Devo esta honestidade de viver o poema ao invés de o publicar.Devo a vós meus filhos, neta, amigos,pais e avós.
Foram tantos os anos a sonhar o regresso que não o viver seria diminuir-lhe a beleza. Seria uma traição ao verso onde os dias de bruma se encontram com as línguas de espuma nas únicas areias brancas deste arquipélago.
Se neste momento me interromper é por saborear um araçá,
o mesmo fruto que, durante anos, só encontrava nas prateleiras dum outono paulista. Agora é só colhê-lo da árvore já lavado pelo orvalho do amanhecer.
Faz sentido dizer só depois de o fazer.
As palavras sentidas quando escritas tomam a forma de cada sentir. Tenho-as tanto em encantamento como ao contrário. Escrever maleitas dói tanto como uma pancada no pé da cama com o dedo mindinho. Escrever gargalhadas ,encantamentos e colheitas é outra estória, é sempre um mergulho em águas cálidas ou a água fresca da nascente acabada de beber. Seja como for eu não mando nada aqui e as letras é que escolhem o momento de se soltar. Em dois mil e vinte foram a minha libertação porque, ao contrário de tantos que ficaram presos eu libertei-me, não fiquei numa cadeira de rodas e reformei-me dos voos, dos passageiros chatos e dos meus queridos colegas que se tornaram em amigos para sempre. Quando me perguntam se não tenho saudades de voar por meio planeta respondo logo que não, mas vem-me à memória as conversas de pequenos almoços, as chávenas de café coado, os pés doridos dos saltos altos e das avenidas americanas, os teatros brasileiros ou os musicais da Broadway, os mojitos do restaurante predileto no Soho, as ostras cheias de mar e tabasco da tasca da Grand Central Station, ou as amêijoas gigantes à bulhão pato da ilha de Luanda,e chego novamente à conclusão que não, senão dos momentos equivalentes ao trincar do araçá e das pessoas com quem partilhei esses momentos cheios de tudo.
A vida do ar em breve será, além da terra,do mar.
As saudades, só dos meus filhos e da minha neta, e da minha família do coração, muitas, mas eles sabem que a minha ausência é a minha maior presença.
É assim, curvada sobre mim mesma, que escrevo nestas teclas de letras gastas e num ecran rachado. Felizmente há cadernos e a caneta certa, um lápis da cor do dia que se apresenta, uma árvore vezes cem e um único araçaleiro com ramos estendidos de rubras promessas.
Elsa Bettencourt na Banda de Além e Aquém
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