Na
rua os cabelos e barbas estavam a crescer, reflexo de um misto de cultura
“ye-ye” e de um simbolismo contestatário do sistema.
Lá
por fora, uma revolução estudantil e um enorme evento musical enlameado, tinham
ecos agitadores nas mentes mais esclarecidas e com maior acesso à informação.
Aos
poucos ia-se sentindo uma baforada mais fresca, primaveril, que se prestava
dentro de alguns anos a arejar o mofo de décadas de uma sociedade arrebanhada.
Naquele
final dos anos 60, as saias usadas pelas jovens estavam a ficar com falta de
tecido, talvez pelo uso excessivo dele pelas mais velhas, talvez por causa de
uma irreverente Mary Quant.
Algures
queimavam-se soutiens.
Vozes
mais destemidas tentavam em surdina, um pigarreio que lhes permitisse exprimir
de maneira mais clara o desacordo por um sistema e por uma guerra que levava aqueles
que estavam na primeira linha da vida para abrir caminho a um futuro que se
desejava melhor. Uma geração mais preparada, mais instruída do que as
anteriores, lançada para selvas devoradoras de homens e almas. Isso e outras coisas
que não se podiam questionar. As tais coisas sagradas pelas quais se cometem as
maiores atrocidades: Deus, Pátria, Família, sendo que a sobrevivência da última
era dada como motivo asfixiante para alimentar os das outras duas.
De
vez em quando ouvia-se o lamento sumido de alguém que recebia um estropiado, um
enlouquecido, uma morte. Nos Estados Unidos era a guerra do Vietname. Portugal
tinha várias versões do seu Vietname na Guiné, Angola e Moçambique, que de tão
insanamente reais para os que lá estavam, mesmo convertidas em escrita ou
filme, nada deviam à americana. Este império a colapsar também tinha a sua
Alcatraz no Tarrafal, reactivado em 1961 depois de um encerramento de sete
anos, como Campo de Trabalho do Chão Bom, para receber os prisioneiros das
colónias.
Uma
brutalidade ilógica como todas as guerras, que em crescendo se tornava mais
cruel e infindável, e por isso, a cada dia mais presente na vida de todos.
Uns
anos antes em 1961, quando as colónias africanas se prestavam a agitar com a
bandeira da independência, já o pai recebera ajudas de custo e guia de marcha
para a India. No entanto, por um desígnio providencial livrava-se à ida. Na
vertigem de ir para uma guerra anunciada, ele e os camaradas gastaram todas as
ajudas de custo, criando-lhe uma chatice imprevista e de resolução tramada. No
dia anterior à partida, ficou a saber que estava tudo cancelado e teria de as devolver.
Valeu-lhe nova guia de marcha para Angola, trocada pela vontade de um camarada
seu em ir na sua vez, poupando-o a uma página negra da história portuguesa.
O
contingente português na India tinha-se rendido: o general Manuel Vassalo da
Silva, o último governador do Estado Português da India, último
governador-geral de Goa, Damão e Diu, poupara a vida de 4400 homens e evitara a
destruição de Goa, numa clara afronta ao velho mais poderoso da nação que lhes
exigia o sacrifício da vida na defesa do nome da pátria.
Seria
o general Vassalo da Silva votado ao mais profundo desprezo por uma pátria que
tinha servido com empenho, depois de recusar a sugestão do suicídio dada num
encontro com um lacaio político na prisão indiana, que lhe tinha deixado em
cima da mesa da cela um frasco com cianeto. Voltar à sua terra, só morto.
Manuel Vassalo da Silva tinha trazido a Goa um desenvolvimento extraordinário
nos últimos três anos de governação. No entanto, e tal como na segunda grande
guerra tinha acontecido a outro grande português, o cônsul em Bordéus Aristides
Sousa Mendes, que salvou muito mais altruisticamente do que Schindler milhares
de judeus, a pátria mãe era madrasta com aqueles se atreviam corajosamente a
desafiar, e efectivamente contrariar o poder instituído.
Anos
mais tarde o velho cairia de uma cadeira, no Forte de S. Julião da Barra.
O
miúdo tinha a sorte de ter uns pais que compraram uma televisão quando ele
tinha oito meses, ouviam rádio e assinavam o Século Ilustrado, uma revista de
actualidades onde a imagem era parte importante. Uma Time à portuguesa, embora com
as “devidas correcções” do lápis azul. O garoto ainda não sabia ler, mas as
imagens que via na televisão e nas revistas, a maioria delas de significado
incompreensível para si, eram-lhe estimulantes e atraíam-no por coisas que não
via no seu universo palpável.
Nunca
se esqueceria, por toda a liberdade e equilíbrio que afortunadamente tinha na
sua vida, do choque que teve, por uma chamada de atenção apavorada da Nênê.
Tinha dito bem alto na rua a palavra “Rússia”!
Não
era nenhuma asneira, porque essas aprendia-as com os primos mais velhos das
Caldas da Rainha, que afincadamente se entretinham a fazê-lo repetir palavrões,
como se de um papagaio se tratasse. Divertia-os disponibilidade dele para os
satisfazer naquele chorrilho de impropérios inconsequentes. A ele divertia-o
ser o palhaço de serviço, o actor principal que dava alegria à ampla plateia de
uns quinze. Quando os pais depois o ouviam repetir aquelas palavras, diziam-lhe
que eram palavras muito feias e para não as repetir, o que lhe causava alguma
estranheza. Nosso Senhor zangava-se com os meninos que diziam aquelas coisas. “Palavras
feias”… mas afinal elas faziam rir e eram feias?! Se faziam rir e rir era
indiscutivelmente melhor que chorar, como podia Nosso Senhor ficar zangado por
uma coisa que era boa? Ainda tentava com a Nênê e o Reis mas a reacção era a
mesma, e assim ficava com dois carimbos de certificação, em como sabia que não
as devia dizer a ninguém - bem, ao pé dos primos podia ser. Por isso, estranhou
aquele susto da sua ama na reacção a uma palavra, que não estava no léxico das
que lhe foram ensinadas pelos primos. Jamais se esqueceria.
Mais
tarde, não muitos anos depois, haveria de compreender porquê.
Mas
para aquele pequeno selvagem livre, o primeiro contacto com a censura, mesmo em
versão protectora, a sensação foi inesquecível, momentaneamente
castradora.
Uma gaiola sem grades.
Uma gaiola sem grades.
Hélder
2 comentários:
Que tal escrever um livro? :) fico à espera do resto da história
Agradeço humildemente o incentivo. :)
Enviar um comentário