(Crónica de uma guerra qualquer)
A noite estava ainda fechada sobre a sua escuridão e o ar do
quarto era denso. Sentado aos pés da cama James olhava lá para fora através da
janela. Não tinha a certeza de ter acordado muito cedo ou se sequer tivesse
pregado olho. A chuva intensa das últimas horas tinha finalmente cessado, dando
lugar a um silêncio total, quase mágico. Envolvido no fumo do cigarro que lhe
ia ardendo entre os dedos estava incerto quanto ao que sentir. O seu pensamento
era vago tal como o olhar que, olhando, não conseguia ver nada, registar fosse
o que fosse. Deixou-se embriagar por instantes naquela atmosfera de vazio total
que o fazia sentir vagamente em paz. Os tempos eram pesados, a maior parte das
vezes incompreensíveis. A guerra tinha vindo como uma tempestade negra virar tudo
ao contrário. A vida das pessoas, o espaço vivido, e à medida que se instalou
foi toldando esperanças, interrompendo existências, eliminando expectativas.
Uma nova realidade passou a tomar conta dos dias obrigando todos a reformularem
os seus planos. A outrora promessa da arquitetura, especializada em restauro de
casas antigas, era agora um homem em uniforme dentro de uma hierarquia rígida
que recebia e cumpria missões de defesa do território do seu país tentando
abater o maior número de inimigos. Pelo menos voava, uma das actividades que dantes
mais prazer lhe dava nos tempos livres. Olhou para o lado onde Martha dormia
descontraída, indiferente à noite e ao mundo em geral. Lembrou-se da
intensidade das últimas horas vivida entre eles. Da loucura, da paixão bem como
da tremenda discussão no fim. Há cerca de três anos que se encontravam em
espaços escondidos, há três anos que desesperavam um pelo outro, há três anos
que se amavam apaixonadamente. James entendia que era hora de juntarem as suas
vidas. Martha, dez anos mais velha que ele, era casada. Amava-o mas não era
capaz de deixar o marido. Havia a sociedade, o contrato do casamento, as convenções
e mais um sem fim de razões que a prendiam. Não podia deitar tudo pela janela
fora por mais que gostasse dele. Um beco sem saída que James tolerava cada vez
menos. Se tudo tinha ficado virado do avesso com a guerra, se nada voltaria a
ser como dantes, para quê insistir em hábitos condenados a desparecer? Era
Martha que o amava, era Martha que não aguentava dois dias sem o ver, era
Martha que dormia despreocupada naquela cama ao seu lado… Mas era lady Clarence
que queria continuar a ser, era lady Clarence que se recusava a morrer para
deixar Martha livre de viver a sua vida com o homem que desejava.
Para James naquela noite tinha sido tudo dito. Daí para a
frente não tinha ainda uma ideia nítida do que iria fazer mas nada voltaria a
ser como antes. Tal como a varredura dos ventos de guerra que destroem uma
ordem e permitem que outra se erga sob as suas cinzas, a sua existência sofria
uma metamorfose sem desfecho previsível.
O que for, seria.
Levantou-se para apagar o cigarro no cinzeiro em cima da mesa
e viu o seu blusão de voo pendurado numa cadeira esquecida. Por cima,
entrelaçado, o cachecol branco de seda que ela lhe tinha oferecido no seu
último aniversário. Vestiu-se e vasculhou nos bolsos. Tirou um bloco de notas e
um pequeno lápis para fora e escreveu uma frase breve. Depois dobrou o cachecol
com muito cuidado e deixou-o sobre a mesa de cabeceira do lado dela. Arrancou a
folha onde tinha estado a escrever com um movimento seco, dobrou-a ao meio e
colocou-a sobre o cachecol. Observou o corpo dela meio destapado pela última
vez naquela noite. Uma perna pendurada para fora da cama, as costas livres, as
nádegas soltas. Martha emitiu um tímido gemido quando a empurrou levemente para
dentro e a tapou. De seguida aproximou- se dos seus lábios e beijou-a quase sem
lhe tocar para que continuasse a dormir.
Já cá fora sentiu o arrepio da madrugada nos ossos. Colocou
os óculos protectores e montou a motorizada que usava desde que se tinha dado
como voluntário para as fileiras. Empurrou-a com as pernas sem a ligar até
estar bastante longe da estalagem. Só depois o ruído do motor e o frio da
madrugada se tornaram seus companheiros de velocidade a caminho da base. Sem
saber porquê recordou a Biblioteca do pai, aquele espaço onde tinha passado
tantas tardes fascinado com os livros, os seus livros e os seus mistérios. Ali
tinha percebido a primeira noção de eternidade. E ali também a última conversa
com o pai que se ofereceu mais do que uma vez para lhe arranjar uma tarefa
menos perigosa, mais recuada da linha da frente. Com dois telefonemas resolvia
aquilo e não havia nenhuma razão para ele correr tantos riscos. Também se falou
de Martha mas o assunto foi rapidamente arrumado. James recusou a ajuda do pai.
Rupert, o irmão mais velho é que devia ser o alvo dessa protecção. Na qualidade
de mais velho tinha sido uma vida inteira preparado para suceder ao progenitor.
Ele não. Tinha trilhado o seu caminho e assim continuaria. Sem preparação para
Lord, sem formação para a actividade política, sem vocação nenhuma para
herdeiro. Ao fim de uma hora o pai compreendeu e acabou por aceitar as suas
razões. Concordava com elas sem o admitir, admirava-o sem o conseguir
expressar. Mas James conhecia-o, sabia ler nas esquinas das palavras que
ficavam a pairar no ar até aterrarem na lombada de um livro, uma vida inteira
depois de aprender a deixar as emoções tapadas. A sua despedida foi um enérgico
e seco aperto de mão onde os desejos de boa sorte e felicidades futuras ficaram
subentendidos. Como dois amigos de longa data. Quando os pais morressem era da
biblioteca que iria ter mais saudades.
Chegou com a primeira claridade da alvorada no horizonte. O
céu continuava escuro e a chuva ameaçava voltar outra vez em força. Ouviu o
briefing meio distraído, meteorologia, movimentos inimigos, previsões para
aquele dia em geral. Através da janela conseguia ver a cauda do seu avião
estacionado sobre a erva verde e húmida. Uma máquina extraordinária, fácil de
manobrar, suave e elegante. Com uma manutenção adequada podia fazer quase tudo
com ele. A previsão não era de grande actividade para aquele dia se bem que tudo
poderia mudar numa questão de minutos. No fim do briefing dirigiu-se à
cafetaria improvisada e decidiu-se por uma bebida quente. Além de Gilles, o
francês da esquadrilha que tinha já combatido nos céus de Espanha, James era o
único que preferia café quente ao chá tradicional daquelas paragens. Carrancudo e homem de poucas falas, Gilles
transportava sempre consigo um termos de café da Guiana. Convicto e destemido
dizia que o fascismo o tinha abatido uma vez e que não iria permitir que isso
se voltasse a repetir. Enquanto o dia ia nascendo trocaram algumas ideias
acerca da antevisão dos próximos tempos. Por enquanto estavam a aguentar o
ímpeto invasor, mas até quando? Se a América não se despachasse a entrar
rapidamente na guerra o seu esforço poderia não ser suficiente. Enquanto
falavam foram interrompidos pelo som da sirene estridente da base. Uma
esquadrilha de bombardeiros estava a caminho vinda de Leste. Com asas nos pés
todos os homens correram para os seus postos e em dez minutos toda a
esquadrilha estava no ar. Passada alguma turbulência o tecto das nuvens era
ultrapassado e o Sol iluminava o céu como se tivessem passado de um mundo para
outro. Ao fim de alguns minutos os aviões inimigos tinham sido avistados.
Seguiu-se mais uma batalha aérea, outra página do livro da Batalha de
Inglaterra. Enfrentaram primeiro uma barreira de caças inimigos. Depois foram
no encalço dos bombardeiros. Os aviões corriam em todas as direcções como
mosquitos ao som das explosões. Gilles acertou em cheio no depósito de um
bombardeiro inimigo, James contabilizou dois caças abatidos. Quando tudo
parecia estar a terminar, caça inimigo surgiu do lado do Sol e apontou ao seu
avião. Quando se apercebeu do que estava a acontecer já era tarde. O motor
tinha sido atingido, a seguir a hélice deixou de funcionar. Restava-lhe planar
para lugar seguro, perder rapidamente altitude e sair dali. Uma explosão
encheu-lhe o cockpit de fumo. Pelo rádio ainda teve tempo de ouvir o comandante
de esquadrilha aos gritos a dizer-lhe para saltar. James levantou um braço à
procura da alavanca para abrir a carlinga. Encontrou-a já a pique sobre o mar.
Tinha um minuto se tanto para conseguir sair e abrir o paraquedas com sucesso.
A mão continuou agarrada à pega de emergência. Não a abriu. Despenhou-se no mar
a uma velocidade vertiginosa que o mataria logo no impacto. A esquadrilha regressou
com menos três elementos naquela manhã. James passaria a número estatístico de
análise da batalha. Substantivo anónimo e colectivo no discurso político, herói
fantasma decorado com uma lápide e uma medalha. Mas James deixou de ser James
no momento em que o seu avião se despenhou no mar. Ou talvez porque o oceano o
reclamou tivesse deixado de pertencer a si próprio. Ou talvez nada em relação a
milhões de vidas que se encaminhavam numa direcção e que deixaram de ser só
porque alguma razão implacável as decidiu reclamar.
Martha acordou já a manhã ia alta. Espreguiçou-se e
sentou-se na cama. Olhou lá para fora a chuva que continuava sem fim. Relembrou
a noite anterior. A paixão e a conversa final. Pôs um robe por cima das costas
e acendeu um cigarro enquanto se dirigiu até à janela. Como se regressada de
uma longa viagem tentava alinhar as suas prioridades para os próximos dias.
Havia tanto para fazer que não sabia para onde se virar. James tinha partido
amuado mas era sua convicção que havia de lhe passar. A guerra dava cabo dos
nervos a todos. Era uma questão de tempo até se voltarem a encontrar. Ao mesmo
tempo que pensava isto sentiu um frio estranho alojar-se no peito, um tremor a
percorrer-lhe as costas como se alguém tivesse deixado uma janela aberta. Foi
quando se sentou de novo na cama que reparou no cachecol pousado na mesa de
cabeceira. Agarrou-o e encostou-o à cara sentindo ainda o cheiro dele. No chão
um pequeno papel dobrado chamou-lhe a atenção. Uma mensagem de despedida,
pensou, antes de o começar a ler. Abriu o papel
Se de alguma
forma quiseres honrar o tempo que estivemos juntos peço-te um último favor:
Nunca mais estejas com ninguém enquanto estiver a chover
James
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