Se insistirmos em falar com o passado, apesar de surdo e
distraído, há sempre um dia em que ele acaba por nos responder. Umas vezes não
dando a resposta que esperávamos, outras trazendo memórias tão óbvias que nunca
nos teriam ocorrido se não falássemos com ele.
Ao fim de uma vida intensa por esse mundo fora, repleta de
lugares e pessoas diferentes, Rodrigo viu-se de novo na sua cidade de sempre.
Mas a cidade já não era a mesma, tinha partes inteiras que não conseguia
reconhecer. As ruas estavam apinhadas de gente, trânsito, ruído. Não se
conseguia entrar normalmente num restaurante, numa loja, andar pela rua sem deparar
com multidões em todas as direcções como enxames de insectos. A cidade onde
sempre viveu definitivamente já não lhe pertencia. Vistas bem as coisas, se quisesse
colocar a questão de uma forma global, já nada lhe pertencia. Só ele a si
próprio e mesmo assim, temporariamente. Por isso falava com o Passado.
Lembrando-se, avaliando, julgando, mantendo um diálogo morno consigo enquanto o
conseguisse escutar. Interrogava-o nos livros que lia, chamava por ele nos
breves instantes antes de adormecer à noite, reconstruia memórias cheias de
espaços vazios que não conseguia preencher.
Decidiu mudar-se para uma casa no campo, herdada de uma tia
recentemente desaparecida, e estabelecer a partir daí a base dos seus dias. A
política de rescisões e despedimentos da empresa em situação económica difícil
permitiu-lhe um estatuto de pré-reforma devolvendo-lhe o tempo que nunca tinha
enquanto trabalhava. A profissão, a ex mulher, os filhos e até a cidade onde
sempre viveu já não lhe pertenciam, mas em contrapartida passou a ser dono do
seu tempo e da sua rotina. Uma nova ordem erguia-se sobre as cinzas de uma
ordem anterior. A velocidade abrandava, as obrigações diminuíam e os dias,
finalmente, pertenciam-lhe. Passou a dar longas caminhadas pelo campo fora, que
normalmente iam dar ao castelo onde tantas vezes brincou na sua infância
acompanhado pela Moody, uma “pastor alemão” de meia idade que o seguia como uma
sombra. Usando horários onde encontrasse menos visitantes entrava ou ao
amanhecer ou ao fim do dia. Depois escolhia um lugar para se sentar e ficava
por ali alguns minutos a contemplar o céu. Fechava os olhos e tentava imaginar o castelo em
outros tempos. As vozes dos habitantes, os cascos dos cavalos, o bater metálico
do ferreiro ao longe. Quase sem dar por isso passou a tirar uma fotografia do
interior das muralhas todos os dias. Ou de manhã ou ao entardecer. Depois à
noite seleccionava as melhores imagens e publicava-as num blogue que tinha construído
para o efeito. Em cada dia uma entrada. O Sol através das ameias, uma janela de
pedra aberta sobre o horizonte, tudo servia para preencher este seu novo hobby.
Foi após uma noite mal dormida que algo de novo aconteceu.
Levantou-se e saiu de casa pouco antes do amanhecer com a Moody atrás a farejar
todos os recantos do caminho, reclamando do sono interrompido e do pequeno-almoço
que ficou para mais tarde. Entrou no castelo quando o Sol já se fazia notar no
horizonte e subiu por umas escadas que levavam ao topo da muralha. Continuou a
andar até que encontrou a imagem daquele dia. O desenho de uma janela em
ruínas virada a Oeste estava ali, teimosamente erguida no vazio como último testemunho de uma
estrutura outrora completa, inteira. Esperou um pouco e preparou a câmara.
Deixou o Sol passar para a base do parapeito e disparou várias vezes. A meio
ouviu um rosnar da cadela mas não lhe ligou. Foi logo a seguir ao momento em
que julgou ver uma sombra, ou um vulto ou qualquer coisa do género do lado
superior esquerdo do enquadramento. Mais tarde já em casa ao rever as imagens
percebeu que não tinha sido só uma impressão. Era a sombra de uma cabeça de
mulher. Cabelos compridos e um resto de rosto. Resolveu ampliar, reenquadrou,
brincou com o contraste, inventou. No fim conseguiu construir um rosto sereno
de uma mulher nova, de cabelos ruivos e ondulados numa expressão tranquila. Um
sorriso meigo por baixo de um olhar doce, uma expressão de saudação a alguém
que reconhecia. Primeiro ficou curioso, depois deixou-se perturbar. Por fim
encarou tudo aquilo como uma viagem qualquer das muitas que tinham feito parte
da sua vida. Outros lugares, outras gentes, outras latitudes, outras
realidades. Talvez um soluço quântico do universo na hora de nascer o dia.
Talvez um encontro de impossibilidades que se tornou real numa fracção do
tempo. E que aconteceu, sobre isso não restavam dúvidas. A imagem registada e o
rosnar da cadela assim o indicavam.
Nessa noite sentiu um cansaço muito grande e resolveu
deitar-se cedo. Sonhou a noite toda, andou por várias paragens até que foi parar
outra vez ao castelo. Estava numa enorme sala de decoração medieval e envergava
uma capa branca. Estava cansado mas satisfeito. Ao fundo o dono do castelo
recebia a sua mulher após uma longa viagem. Nesse momento percebeu que aquela
mulher era a mulher que a tecnologia o havia ajudado a desenhar no computador.
O cabelo longo e ruivo, o sorriso meigo e a expressão tranquila. Observava toda
aquela cena apoiado na sua lança de cavaleiro. De repente a mulher notou a sua
presença. Olhou para ele e acenou com a cabeça sorrindo. E nesse instante
percebeu que a tinha escoltado até ali enquanto seu guarda pessoal. Que a sua
função era garantir a sua segurança ao longo daquela jornada. E por fim, percebeu
também pelo mexer dos lábios dela que lhe agradecia o seu empenho e a sua
tarefa que terminava naquele dia. Quando acordou decidiu transformar todo
aquele cenário numa breve alegoria. A de ter conduzido a sua existência até àquele
tempo e de ter desempenhado a sua tarefa de forma satisfatória. Pelo menos
havia alguém que lhe agradecia o esforço. Alguém que reconhecia o bom
desempenho da tarefa. Nem que esse alguém fosse um vulto indiferenciado ao
amanhecer que as várias modalidades da tecnologia transformassem numa
possibilidade real de um ser efectivo.
Artur
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