sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

HA

 




Dedicado à Matilde, minha querida filha e uma mente brilhante


Um destes dias, já não sei qual, fui à FLAD assistir ao lançamento do livro "Hannah Arendt - Uma Biografia" (Relógio d'Água, 2022) pela sua autora, a Prof. Samantha Rose Hill e lembrei-me que este blog estava a cometer uma enorme injustiça: se não me engano, nunca publicámos um texto sobre Hannah Arendt, uma das maiores pensadoras do século XX, cuja fecundidade de reflexão continua a ecoar em todos os problemas que se nos deparam, sejam eles de cariz político, sociológico ou filosófico. Talvez tenhamos feito referências esparsas à sua obra em outros textos, mas este é o momento de começar a preencher essa lacuna inadmissível. Não sendo eu um especialista no seu pensamento - não sou, aliás e ainda bem, especialista em nada - sou ainda assim um devoto leitor das suas obras e delas me tenho servido muitas vezes para me guiar no labirinto da contemporaneidade. E tenho, sobretudo, procurado compreender as suas posições e perspectivas em relação à acção política, sabendo que a filósofa o fez sempre a partir de um horizonte ético que se baseia sempre na interrogação primicial: como podem os homens agir em conjunto (portanto, política e publicamente) no sentido de expressarem o seu amor uns pelos outros e pelo mundo que habitam.

Não sendo, como já referi, um especialista no pensamento de Arendt, não procuro traçar um panorama completo desse pensamento, mas antes iniciar um série que se debruçará sobre aspectos da sua reflexão que se me oferecem como fundamentais, começando, como já adivinharam, pelo conceito de "amor mundi". Antes de me abalançar a tão arriscada tarefa, quero deixar uma nota introdutória que consiste em relembrar que, apesar dos tormentos pessoais que quase a fizeram colapsar (nomeadamente a sua fuga da Alemanha nazi, a sua fuga posterior de França quando esta foi invadida, a morte de Walter Benjamin, a sua chegada a Nova Iorque completamente desprovida de meios materiais, etc.) Hannah sempre foi uma pessoa com uma imensa alegria de viver e dotada de um incomensurável sentido de humor. E também quero assinalar que, apesar de ter estudado e convivido com os grandes peso-pesados da Filosofia do século XX - Martin Heidegger, Edmund Husserl, Karl Jaspers - manteve sempre uma enorme abertura de espírito e permanentemente procurou uma certa leveza que, sem prejudicar a profundidade, justeza e rigor do seu pensamento, a tornam mais próxima de nós, mais presente na nossa fragilidade e vulnerabilidade, mais ciente dos nossos erros e dos nossos fracassos. Em suma: mais humana.

Para início de conversa, relembro que a sua tese de doutoramento tem como título "O Conceito de Amor Em Santo Agostinho - Uma Reflexão Filosófica" (Instituto Piaget, 1997), texto no qual, distanciando-se da dimensão teológica, Arendt identifica e analisa uma das dimensões do conceito de "amor" em Agostinho: o princípio ético que vincula os homens uns aos outros e através do qual é possível formar comunidades. A questão, para a filósofa alemã consiste em determinar se esse conceito de amor é por si só capaz de gerar conexões sociais e determinar a acção política. Para o que aqui me traz, não me interessa desenvolver muito este tema, remetendo os eventuais interessados para a referida obra disponível numa excelente tradução e numa edição muito cuidada como é apanágio das edições do Instituto Piaget. O que me importa reter é a centralidade do conceito de amor em todo do pensamento de Arendt (desde esse texto de 1929) até ao seu fim. E também me importa assinalar que a apresentação que possa fazer do conceito de "amor mundi" ficará sempre aquém da complexidade e da profundidade da sua formulação.

Se, como diz Samantha Rose Hill, os sentimentos são perigosos em política, a solidariedade e o pensamento crítico são essenciais, teremos que concluir que o primeiro requisito é o de ver os outros tal como são, o que parece ser uma verdade banal, mas que já não o é tanto se reformularmos a expressão, acrescentando-lhe: "ver os outros tal como são, não em função do nosso próprio desejo ou a partir de uma concepção abstracta de mesmidade". O que Arendt visa acima de tudo (depois de ter analisado e desconstruído os dois tipos de amor que S. Agostinho concebia - o amor-desejo e o amor-memória - é o amor que ama o próximo e o mundo em toda a sua alteridade. E, provavelmente fruto das suas próprias experiências, amar o mundo significa amá-lo na sua totalidade, incluindo o sofrimento, a injustiça, a fealdade, a falta de verdade ,de justiça e de felicidade que, evidentemente, não são deste mundo.

O processo de Arendt é constituído por uma análise altamente sofisticada das patologias do amor, relembrando que o amor é muito mais do que o amado e o amante; há um mundo entre eles que tem que ser cuidado, num espaço político onde todos os actores estão presentes todo o tempo, interagindo e baralhando os dados de um sistema que só na aparência é robusto e eficaz. Na última obra que produziu - "A Vida do Espírito - Volume II Querer", Instituto Piaget, s.d.), Arendt volta a afirmar que o amor é o reconhecimento da alteridade dos nossos semelhantes e pré-condição para a criação do espaço político. Sublinhando que para Agostinho é o amor que transforma a vontade dividida, diz: "não existe uma afirmação mais forte de algo ou alguém do que amá-lo, ou seja, dizer: Quero que existas - Amo: volo ut sis".

É preciso, então, que voltemos a repensar esse conceito, para percebermos onde errámos, em que encruzilhada virámos na direcção errada, em que altura deixámos de ver com clareza e nos tornámos os autómatos da modernidade, os zombies da tecnologia, os arautos (mesmo que involuntários) da função, do empreendedorismo e de todas as outras barbaridades com que enfeitamos o nosso vazio existencial.

Aliás, deixo já aqui uma pista para um próxima abordagem do pensamento de Hannah Arendt:

Por que razão, depois dos grandes capítulos que se intitulam "Anti-Semistismo", "Imperialismo" e "Totalitarismo", termina "As Origens do Totalitarismo" com as seguintes palavras:

Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter.


A solidão, a sério ?


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