domingo, 21 de agosto de 2011

DIAS PERFEITOS

Naquela altura eu não trabalhava. A tua mãe saía de manhã e nós ficávamos sozinhos. Era eu que te dava de comer, era eu que te mudava a fralda, era eu que ia à rua passear contigo no carrinho. Isso foi há mais de 20 anos. Morávamos numa casa simpática nos subúrbios da cidade. Hoje jantas à minha frente, pedes mais uma cerveja e ao teu lado janta a tua namorada. Quando passávamos o dia sozinhos costumava ouvir uma música do Lou Reed no rádio. Such a Perfect Day. Duas ou três frases da letra encaixavam perfeitamente naqueles dias. “It’s such a perfect day…I´m so glad that I spend it with you…such a perfect day…You just keep me hanging on”.
Assim foi. Assim é quando cumprimento a tua namorada, quando mando vir mais uma cerveja para os dois.
Assim será muito tempo depois de eu partir. Os dias perfeitos constroem as relações felizes e duradouras. Assim tu me mantiveste à tona da água e, sem o saberes, me fizeste não errar em algumas encruzilhadas em que as escolhas não eram muito transparentes. Por isso valeu a pena ainda cá andar.
Por um jantar de Verão com a tua namorada na calma do entardecer…
Serás sempre o meu filho dos dias perfeitos…

Pai

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

SOLIDÕES



Se deixar a janela entreaberta ainda sou capaz de ouvir os teus passos. Ainda sou capaz de imaginar o tempo esquecido em que tudo se perdeu e a realidade se esgueirou por uma corrente de ar a caminho da rua. Nostalgia? Saudades? Saudades de quê? De um cigarro tranquilo na calada da noite, antes de adormecer. Da voz de um bêbado que cantava sempre o mesmo fado. Uma letra triste e trágica da história de alguém. Se a janela falasse, ainda poderíamos chegar a uma conclusão. Rectificar pormenores, refazer a história triste de alguém. Mas a janela não quer conversas, limita-se a abanar conforme o vento, talvez concordando, talvez não. Mostra-me as estrelas e a Lua sem comentários, acariciadas pelas nuvens, que de noite se parecem com lençóis de cetim a caminho do mar. E os teus passos que se sucedem através dos meus dedos num teclado escuro, mesmo por baixo de um ecran iluminado. O vizinho do outro lado da rua que se mantém sentado em frente da televisão, o vizinho que dorme um sono triste e espanta as imagens enquanto ressona. O casal jovem que vigia o sono do filho à espera que acorde para poder tomar o leite antes que todos possam voltar a dormir de vez. O adolescente que se escreve num programa de rádio de musicas calmas e sonha mundos que ainda irá descobrir, enquanto deita o canto do olho aos manuais insuportáveis da escola. A maldição colectiva sobre todos, cuja única variante é a idade, a fase em que a atravessam. Onde estarão os passos deles? Se tudo tivesse acontecido de outra maneira, se tudo tivesse decorrido com alguma lógica e bom senso, talvez houvesse espaço para nostalgias e saudades. Assim, da forma que foi, não. Há sons que se adivinham apenas porque já foram ouvidos anteriormente. O que há é uma solidão absoluta e triste que corre o bairro e se torna mais visível durante a noite. Naquele tempo em que todos falamos sozinhos sem esperar por uma resposta. Naquele tempo em que uns ressonam, outros cantam fados antigos e outros ainda escrevem histórias tristes sobre pessoas sós. A janela mostra o céu e o céu mantém-se na mesma. Um mundo de estrelas e de luas flutuantes, constelações, galáxias. Um universo de solidões como as nossas noutro bairro maior que este. Por ali julgo que já consegui ouvir os meus passos. Tão silenciosos que transformam o andar num lençol de cetim a caminho do mar.

Artur