domingo, 26 de maio de 2013

O PRISIONEIRO DO CÉU


 

 
Teve cem ofícios e nenhum amigo. Ganhou dinheiro que gastou. Leu livros que falavam de um mundo em que já não acreditava. Começou a escrever cartas que nunca soube como terminar. Viveu contra sensações e remorsos. Mais de uma vez se aproximou à beira de uma ponte ou de um precipício, contemplando o abismo com serenidade.

                      Carlos Ruiz Zafón in   “O Prisioneiro do Céu”

 

Antes de mais nada, gostaria de dizer que gosto de tipos que escrevem parágrafos como o que se pode ler no início desta crónica. Um gesto, uma maneira particular de sorrir, de contar uma anedota, por vezes são suficientes para desejarmos ser amigos deste ou daquele logo no primeiro contacto. Foi o meu caso com Zafón. Na eterna cidade da Literatura (Barcelona) personagens vestidos de improviso e de mistério vão-se cruzando uns com os outros e todos com as páginas da grande História enquanto desenham a pequena história dos seus caminhos, das suas existências. O cenário é sempre o mesmo, o filme é que vai variando de argumento e actores. Há paragens obrigatórias em todas as histórias como o Cemitério dos Livros Esquecidos, a livraria da família Sempere e as eternas calles da capital catalã. Seguindo a tradição do romance gótico, género muito popular no séc. XIX, Zafón desdobra segredos escondidos e repletos de magia desenvolvendo histórias paralelas através de uma escrita envolvente e apaixonante. Há histórias a seguir a histórias que se multiplicam e se cruzam como os caminhos da cidade mágica, histórias que dançam com as palavras e se exibem como monumentos à imaginação para depois se rematarem em finais no mínimo inesperados.

Em “O Prisioneiro do Céu” assistimos ao regresso de Daniel Sempere e do seu amigo Fermín, os heróis de “A Sombra do Vento”, que irão ser confrontados com um terrível segredo enterrado há décadas na memória da cidade. Seguindo a linha intrigante e fantástica de “O Jogo do Anjo”, o autor continua a empurrar os seus personagens para um destino desconhecido, uma leitura de si próprios que, abalando o seu edifício de certezas, nunca os deixará iguais ao que eram. Neste caso, Daniel descobrirá que a sombra com que terá inevitavelmente de se confrontar acaba por ser aquela que cresce dentro dele.

Com uma escrita cativante, o autor sente-se confortável no cenário que montou como se de uma vulgar realidade de bairro se tratasse. E aqui o leitor só conseguirá apreciar a sua obra se aceitar à partida esta realidade, se sentir confortável com a repetição de cenários e protagonistas. Como quem visita de vez em quando um universo familiar, numa relação distante de parentescos, um lugar onde nos dirigimos sempre que queremos ouvir uma boa história. Apesar de ninguém fazer ideia de onde se situa o Cemitério dos Livros Esquecidos já todos percebemos que ele existe, fica em Barcelona e que tem lá um livro à espera para cada um dos seus visitantes. Tal como a obra de Carlos Ruiz Zafón, um universo gótico repleto de magia e situações inesperadas, um universo onde temos a certeza de que saímos sempre de uma forma completamente diferente daquela como entrámos. Em suma, uma excelente leitura para aqueles que se gostam de deixar enfeitiçar pelas possibilidades e encantos dessa dama tão rica e tão estranha a que chamamos Literatura.

 

Artur

 

sábado, 25 de maio de 2013

PALHAÇOS SOMOS NÓS



 

Se estivéssemos na Idade Média, o cronista de serviço poderia ter começado um artigo com a frase: “Um jornalista chama palhaço ao Presidente da República e logo se levantaram as multidões ruidosas contra, a favor e uma terceira, aquela que se mete em todas as contendas não para esclarecer mas para desfilar, exibir-se, provar que está viva.” O episódio vale o que vale, ou seja, muito pouco, comparativamente aos problemas, esses sim reais e bastante graves que assolam a vida das pessoas, que as levam ao desespero, à fome e ao suicídio, que as levam a perder dia após dia as réstias da sua dignidade humana. O episódio, de uma banalidade confrangedora, pretende tornar sério e eficaz a dignidade de uma instituição cujo actual titular tudo fez para a desprestigiar, para a vulgarizar até valer nada aos olhos da população. Por outro lado, o cronista detentor da ofensa acaba de lançar um livro novo e este episódio calha que nem ginjas na publicidade.

Convenhamos, ambos os protagonistas fazem parte da mesma elite, tomam as refeições na mesma cantina, são actores da mesma peça de teatro que há décadas anda a ser representada ao pagode. Teatro que é o único e que não permite que outros teatros se ergam, que outras peças se representem. Ninguém entra no corpo de actores sem passar pelo filtro da companhia instalada. Experimentem discordar publicamente com o jornalista em questão e vão encontrar a reacção de um menino mimado que nunca se engana, não admite contraditório e que se for preciso, em vez de recuar não hesita em humilhar e ridicularizar o seu oponente. Já alguém o viu retratar-se no que quer que seja?

Palhaços somos nós que, quando soa a trombeta para o espectáculo largamos tudo o que estamos a fazer e vamos a correr ver a nova peça. Palhaços somos nós que continuamos a dançar as músicas todas que esta raça de caciques disfarçada de democratas nos vai tocando todos os dias. Palhaços somos nós em aceitar fazer parte desse mundo que nos exclui, roubando-nos todos os dias. Palhaços somos nós a vociferar e a mostrar os dentes atrás de bandeiras de clubes de futebol, a odiar cidades e regiões só porque alguns caciques a isso nos instigam. Palhaços somos nós a apontar com facilidade o dedo ao outro, ao diferente, aquele que quer viver de outra maneira que não nos afecta. Palhaços somos nós a dançar a música da idolatria, que com o tempo se transferiu das religiões para os programas de televisão de manhã, a seguir todos os passos de meia dúzia de papalvos que se pavoneiam em festas e revistas e vivem de expedientes, a espreitar morbidamente as tragédias e as desgraças alheias babados de curiosidade. Palhaços somos nós que continuamos a exercer o direito de voto sempre nos mesmos convencidos que estamos a escolher alguma coisa, mas no fundo a manter o mesmo estado de coisas. Palhaços somos nós que permitimos que não se esclareçam uma série de escândalos como a Lei de financiamento dos partidos, as manobras financeiras de resgate dos bancos, as estupidamente altas taxas de energia e tantos, tantos outros actos inúteis desta trágica e absurda peça teatral que nos representam todos os dias. Palhaços somos nós, palhaços tristes que saltam da ponte abaixo, que se atiram à linha do comboio, que dão um tiro nos cornos porque já não têm mais nada para perder a não ser o direito de respirar. Sim meus amigos, no pior e mais trágico sentido do termo…palhaços somos nós.

 

Artur

sexta-feira, 24 de maio de 2013

HABEMUS PAPAM



Nanni Moretti

 

Itália/França, 2011

 

Introduzidos pela solenidade dentro das cerimónias e rituais que estruturam a morte de um Papa e que levam ao conclave dos cardeais para a eleição de um sucessor no cargo, toda a normalidade formal termina e toda a humanidade escondida se revela. Começando com a falha de energia, que não pode ser comunicada para o exterior por todos se encontrarem na Capela de Sistina obrigatoriamente proibidos de contacto com o mundo e que leva um dos cardeais a dar uma queda monumental, passando pelas vozes da cada um em OFF que rezam a Deus para que não os escolham até à reacção inesperada do feliz eleito, tudo o que é imprevisível acontece. Com alguma inocência mas também com bastante ironia, Moretti propõe-nos uma visita guiada a um dos segredos mais bem guardados da Humanidade, o Vaticano e as movimentações internas de um conclave para eleger um novo sucessor de S. Pedro. Melville, o cardeal eleito à segunda volta, é cumprimentado por todos os seus pares antes de lhe serem impostos os novos paramentos. Lá fora os fiéis, a comunicação e o mundo em geral aguardam em expectativa para vislumbrar o rosto do novo Papa, agora que o fumo branco finalmente se libertou da chaminé mais mediática do dia. Mas Melville, imediatamente antes de se assomar à varanda do Vaticano e cumprir a sua primeira obrigação enquanto Papa para o mundo é acometido de um ataque de pânico e não consegue fazê-lo. O mundo inteiro suspende então a respiração à espera de algo que devia acontecer mas nunca mais acontece. Incapaz de convencer Melville de que é o homem certo para o lugar, a cúria dos cardeais procura um reputado psicanalista para os ajudar. E quando os problemas parecem começar a resolver-se, antes aumentam com graves prejuízos para a imagem do Vaticano e da igreja católica em geral. O psicanalista é bloqueado logo à partida numa série de questões. Entretanto, iludindo a vigilância da sua segurança, o novo Papa foge e perde-se durante três dias misturado com os mortais. O mundo e os cardeais pensam que se retirou para rezara antes de assumir as novas funções. Na rua, consulta outra psicanalista e, confrontado com a pergunta sobre qual é a sua actividade, mente, dizendo-se actor de teatro. Entretanto o mundo continua a aguardar cada vez mais impaciente. As desculpas dadas à comunicação social são cada vez mais frágeis. Dentro do Vaticano ninguém sai enquanto o novo Papa não for proclamado no exterior. Para passar o tempo o reputado psicanalista decide propor um campeonato de volley distribuindo as equipas por continentes. Assim, enquanto o Papa não se retira da sua meditação animam-se as hostes e faz-se um pouco de desporto. Por fim tudo se normaliza e o Papa chega à varanda para gáudio dos fiéis e do mundo. Mas apenas para anunciar que não se sente capaz de desempenhar as funções e que se retira.

Mais do que uma sátira ou sequer de uma ingénua visão humanizada de homens que supostamente se encontram em patamares da existência muito longe do comum dos mortais, o que o filme retrata é a simples questão da recusa do poder numa época em que todos o perseguem.

Datado de 2011, alguns meses depois o Papa Bento XVI renunciava ao cargo e no seu lugar viria a ser eleito o Papa Francisco. Não sendo uma situação inédita na história dos papas não deixou de ser muito rara quase nunca vista. Confrontado com esta situação ter acontecido pouco depois do filme HABEMUS PAPAM ter sido realizado, Moretti respondeu: “Há momentos em que a ficção ultrapassa a realidade. Este foi um deles.”

 

Artur

terça-feira, 21 de maio de 2013

RAY MANZAREK

                                                                   1939 - 2013

HISTÓRIAS DE UM ASSASSINATO - FIM


CONCLUSÕES POUCO CONCLUSIVAS
(Ou de como os "idos de Março" nunca regressam...)
                                          (O assassinato de Júlio Cesar)


 

Nos últimos cem anos da historiografia portuguesa o assassinato com contornos e consequências políticas ocupa um capítulo bastante vasto, dentro do qual o episódio de Sidónio Pais é apenas uma parte. De facto, e recuando a Fevereiro de 1908 vamos encontrar o regicídio, no qual o rei em exercício e o seu filho primogénito são mortos por dois atiradores; três anos após a morte de Sidónio Pais, na sequência de um golpe de estado triunfante, são abatidos, entre outros, o presidente do Ministério (ou Primeiro Ministro, António Granjo), dois nomes importantes da revolução e do sistema republicano (Almirante Machado Santos e o Comandante Carlos da Maia) entre vários assinalados numa lista misteriosa. Nenhum destes homens, além de Granjo, tinha naquele momento responsabilidades ou cargos políticos de espécie alguma. Os seus executores foram marinheiros e guardas-republicanos supostamente amotinados. Décadas mais tarde e já alguns anos depois do nascimento do novo regime democrático nascido com o 25 de Abril, morriam num acidente aéreo o Primeiro-ministro Francisco de Sá Carneiro e o Ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa. Envolta em sucessivas comissões de inquérito e peritagens duas teses combatem-se até hoje. Enquanto que uma garante tratar-se de um acidente, outra defende o conceito de atentado.

No regicídio, os dois atiradores foram abatidos no local, desconhecendo-se se havia outros integrantes do grupo, se o atentado era mesmo para o rei ou para o então chefe do governo João Franco, se o atentado haveria sido planeado por algum tipo de organização. A este propósito aconselho a leitura do diário de Aquilino Ribeiro, “Um escritor Confessa-se”, obra que, se não esclarece cabalmente o assunto não deixa de o iluminar em vários cantos para quem souber ler nas entrelinhas. Sobre a morte de Sidónio Pais volto a referir o trabalho de Francisco Moita Flores, “Mataram o Sidónio”. Sobre os trágicos acontecimentos de 19 de Outubro de 1921, houve efectivamente um julgamento, mas que acabou por condenar apenas os praças e um guarda-marinha. A lista, os organizadores ou os mandantes destes crimes ficaram de fora. Para a posteridade sobram os relatos registados por Berta Maia do marinheiro que matou o seu marido, Carlos da Maia, o cabo marinheiro Abel Olímpio, também conhecido como o “Dente de Ouro” na Penitenciária de Coimbra. Mesmo referindo nomes, reuniões e organização dos assassinatos por grupos poderosos de sectores financeiros e monárquicos o caso nunca mais foi reapreciado. Em todas as situações referidas nunca, volto a dizer, nunca se chegou ao fim das investigações e dos esclarecimentos por maior que tenha sido o impacto destes acontecimentos na sociedade portuguesa. O tempo acabou por os varrer para debaixo do tapete da História, deixando cá fora uma versão oficial ou semi-oficial, ligeirinha e quase despercebida, desprovida de relevância.

Se não temos tendência para acreditar em teorias da conspiração, estes 100 anos de atentados políticos na história portuguesa têm a força necessária e suficiente para nos começar a (des)convencer, para começar  a acreditar num poder oculto que manobra livremente sempre que os seus interesses ou a sua agenda em geral se vê contrariada. Seguir o rasto do dinheiro é uma hipótese que nos levará a algumas estações mas não desenhará a viagem completa. Será mais qualquer coisa que começa no empenho em formar jovens ignorantes a quem se explica que a História e a Filosofia já morreram e o que interessa é a execução das tarefas que lhes são pedidas, até um embrutecimento geral da sociedade através da mais básica e neutra oferta cultural sob a forma de entretenimento. Mas é interessante que em todas as gerações há sempre um grupinho de malucos que resolvem abrir a arca da História e trazer para fora as cuecas do tempo antigo para as esfregar na cara do moderno. Ou será que é ao contrário? Agora já não sei dizer…tenho ali o enfermeiro com os remédios que me está a fazer sinais para desligar o computador…

 

Artur

segunda-feira, 20 de maio de 2013

HISTÓRIAS DE UM ASSASSINATO - 3


ESPECULAÇÕES

 

Lisboa, 12 de Dezembro de 1918

 

Meu caro amigo Ernesto:

 

Não avistei a pessoa que me preocupa, espero que o encontro será no dia 14, e oxalá possa eu prestar com o meu sacrifício o fim que tantas almas anseiam. Hoje falei com o dr. Magalhães Lima, ele está muito doente receio muito pela sua vida que tão preciosa é a esta nossa tão amada terra. Não me foi possível falar-lhe no mesmo assunto, nem talvez tenha já tempo de o fazer. Deixá-lo depois que façam o que o seu sentimento patriótico lhes designar. Não é tão fácil como me pareceu, a minha Missão, mas com um pouco de arrojo posso consegui-lo. Levo do lado do coração envolto na nossa bandeira a estrofe que te faço cópia. Mandei tirar fotografias grandes no Grandella, não tenho tempo de te enviar uma por isso te recomendo que requisites depois alguma para ofereceres aos nossos camaradas de ideias. Não tenho ninguém comprometido no meu gesto, só eu! Abraça-te o teu amigo

José Júlio da Costa.

 

 

Sidónio Pais, o Presidente-Rei, era visto pela esquerda radical como o ditador cuja acção era a fonte de opressão das classes trabalhadoras e como o traidor que abandonara à sua sorte o Corpo Expedicionário Português que combatera nas trincheiras da I Guerra Mundial, seguindo as suas convicções e simpatias germanófilas. José Júlio da Costa dirigiu-se a Lisboa no intuito de vingar os seus conterrâneos do Vale de Santiago eliminando o Presidente da República. A acção foi cuidadosamente preparada como a sua carta escrita a 12 de Dezembro de 1918 bem o indicia.

Para além da parte em que dá Júlio da Costa como um louco e que, como já tivemos ocasião de ver, pouca ou nenhuma substância encerra, desde aquela época que circulam teses que apontam para o envolvimento da Maçonaria na preparação do atentado. Embora atravessando um período de forte perseguição por parte dos circuitos mais conservadores, aquilo que se sabe é que José Júlio da Costa tinha uma grande admiração e simpatia pelo grão-mestre da época, Sebastião de Magalhães Lima. Por outro lado, o próprio Sidónio Pais tinha pertencido à Maçonaria, reforçando-se aqui uma vingança sobre um renegado da organização. Outro dado relevante é o dos tempos políticos que então se viviam.

 Dias antes da sua morte Sidónio Pais tinha escapado a outro atentado. Em 5 de Dezembro, na altura da imposição de uma condecoração aos marinheiros do NRP Augusto de Castilho. Os apoiantes do sidonismo rapidamente imputaram a autoria do atentado falhado à Maçonaria, organização fulcral na construção da república e dos seus ideais, ideais esses agora traídos e reprimidos pelo novo presidente. No dia seguinte a sede do Grande Oriente Lusitano Unido foi invadida e saqueada.

José Júlio da Costa não era exactamente um louco que executou um acto casual. Era um homem determinado, que planeou e concretizou um objectivo determinado. A sua admiração pelo Grão Mestre da Maçonaria não implica nem que a organização estivesse por trás da sua acção nem sequer que José Júlio da Costa fosse maçon. Até porque na época dificilmente um militar de baixa patente poderia figurar nas fileiras de uma organização tradicionalmente elitista e urbana. A Carbonária seria provavelmente uma organização onde o seu perfil melhor se conseguiria encaixar.

Mas tudo indica, como se lê na carta escrita pelo seu próprio punho, que a decisão de executar o presidente de república foi uma escolha e uma opção exclusivamente individual. Uma vingança sobre a falta de palavra das autoridades, um acto desesperado de salvação dos valores democráticos e republicanos, um sacrifício em nome de um povo e de uma pátria.

Infelizmente nunca saberemos o fim desta história. José Júlio da Costa morreu em 1946 com 52 anos no Hospital Miguel Bombarda sem nunca ter sido julgado.

 

Artur

domingo, 19 de maio de 2013

HISTÓRIAS DE UM ASSASSINATO - 2


A COMUNA DA LUZ

António Gonçalves Correia
 
Criada em 1917 pelo anarquista António Gonçalves Correia (1886 – 1967), a Comuna da Luz é considerada por muitos como o primeiro projecto anarquista do género implementado em Portugal. Não chegando a duas dezenas de elementos as suas principais actividades eram a agricultura e o fabrico de calçado. Além da prática do vegeterianismo e do naturismo, a comuna dedicava-se ao ensino das crianças com base nos métodos racionalistas do pedagogo e libertário espanhol Francisco Ferrer. Alvo de preconceitos da comunidade local bem como da repressão policial, o projecto durou apenas até 1918. Entre outras acusações as autoridades culpavam a comuna de ter desencadeado e organizado várias movimentações, incluindo greves de trabalhadores rurais que assolaram a região. Associada de certa forma ao assassinato de Sidónio Pais, a comuna acabou por ser desmantelada e preso o seu fundador. Este, após a sua saída da prisão ainda tentará um novo projecto idêntico em 1926, fundando a Comuna “Clarão” localizada em Albarraque. Estas duas comunidades sob orientação de António Gonçalves Correia experimentaram uma aproximação ideológica ao ideal libertário de Tolstoi esbarrando num sem número de dificuldades para passar da teoria à prática. Desde logo porque, numa época de grande agitação, confronto e violência política e social, as práticas do pacifismo eram pouco populares, produzindo uma eficácia relativa.

Apesar de negar o carácter anarquista dos seus ideais, Leon Tolstoi entendia os estados, as igrejas, os tribunais e os dogmas enquanto ferramentas de dominação e repressão de uns poucos sobre a maioria dos homens. Considerado por vários pensadores como uma das principais referências do anarquismo cristão, Tolstoi teve outro momento de aproximação aos ideais do anarquismo quando em 1862 se encontrou em Paris com Pierre J. Proudhon um dos pais das teorias anarquistas. Nessa altura o pensador francês estava a elaborar um texto intitulado “La guerre et la Paix”, título esse mais tarde aproveitado pelo escritor para o seu romance mais conhecido.

Tolstoi não acreditava em guerras nem em revoluções violentas como solução para nenhum problema da sociedade. A sua orientação radicava em revoluções morais individuais que, essas sim, levariam á verdadeira mudança. Afirmava que as suas teses se baseavam na vida simples e próxima à Natureza dos camponeses e no Evangelho. No livro “O Reino de Deus está em Vós”, o escritor baseia-se no “Sermão da Montanha” para afirmar que não se deve resistir ao mal utilizando o próprio mal.

Leon Tolstoi em 1908
 
Adepto de uma fórmula de cristianismo primitivo, Tolstoi entendia que Deus estava nas próprias pessoas e nas suas acções. Jesus tinha sido para ele o homem que melhor soube exprimir uma conduta moral que gerasse justiça, felicidade e elevação espiritual em todos os homens.

 

Artur

 

sábado, 18 de maio de 2013

HISTÓRIAS DE UM ASSASSINATO




                                                        O Presidente Sidónio Pais
Toda a verdade tem dois lados e nenhum deles é permanente. Um acontecimento histórico terá a relevância que as suas consequências lhe puderem dar, será analisado ao detalhe, cortado ás fatias e separado ás peças, sendo cada uma delas filtrada pela lógica científica que aproveitará os factos, a verdade material e a versão institucional. A seguir volta-se a remontar o acontecimento antes de o inserir sob a forma final nos compêndios de História. A outra vertente do acontecimento histórico é aquela que o consegue abordar e conhecer desvendando as várias histórias que lhe deram origem, as lendas, as personagens e os seus caminhos. Neste caso obteremos sempre uma outra verdade, mais difusa mas também mais abrangente. Uma verdade de aproximação ao tempo e ás pessoas, à lenda e ao facto, ao mito e à matéria.

Sidónio Pais é uma figura lendária do primeiro período republicano da nossa História do séc. XX, hábil e eficaz utilizador da propaganda em torno do culto da personalidade, homem que conseguiu extrapolar em muito o resultado da sua obra, da construção do mito. Tudo em Sidónio Pais passava por um crivo cénico antes de ser dado a conhecer ao mundo desde as suas paradas em uniforme de Major muitos anos depois de retirado do Exército até à sua própria morte. Politicamente o breve consulado de Sidónio Pais (1917 -1918) consistiu em subverter as instituições democráticas, nascidas com a revolução republicana em 1910, e alicerçar uma espécie de poder autoritário concentrado numa única instituição (o Presidente da República) e numa única personalidade (a dele). Fez-se “coroar” Presidente à revelia do Congresso, liquidou o sistema parlamentar democrático, impôs a censura à imprensa, encheu as prisões com milhares de opositores políticos. Acabou assassinado na estação do Rossio em 1918.


- A Morte


Tal como em vida, a morte de Sidónio Pais teve todos os contornos teatrais que muito contribuíram para o nascimento do mártir e a consagração do mito. A 14 de Dezembro de 1918, quando o Presidente da República se preparava para embarcar na estação do Rossio para uma viagem ao Norte do país, um homem furou o cordão de segurança e (segundo a versão oficial) disparou dois tiros à queima roupa, ferindo-o de morte. Muito propagandeada na altura pelos seus seguidores e apoiantes, foram as suas últimas palavras antes de morrer: “Morro bem…salvem a Pátria”. Contrariando esta versão houve testemunhas presenciais que garantiram que o presidente teve morte imediata, sem tempo para proferir o que quer que fosse. Noutro lugar ficamos a saber que esse famoso discurso final se deveu a uma crónica do jornalista Reinaldo Ferreira (o famoso Repórter X), conhecido pelas suas crónicas efabuladas e mesmo fantasiosas, que chegou ao local mais de uma hora depois dos acontecimentos.

                                           Representação do momento da morte do presidente

De acordo com a autópsia do presidente, levada a cabo pelo então jovem médico legista Asdrúbal de Aguiar, e após análises às roupas e à arma do assassino, ficamos a saber que a vítima foi alvo de um tiro, e não dois como se pensou durante muito tempo. Os dois orifícios encontrados no cadáver correspondiam a uma entrada e uma saída do mesmo projéctil e não a dois. Por outro lado, a autópsia revela ainda que a vítima teria sido atingida não à queima-roupa mas à distância. A este propósito leia-se “Mataram o Sidónio” de Francisco Moita Flores.



- O Assassino

Sobre o autor (oficial ou material) da morte de Sidónio Pais, duas breves notas prévias. Em primeiro lugar, após os disparos e da enorme confusão que de imediato se instalou, e de que resultaram quatro mortos, não fugiu nem ofereceu resistência. Foi brutalmente espancado e torturado durante dias e dias. Em segundo lugar, morreu em 1946, internado no Hospital Miguel Bombarda ao fim de 28 anos de prisão sem nunca ter sido julgado.

                                                                 José Júlio da Costa

José Júlio da Costa nasce em Garvão, concelho de Ourique, em 1893, o segundo de sete filhos. Com 16 anos, a 21 de Maio de 1910, alista-se no Exército Português. Estará presente no levantamento militar da revolução republicana de  5 de Outubro do mesmo ano. Enquanto militar esteve em Timor, Moçambique e Angola, tendo obtido um louvor em 1914. Abandona o Exército em 1916 no posto de segundo sargento regressando à sua terra de origem. Tenta ainda realistar-se como voluntário para a Primeira Guerra Mundial mas foi recusado. Quando em 1918 ocorreu uma greve dos trabalhadores rurais de vale de Santiago. José Júlio da Costa assumiu a posição de negociador entre as autoridades e os revoltosos, acabando por conseguir um acordo. A actuação daqueles trabalhadores, liderados pela ala anarquista da “Comuna da Luz” de António Gonçalves Correia foi considerada como perigosa para a ordem pública e o Governo não aceitou os termos do acordo. Os grevistas foram severamente punidos, tendo muitos sido deportados para África.

Sentindo-se traído pela falta de palavra das autoridades, José Júlio da Costa jura vingar os seus conterrâneos do Vale de Santiago, optando por assassinar o Presidente Sidónio Pais.


Artur



terça-feira, 14 de maio de 2013

COMO ADQUIRIR UM SENTIDO APURADO DE ESTÉTICA CINEMATOGRÁFICA



1. Não se pode estar sempre a ver e a admirar os clássicos do cinema. Esses clássicos ficarão por aí, para sempre, até que a morte nos separe, ou até ao fim dos tempos, consoante o que acontecer primeiro. Procure-se, antes, as obras negligenciadas que revelam o mundo do cinema a uma luz brilhante e coruscante. Escrevi "mundo do cinema" e não "mundo". Se eu quiser ver o mundo revelado, vou por aí andando e tenho-o sempre à frente dos olhos. Por que raio alguém gastaria o seu tempo a procurar a realidade no écran, quando ela está sempre presente ?  Devemos ir ao cinema para nos esquecermos da realidade, o que quer ela seja. Ou melhor, exprima o que exprimir o termo "realidade" e as nebulosas construções fraseológicas, linguísticas e conceptuais que esse termo permite.
As pessoas costumam dizer que os filmes a preto e branco são mais realistas que os filmes a cores. Acontece que os filmes a preto e branco não são realistas de todo e, portanto, aqueles que assim se expressam querem realmente significar é que desejam fantasias disfarçadas de realismo, sugando-lhe a cor.

2. As pessoas sugam, ou chupam. Chupam bebidas com palhinhas enquanto vêem filmes, chupam o ar quando a acção se torna quente e acelerada, chupam nos polegares para se parecerem com Charlton Heston no cartaz do filme "Ben-Hur", etc. etc. Pois bem, todo esse ar aspirado tem que sair em algum momento, mas a nossa sociedade congela a sua saída natural no lobbie dos cinemas e é por isso que vemos os sujeitos saírem dos cinemas com uma intensa ginástica facial, tentando reter noventa minutos de sucção. Devemos ser livres de expelir esse ar e compreender que aquilo que vimos no écran é uma equívoca representação da vida real, com uns mamíferos encantadores a fingirem ser santos e pecadores.

3. O realismo só acontece no écran quando a película fica entalada no projector e a imagem começa a ficar cheia de bolhas. O que já só acontece raramente e deixará definitivamente de acontecer quando todas as salas de cinema estiverem equipadas com projecção digital. Até lá, um instintivo medo do escuro manifesta-se quando a luz de projecção falha... aumentado ainda pelas pequenas criaturas peludas, com longas caudas, que se escondem por debaixo dos assentos. A natureza elétrica do sexo torna-se evidente quando sentimos o sopro do ar na nuca, exalado pelo prevertido da cadeira da esquerda a tentar estabelecer contacto com o nosso joelho. É nesses momentos de verdade que o cinema revela a sua faceta realista.

4. Mas, o cinema é uma criatura ambígua, de dupla face. Essa outra face é constituída por uma paleta de cabeleiras pintadas, maquilhagem de pastel de nata e vísceras humanas agarradas a fatos desenhados por anões analfabetos e tarados sexuais. Superestrelas que batem nos filhos com cabides de pendurar casacos ou rolos de arame farpado e que lhes inpingem refrigerantes com potência suficiente para lhes arruinar as dentaduras, mulheres envelhecidas sofrendo numerosos edemas, homens viris condenados a excruciantes regimes de exercícios a fim de conservarem os seus posteriores sodomizados em perfeito estado de conservação, actrizes treinadas para mostrarem ao mundo as maravilhas da libertação da celulite, celebridades alcoólicas que vertem em livros o seu passado para que todos nos possamos maravilhar com a uma vida miserável limpa pelo renascimento cristão, ou da Cientologia, tanto faz, harpias cheias de herpes que destroçam fornicadores, crianças inocentes que cantam e dançam ao longo da "estrada de tijolos amarelos" rumo à dependência das drogas e ao veneno das bilheteiras.

5. Esta é a outra face do cinema...a face que vende tablóides e cria lendas, uma herança cultural recusada, devorada por um olho ciclópico imaginado para "entreter", excitar e ensinar; a FORMA ARTÍSTICA do nosso tempo.



quarta-feira, 8 de maio de 2013

CARTA AO BELMIRO


Senhor Belmiro de Azevedo,

Começo por lhe apresentar os meus respeitosos cumprimentos.

Quero por meio desta carta aberta agradecer-lhe a sua intervenção no Clube de Pensadores, essa instituição que tanto tem feito pelo esclarecimento público daquilo que figuras proeminentes das mais variadas áreas deste país são capazes, tanto em pensamentos, palavras, actos ou canções.

Por vezes o resultado saído dessas sessões públicas não será provavelmente o desejado nem pelos organizadores, nem pelos convidados, mas sem dúvida são extremamente reveladores. Mais até do que algum programa televisivo de entrevistas (discutivelmente) bem estruturadas, de tal forma que acabam por não acrescentar nada de novo ao que já se sabia – a não ser talvez ruído.

No Clube dos Pensadores não.

Talvez por quem expõe as suas ideias achar que está mais à vontade, pelo facto de a plateia ser menor - o que é certo, é que de alguma forma o que para lá é dito nesses encontros, acaba por ter repercussões na sociedade e nas próprias pessoas que por lá vão intervindo a convite desse grupo de filósofos.

Confesso que apesar de sinceramente ter gostado de saber das suas ideias fiquei desiludido com o seu modo de ver as coisas. Nomeadamente na revelação de advogar a baixa de salários para ajudar a economia portuguesa.

Pois é, senhor Belmiro de Azevedo, não concordo mesmo nada consigo.

Primeiro, porque que desde que há anos sou cliente Modelo/Continente/Worten, sempre fui muito bem atendido pelas pessoas que lá trabalham. Como agora modernamente se chamam: seus colaboradores. Porque ao saber os ordenados que muitos deles auferem, alguns com cursos superiores mas sem colocação para a especialidade para a qual andaram a estudar durante largos anos, são claramente abaixo daquilo que mereceriam receber. Apesar disso e estarem numa função para a qual foram empurrados pela força das circunstâncias (a principal, terem nascido em Portugal), evidentemente abaixo das suas competências e formação, o fazem com elevado profissionalismo, eficiência e simpatia.

Segundo, porque é graças ao estado das coisas a que chegámos como por exemplo a precaridade do emprego e a elevada taxa de desemprego que diariamente bate recordes, que o senhor Belmiro tem possibilidade de lhes pagar o que paga, tendo uma infindável fila de pessoas desesperadas para trabalhar e substituir os mais desiludidos a troco de um salário que está uns trocos acima do mínimo.

Terceiro, tendo o senhor Belmiro recorrentemente ao longo dos anos figurado na lista das maiores fortunas da Forbes, não terá noção do que será viver na incerteza da precaridade, ou com um orçamento familiar à justa para não passar fome, ou nalguns casos nem isso. Por ter o estatuto de um dos mais ricos deste país até me parece mal que tenha achado que será à custa dos baixos salários que esta nação avançará rumo ao desafogo económico.

Quarto, porque ao saber da relação das grandes superfícies com os fornecedores e ainda mais com os produtores agrícolas, a mesma não me parece justa. Para os agricultores, claro, aqueles que se esforçam fisicamente, assumindo eles todos os riscos de eventuais prejuízos na produção dos produtos e daqueles que se possam estragar até à sua venda. Isto já para não referir prazos de pagamentos.

Quinto, porque estranhamente, o senhor Belmiro, que considero pessoa informada ou com fácil acesso à informação, parece desconhecer que os países onde as pessoas vivem melhor e onde o Índice de Desenvolvimento Humano são mais elevados, são exactamente aqueles onde os ordenados pela sua componente, dignificam quem trabalha e por isso proporcionam uma melhor qualidade de vida. Terá certamente o senhor Belmiro ouvido falar destes: Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Luxemburgo. Não fazem parte de uma galáxia distante. São países até nem por isso muito longínquos. São europeus, mas onde o índice de corrupção e os interesses financeiros mais obscuros são praticamente inexistentes. Países onde o estado social, por cá incomportável, é lá possível com uma carga fiscal e tributária presentemente idêntica à nossa. E por cá aguentamos, aguentamos, um estado de coisas que entretanto se torna impossível de aguentar porque não augura nada de bom e todos os sacrifícios que são pedidos ao português comum, desaguam num buraco negro que continua a alimentar um défice cada vez maior.

Sexto, porque todo o ser humano tem o direito de ser respeitado. Muito mais por aquele para quem trabalha.

Por estas e mais algumas razões que não vou enumerar, para não tornar esta missiva demasiado extensa, junto envio-lhe os meus cartõezitos Modelo que me permitiram “poupar” até há uns meses, quando deixei de ir aos estabelecimentos da Sonae, a quantia de mais de €2.000,00. Leva-me isto por outro lado a pensar em quanto terá o senhor ganho com as minhas compras nas suas grandes superfícies, enquanto eu poupava.

Envio-lhe também os cupõezitos dos descontos de 10% enviados para mim na semana passada pelo correio, e outros específicos para produtos que acham os serviços comerciais do Continente me podem dar jeito para os próximos 2 meses.

Não os quero mais, muito obrigado.

Fica aqui um ponto final ás minhas compras nas suas grandes superfícies, e nas empresas do Grupo Sonae.

Peço-lhe humildemente desculpa, mas sou assim. Um individuo que acha que a cidadania não se faz apenas de 4 em 4 anos nas urnas, até porque também deixei de acreditar nesse mecanismo que só funciona em Democracia plena que não é de todo a realidade vivida em Portugal, mas com “Pequenas Acções Quotidianas” que o mais anónimo português pode tomar se tiver noção que a sua escolha faz a diferença. As minhas “PAQ’s” surgiram um pouco antes dos PEC’s do governo Sócrates e foram-se sucedendo até a um ritmo maior. Só que em vez de serem substituídos pela seguinte, foram-se consolidando e surgindo uma nova “PAQ” sempre que as circunstâncias o exigem ou me acordo para coisas que não acho bem. É bom ter voz mais do que apenas de 4 em 4 anos, sabe? Não haverão muitos como eu, mas a palavra e a razão espalham-se e talvez daqui a um ano ou dois sejamos uns 10 ou 20 a fazer estas "PAQ's".

Fique o senhor Belmiro descansado porque tal como esta minha “Pequena Acção Quotidiana”, já tenho tomado outras iguais em relação a outras situações. Não é de todo exclusiva em relação ao Grupo Sonae. É apenas e só isso, mais uma tomada de posição para aquilo que acredito, pode fazer a diferença para um Portugal melhor. Têm-se tornado uma colecção pessoal que muito estimo.

Somos nós todos, o povo, que pode mudar mentalidades e isso tem de começar por cada um de nós. Eu por mim, tento fazer a minha parte, fazendo as minhas escolhas de acordo com aquilo que acho acertado e penalizando da mesma forma as pessoas, instituições, princípios que estejam em total oposição ao que acho certo.

Pelo estado das coisas a que chegámos, eu como tantos outros pais portugueses, vou-me lentamente mentalizando para a ida da minha filha para longe da minha família, para fora deste país que se tem tornado demasiado pequenino e asfixiante, quando chegar a hora de ela começar a trabalhar, depois ou talvez mesmo antes do final do curso universitário que está a frequentar. Não tenho ilusões que ela por cá tenha futuro, a não ser que queira eventualmente ser por exemplo, caixa de supermercado desde que seja essa a sua vocação. Só quero que ela faça na vida o que mais gosta e se for isso não tenho qualquer problema em aceitá-lo porque é um trabalho tão digno como qualquer outro.

Aconselhar-me-ia o meu bom senso remeter-me simplesmente ao recato, se estivesse no lugar do senhor Belmiro, ou dos senhores Fernando Ulrich, Jardim Gonçalves, Filipe Pinhal, Soares dos Santos, e outros que gostam de emitir opiniões sobre o estado das coisas em Portugal, estando numa posição confortável em relação aos demais. Eventualmente e por disponibilidade económica e porque podia, a prestar uma ajuda efectiva aos seus “colaboradores” através de um aumento de vencimentos, contribuindo assim para contrariar esta espiral recessiva que nos conduz a um buraco negro sorvedor de pessoas e valores (e não falo dos económicos).

Não será certamente através das Missões Sorriso que apenas servem para o supermercado ampliar as suas margens de lucro pela venda dos produtos que pessoas bem-intencionadas adquirem para aderir a essas iniciativas. Chamo a isto, caridade com o dinheiro dos outros, já que em relação a quem a implementou basta-lhe vender os produtos com a respectiva margem. O estado, claro, também agradece – sempre são mais uns euritos em IVA. E os media efusivamente ampliam os resultados, naquilo que friamente para mim não passa de acção de marketing.

Apesar de a felicidade pura não depender do dinheiro, o que cada um consegue através do seu salário tem de ser dignificante. A felicidade vem de dentro e da capacidade de cada um em se maravilhar com as coisas mais simples. Mas essa é uma capacidade inata. Ou se tem quando se nasce, ou nunca será compreendida por quem a não tem, numa clara oposição de uma saudável ambição pessoal à mais aviltante e destruidora ganância.

Lamento por tudo isto a sua opinião em relação ao momento económico e social que Portugal atravessa mas que no entanto respeito.

Respeito, mas não compactuo.

Seu ex-cliente.

Hélder Martins