmagar as veleidades não ortodoxas dos anarquistas e outras facções de esquerda do que em combaterem os franquistas. Foi aí que começou a deixar de ser um "compagnon de route" do Partido Comunista. E nunca voltou a Espanha. Olivier Todd, um dos grandes biógrafos de Malraux (cf. "André Malraux - Une Vie", Paris, Gallimard, 2001) conta que em 1972 recusou desembarcar em Cádiz aquando de um cruzeiro que fez no Mediterrâneo. Camus, pelo seu lado, demitiu-se em 1952 da Unesco por a organização ter aceite a Espanha franquista no seu seio.
Passo por alto as relações entre eles durante a II Guerra Mundial e a Ocupação, período em que as cartas entre ambos se tornam raras por motivos óbvios. Interessará saber que, em 1943, Malraux foi decisivo na escolha de Camus e Sartre como jurados do Prémio Literário Pléaide, criado pela Gallimard e pela escolha de Camus como integrante do comité de leitura da Gallimard, cargo que ocupará até à sua morte em 1960; que Camus ajudou inúmeras vezes Malraux nas suas acções como resistente; que, no jornal "Combat", em 1944, fez titular a primeira página com o anúncio "André Malraux est vivant", depois de ter sido anunciada a sua captura pelos alemães e o seu fuzilamento. Ferido, capturado e evadido para continuar o combate. Camus escrevia:
"Nous n'avions jamais accepté la nouvelle de sa mort. L'amitié a son espérance et ses raisons plus fortes que la raison. Car il était, "il est", de nos amis et l'idée qu'il pouvait être tombé dans une lutte qui était la sienne et la nôtre depuis tant d'années, avant de connaître la victoire, cette idée nous serrait le coeur et nous remplissait d'amertume (...) Quelques semaines avant la Libération, Malraux nous quittait pour la dernière fois, sur le Pont Royal, les cheveux sur le front, la cigarette vissée au coin de la bouche et l'imperméable volant au vent de la Seine (...) Nous avons dit "Veillez sur vous" et Malraux riait".
Este e outros textos podem ser lidos na indispensável recolha "Éditoriaux et Articles d'Albert Camus 1944-1947", edição estabelecida por Jacqueline Lévi-Valensi, Paris, Gallimard, 2002.
Termino, sem terminar, referindo a última troca de correspondência e a última interacção entre os dois. Ocorreu em 1959, quando Malraux era Ministre des Affaires Culturels (um ministério da cultura criado por De Gaulle à altura e dimensão da figura de Malraux), já no fim do ano. Malraux conseguiu desenredar as teias burocráticas e financeiras para a atribuição permanente de uma sala de teatro parisiense a Albert Camus, para que este a gerisse administrativa e artisticamente com toda a liberdade. Já não houve tempo; Camus morria a 4 de Janeiro de 1960.
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