sexta-feira, 29 de abril de 2016

UM RIO SEM FIM





Antes de mais nada há uma imagem tranquila de eternidade a fazer as apresentações. Um barqueiro em mangas de camisa orienta a sua barca sobre uma superfície feita de nuvens em direcção ao fim do dia. Seguem-se registos de som quase exclusivamente ambiental, onde os instrumentos se limitam a conduzir as emoções muito suavemente. Este é The Endless River , o décimo quinto e último álbum dos Pink Floyd, uma despedida sincera que vem encerrar cinco décadas de carreira. Baseado em trabalho extraído à partida do último álbum (duas dezenas de horas de gravações não aproveitadas nas sessões de Division Bell  (94)),  Endless River (2014) está todo ele preenchido com a presença de Richard Wright, falecido em 2008 vítima de cancro. Guy Pratt é o músico contratado responsável pelo baixo enquanto que as letras ficaram a cargo de Polly Samson, mulher de Gilmour. Só uma faixa é cantada (“Louder Than Words”) ao longo de todo este trabalho de despedida, disperso, ocasionalmente a fazer o balanço de algumas partes de uma obra que se estendeu por cinco décadas. Nada de novo na concepção que não tenhamos já visto em trabalhos anteriores. Partindo das pontas que ficaram soltas no trabalho anterior e trabalhando o legado de Wright vão compondo novos temas. Tal como Wish You Were Here foi feito sem Barrett mas acusando a sua influência e Division Bell trabalhava as escolhas de Waters deixadas nos trabalhos de The Wall . Se por um lado a maioria dos novos originais acabam por ser as revisões do trabalho anterior e o seu respectivo desenvolvimento, uma grande parte das obras da banda são homenagens aos seus elementos entretanto afastados. Uma constante de elegia dos ausentes e elipse de regresso aos passos anteriores fazem do método dos Pink Floyd uma curiosa e original imagem de marca.
De facto, quando no início o reportório era curto a banda escolheu alargar a duração das músicas para cumprir o tempo de permanência em palco, para compensar os poucos ensaios que faziam improvisavam, usavam efeitos especiais desenvolvendo cada vez mais sofisticadas produções para os seus espectáculos. Com um horizonte criativo à sua frente muito mais vasto do que apenas a música, combinavam-se várias artes que complementavam os seus trabalhos. Em muitas dessas combinações acabaram por nascer fenómenos que ainda hoje complementam a indústria discográfica tal como o conceito de videoclip. Ao longo da audição de Endless River não conseguiremos revisitar toda a vasta obra dos Pink Floyd mas muitas serão as etapas dela para onde seremos transportados. Na faixa “It’s What We Do” revemos “Welcome to The Machine” do album Wish You Were Here , em “Sum” encontramos uma versão mais ligeira de “One of These Days” do álbum Meddle, e por fim, a entrada de “Anisina” parece por um breve instante que vamos ouvir “Us And Them” de Dark Side Of The Moon.
Não sendo o melhor trabalho de sempre é sem dúvida a mais bem acabada forma de a banda se despedir e estabelecer o fim do seu ciclo aos milhões de fãs em todo o mundo. Tudo termina e os Pink Floyd não podiam ser excepção. O seu legado ficará nos anais da História da Música como um dos fenómenos mais importantes registados no seu tempo. Serão talvez no futuro escutados e idolatrados como os compositores clássicos o foram no passado, adquirindo esse estatuto. A mim deixam-me um mapa temporal onde consigo encontrar e relembrar pontos do meu caminho o que não deixa de ser um registo de breve nostalgia melancólica. Continuarei a ouvir e a recordar estes clássicos até eu próprio me meter na barca e navegar sobre um rio de nuvens na direcção do fim do dia.


Artur

sexta-feira, 22 de abril de 2016

MUROS / REINADOS / INDUSTRIA




WATERS

A década de 70 está a chegar ao fim e a obra dos Pink Floyd entra em velocidade de cruzeiro. 1979 marca o ano de saída da mais importante ópera rock de sempre. Concebida quase na totalidade por Roger Waters, The Wall é na sua essência um poema sobre a solidão e a falta de comunicação, uma alucinação introspectiva, uma visão globalizada da massificação cultural e do aniquilamento da liberdade individual, um desafio à tirania e um hino à Liberdade, um tratado da condição humana, qualquer coisa de colossal em todas as vertentes que o queiram analisar. Expresso pela metáfora de um muro a ser construído entre um artista de rock e a sua audiência o álbum foi um êxito estrondoso entre público e críticos com um único single  “Another Brick In The Wall (Part 2), que fez longas estadias nos tops de vendas um pouco por todo o mundo.  The Wall  contém faixas que acabaram por se tornar imagem de marca da banda como “Comfortably Numb” ou “Run Like Hell”. Quase todo ele concebido por Roger Waters o som torna-se cada vez mais hard rock apesar de grandes orquestrações a lembrar tempos passados em temas mais calmos como “Goodbye Blue Sky”, “Nobody Home” ou “Vera”. O predomínio da personalidade de Waters colide com Richard Wright, cuja influência neste trabalho é mínima. Wright acaba por ser afastado durante as gravações regressando depois e desta vez contratado para tocar nos concertos. Ironicamente Wright foi o único elemento da banda a ter lucros na “tournée” do The Wall . Os elevados custos de produção dos espectáculos acabaram em grande prejuízo para a banda. Em 1989 com a queda do Muro de Berlim, Roger Waters foi convidado para tocar The Wall ao vivo no lugar original do muro.
Batendo sucessivos recordes de mais ouvido, mais tocado ou mais comprado, o álbum vendeu só nos Estados Unidos o equivalente a 11,5 milhões de cópias obtendo 23 álbuns de platina.
No cinema Alan Parker realiza PINK FLOYD THE WALL em 1982 onde incorpora praticamente todo o álbum. Na senda do sucesso musical a dimensão cinematográfica também não ficou atrás. Visto por milhões de espectadores por todo o mundo, o filme integrava uma parte de animação da responsabilidade do artista e cartoonista britânico Gerald Scarfe. Interpretado por Bob Geldorf (vocalista dos “Boomtown Rats” e mais tarde organizador do festival Live Aid) e escrito todo ele por Roger Waters, o filme foi considerado por muitos críticos como “o maior vídeo de rock de sempre e também o mais depressivo”. Os únicos temas do duplo álbum que não foram utilizados foram “Hey You” e “The Show Must Go On”. O tema “When The Tigers Broke Free”, apesar de surgir no filme tem um primeiro lançamento sob a forma de single sendo mais tarde integrado na colectânea, Echoes: The Best of Pink Floyd, bem como no relançamento de The Final Cut .
The Wall foi mais um tratado que ocupou a atenção de várias gerações, discutido e ouvido durante anos e anos, ocupando lugar em todas festas de garagem. “Another Brick In The Wall” era cantado por adolescentes europeus despreocupados, estudantes sul africanos que combatiam o regime do apartheid, e de uma forma ou de outra, por todos aqueles que se sentiam de alguma forma injustiçados com os sistemas políticos/ sociais da época. No meu caso The Wall entra na minha existência precisamente na altura em que estou a passar da adolescência à idade adulta. A confrontação com a realidade, a urgência de manter um estado consciente minimamente lúcido, os labirintos da solidão, a busca de respostas, a vida quotidiana, o consumo de drogas, a injustiça,tudo fazia eco na história de Mr Floyd e em todo o seu processo de alucinação e enlouquecimento.
Roger Waters é o timoneiro do grupo em toda esta fase. A sua hegemonia vai-se prolongar para The Final Cut (83), um trabalho dedicado ao seu pai, Eric Fletcher Waters. Ainda mais sombrio de sonoridade o álbum regressa a temas anteriormente debatidos mas com o foco centrado na actualidade temática, nomeadamente a raiva de Waters face à participação da Inglaterra na guerra das Malvinas (“ The Fletcher Memorial Home”) ou uma visão cínica acerca de uma possível guerra nuclear (“Two Suns in the Sunset”). Em virtude da saída de Wright, Michael Kamen e Andy Bown ficam com a responsabilidade dos teclados. Apesar de tecnicamente ser um álbum com a marca Pink Floyd o nome da banda só está referenciado na parte de trás: “The Final Cut – Um requiem para o sonho do pós-guerra por Roger Waters tocado por Pink Floyd: Roger Waters, David Gilmour e Nick Mason”. Waters ficou como o exclusivo criador sendo  The Final Cut uma referência para os seus futuros trabalhos a solo. Apesar de bem acolhido pela crítica o sucesso junto dos fãs foi moderado. Nesta altura  o afastamento e as discussões entre Waters e Gilmour iam-se avolumando ao ponto de não chegarem a gravar juntos ao mesmo tempo no estúdio. Gilmour reclamava a continuação de rock de boa qualidade, criticando Waters por produzir sequências de canções demasiado centradas nas suas letras de crítica social. No fim das gravações não houve tournée. Depois de  The Final Cut  a Capitol Records lançou a colectânea Works fazendo com que a faixa de Waters de 1970 “Embryo” estivesse disponível pela primeira vez num álbum dos Pink Floyd.
Os membros da banda empreendem então caminhos separados gastando o seu tempo em projectos individuais. Gilmour foi o primeiro a lançar About Face (84). Wright juntou-se a Dave Harris para formar uma nova banda Zee, que lançou um álbum experimental Identity um mês depois de Gilmour. Em Maio do mesmo ano Waters lança The Pros and Cons of Hitch Hicking  um trabalho conceptual anteriormente proposto à banda. Em 85 Mason lançou Profiles em conjunto com Rick Fenn e com a participação de Gilmour e do teclista Danny Peyronel.




GILMOUR

Em Dezembro de 1985 Waters descreve a banda como “uma força criativa desgastada” e anuncia a sua saída dos Pink Floyd. Segue-se uma batalha jurídica pela autoria e direitos da marca “Pink Floyd” que opunha Waters de um lado e Gilmour e Mason do outro. O processo acabou por encontrar um entendimento fora dos tribunais.
O primeiro trabalho sem Waters deu pelo título de A Momentary Lapse of Reason (87) . A ausência do letrista de sempre deu lugar ao convite de escritores exteriores à banda. Ezrin e Jon Carin (que escreve “Learning to Fly” além de tocar grande parte dos teclados) assinam os textos, facto bastante mal recebido pelos críticos. Wright também regressou aos trabalhos, inicialmente como musico contratado na fase final das gravações, recuperando o seu estatuto oficial de membro da banda assim que começam a tournée. Por causa das limitadas participações de Right e Mason neste trabalho alguns críticos consideraram que A Momentary Lapse of Reason deveria ser considerado um trabalho a solo de Gilmour, da mesma forma que The Final Cut o teria sido de Waters. Um ano depois saía Delicate Sound of Thunder (88) com parte instrumental co-escrita por Wright (a primeira vez desde 1975) e por Mason.
Em 85 estou em Londres há alguns meses e por um acaso dei por mim numa noite fria de Novembro na Brixton Academy a assistir a um concerto de Pete Towsend e a banda Deep End com a colaboração de Gilmour. Não foi um concerto Pink Floyd mas foi algo de mágico acompanhar os solos de temas como “Love on the Air” e “Blue Light”. Uma tarde para recordar e levar para a cova como uma visita a outra dimensão da existência.
Pela década de 80 continuam os espectáculos ao vivo e a conceptualidade Pink Floyd vai seguindo o seu rumo sempre com novas propostas cénicas. Um desses momentos altos acontece em Veneza num concerto memorável que ocorre na praça de S. Marcos em Veneza em 1989. Muita da assistência acompanha o concerto em embarcações ao largo da praça.Um concerto guardado a ouro nos pergaminhos da minha gravação em VHS. Curiosamente uma gravação que acabou por ficar para sempre amputada das duas primeiras canções porque o meu filho mais velho resolveu gravar uma parte de um episódio da Rua Sésamo na mesma cassette do concerto de Veneza. Ainda hoje tenho essa relíquia de fita magnética religiosamente guardada na qual um coro de simpáticas vaquinhas da Rua Sésamo faz a primeira parte do espectáculo.



UMA INDUSTRIA DE FAZER MUSICA

A carreira dos Pink Floyd continua pelos anos 90 mas agora como uma gigantesca máquina de concertos ao vivo e colectâneas onde se transformam as formas e se inovam os embrulhos. Em 1992 é lançada a caixa Shine On, um set de 9 CD’s onde são relançados vários álbuns de estúdio. Um bónus chamado “The Early Singles” compunha um enquadramento onde, colocando os álbuns ao alto era possível visualizar a imagem da capa de The Dark Side of The Moon . No mesmo ano sai também o álbum a solo  Amused to Death de Roger Waters.
Em 1994 o trabalho do grupo volta acontecer com Wright a participar em pleno. O resultado chamou-se Division Bell e recebeu uma reacção muito mais positiva da crítica por oposição a Momentary Lapse… criticado como cansativo e feito de lugares comuns.
Division Bell é mais um álbum conceptual onde se pode rever a interpretação ou a visão de Gilmour em relação a temas discutidos por Waters aquando da feitura de The Wall.  
Depois do fantasma de Barrett, a influência de Waters, como se a criação sob a chancela Pink Floyd nunca conseguisse ser o resultado de uma personalidade única mas um somatório de influências onde todos acabavam por estar presentes mesmo quando não estavam.
Em 1995 é lançado Pulse, um trabalho ao vivo que inclui várias canções gravadas na tournée de Division Bell  em Earls Court em Londres. Um concerto que conjuga um lado clássico com outro mais moderno da banda, uma simbiose temporal. Seria também a primeira vez em duas décadas que a banda tocaria the Dark Side of The Moon na íntegra.
Em Novembro de 2005 os Pink Floyd são indicados no Hall da Fama da Musica do Reino Unido. Gilmour e Mason compareceram explicando que Wright estava hospitalizado em virtude de uma cirurgia e Waters fez-se aparecer numa transmissão de satélite desde Roma. Waters, Gilmour, Wright e Mason continuarão a trabalhar juntos uns com os outros, ora em trabalhos a solo ora em concertos da banda que juntou as suas existências. Gilmour reconheceu um dia que não havia razão nenhuma para ele e Waters continuarem de costas voltadas. Até porque para trás havia uma vida em comum, um caminho repleto de acontecimentos extraordinários, momentos inesquecíveis que não podia ignorar. Se um dia se encontrassem, naturalmente cumprimentar-se-iam e falariam um com outro como sempre.
E esta afectividade e reconhecimento dos méritos de cada um que sempre pairou sobre o grupo vem apenas reforçar o valor daquela que foi uma das mais marcantes instituições musicais de todos os tempos.
Em 2008 o membro e fundador dos Pink Floyd Richard Wight morre aos 65 anos vítima de cancro. Muita da sua influência ficará no último trabalho da banda, Endless River . Uma obra em forma de requiem que encerrará esta saga sobre uma das melhoes bandas de sempre na história da música.

Artur