sábado, 28 de janeiro de 2023

DO JEJUM E DA RAIVA REDONDA.



 

 

Vigésimo sétimo dia do primeiro mês de dois mil e vinte e três.
1º Só escrevo de manhã. Escrevo sobre os detritos dos acontecimentos que me trocam, seja a pena dum pássaro pequenino que os gatos não engoliram, a bosta da égua que varro debaixo das estrelas, o cidrão maior do meu quintal, as mudanças de ano, lugar ou humor, a minha tap e a minha gente, a minha ilha agora ou antigamente, e sobre o planeta que desta forma obtusa o estragam tão radicalmente.
2º Só escrevo em jejum. As palavras têm que circular entre a cabeça e o estômago livremente. Debatem-se e ajustam-se, encolhem e expandem-se. Ribombam nas entranhas como roqueiras de São João e adquirem a fonética do local onde se encontram seja qual for a pressão atmosférica.
3º Só publico aqui o que escrevo aqui. O que escrevo nos meus cadernos são outras estórias sobre pessoas e acontecimentos históricos que se cruzaram comigo da forma mais surreal possível. Chego muitas vezes a pensar que isto acontece por ser atenta ao ponto de não parecer ter nenhum tipo de atenção ou por um distúrbio fisiológico que nunca me foi diagnosticado.
4º Escrevi o primeiro ponto para chegar ao palco de todas as preocupações ou sobre o facto das pessoas se irritarem com assuntos cruzados. Exemplo- a prima da Maria perdeu a casa para o banco. A Maria tem a prima a viver lá em casa para não lhe acontecer o mesmo. A Maria perdeu o marido em 2020 com uma infecção respiratória e tem uma filha que precisa de cuidados permanentes por sequelas da mesma infecção. O José, marido da prima da Maria, trabalha nas obras a recuperar casas para o patrão que as vende a peso de ouro. A prima da Maria trabalha a dias em casa da ex mulher do patrão do José. A ex mulher não a declara à segurança social para não perder uma fatia da pensão de alimentos que o ex marido paga aos cinco filhos que estão num colégio particular. A Maria está a acabar o subsídio de desemprego e as refeições da casa são-lhe fornecidas por uma associação para quem ela está a costurar bandeiras para receber o papa.
A filha da Maria gostaria de ter a benção de sua santidade mas teme que o facto de ser russa seja um impedimento para chegar perto do palco quanto mais ser abençoada por ele.
A filha da Maria perdeu o pai e a saúde no ano em que lhe prometeram que ia ficar tudo bem. Vai ver tudo pelo telemóvel e receber as bênçãos pela internet. O presencial já não é tão importante assim e dizem-lhe que as epidemias vão voltar. Talvez ao fim do dia lhe tragam uma bandeirinha benta com promessas duma saúde melhor.
5º Escrevo nos bastidores de todas as preocupações. Ao fim do dia que já vai ficando mais longo, arregaço as mangas. A erva está alta, na cidade ao longe tenho mudanças para fazer e decisões para tomar. Se andar cinquenta metros para fora da porta tenho com que me alimentar, água para beber e ar para respirar. As preocupações não são coisas redondas mas têm todas um princípio e um fim. O egoísmo tem que tocar o altruísmo para nos podermos deitar sossegados na hora de ir dormir.
Que o fim da semana seja o princípio duma melhor e que as receitas do espetáculo não sejam para armas mas para resoluções de verdadeira fé.

Elsa Bettencourt

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Papas-Tudo




Fruto dos tempos, ultimamente sobra-me tempo para pensar e “despensar”. A propósito de tudo e de nada, o limite está a transbordar de tanta papa que nos é dada com uma colher de pau gigante. E se não entra por cima, querem que entre por baixo, ou por onde a consigam enfiar.

Enquanto é enfiada e não é enfiada, magico na mágica negra da coisa e ainda…

No papa-palco.

No papa.

No palco.

Nos papas-tudo.

Nos palcos da vida.

Nos artistas (nesses e nos verdadeiros)

Nos inchados de coragem que com voz fininha, dizem que dão o peito às balas, agarradinhos ao escudo (ou euro) dos outros e de todos nós.

No bispo auxiliar que sem afastar o cálice, ficou muito magoado quando soube do valor do palco.

(E já agora… nos directores que quando sabem que foram nomeados, vão aflitos para o gabinete da CEO chorar).

Na ostentação de uma entidade caridosa, que não põe um cêntimo no palco patrocinado pelo dinheiro público de um estado laico.

Nos papas-tudo.

Nos que decidem corajosamente com o dinheiro dos outros e do nosso.

No presidente.

No primeiro ministro.

No presidente da câmara.

Nos vereadores.

Na alarvice disfarçada.

Nos papas-tudo.

Numa sequência de ministros, secretários de estado e afins.

Nos papas-tudo.

Na oposição.

Nos papas-tudo.

Nos funcionários da limpeza do município de Lisboa que têm dificuldade em fazer face ao aumento da prestação da casa.

Nos funcionários da limpeza do município de Lisboa que têm dificuldade em fazer face ao aumento do custo da energia.

Nos funcionários da limpeza dos outros municípios que têm dificuldade em fazer face ao aumento da prestação da casa.

Nos funcionários da limpeza dos outros municípios que têm dificuldade em fazer face ao aumento do custo da energia.

Nos outros contribuintes do município de Lisboa que têm dificuldade em fazer face ao aumento da prestação da casa.

Nos outros contribuintes do município de Lisboa que têm dificuldade em fazer face ao aumento do custo da energia.

Nos outros contribuintes dos outros municípios que têm dificuldade em fazer face ao aumento da prestação da casa.

Nos outros contribuintes dos outros municípios que têm dificuldade em fazer face ao aumento do custo da energia.

Na miséria envergonhada.

Nos papas-tudo.

Na pouca vergonha.

Nos papas-tudo.

Na inimputabilidade.

Nos papas-tudo.

Na impunidade.

Nos papas-tudo.

No que o Papa Francisco pensará dos €35.000.000,00 gastos na festa a que vem a Lisboa, onde os lugares sentados estão reservados ao alto clero, pagos de pé pelo povo que trabalha, que ao longe aplaude, acena e sorri.

Nos papas-tudo.

Na puta da ilusão.


Hélder Martins 

sábado, 21 de janeiro de 2023

DAQUIDAILHADENTRODAILHA


 



Chegar ao fim do dia com o trabalho feito, seja com a recolha do estrume da égua, com casa limpa ou terra semeada, é a mais pura das satisfações, como a folha branca dum poema por escrever. E pelo meio ajudar quem precisa, preparar o peixe que nos chega do mar, amassar o pão nosso de cada dia, um fio de azeite, dar graças e alegria. Chegar ao principio do dia de faina e de flora, abrir um frasco de doce de amora e pensar na doçura ou agrura como um presente que demora, na importância do agora.

Elsa Bettencourt

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

É PRECISO QUE TUDO MUDE

 


 

A tarde ia a meio, o Sol descia pela abertura da porta dando aquele espaço um brilho que nunca lhe pertenceu. À volta da mesa os reformados batiam as cartas sobre a mesa de mármore amolecida pelas poças do tempo e do vinho. Atrás do balcão o dono inclinava a cabeça na direcção da televisão enquanto desenhava círculos esquecidos com o pano sujo. Às vezes lá fora o ruído de um carro, ou de uma mota. Às vezes lá fora uma mensagem do futuro em forma de anúncio. Outras vezes na televisão em enquadramentos de promessas. E depois, tudo a regressar ao interior daquela taberna, a mesma taberna de sempre. Escura, húmida e velha como a maioria das vidas que por lá passavam. As promessas de dias melhores às vezes passavam por ali mas ninguém fazia caso delas. De uma maneira ou de outra voltava tudo a ser como era… como sempre tinha sido. Quando uma nuvem negra desaparecia a televisão vomitava outra nova, baldes de medo e ansiedade eram despejados todas as semanas e esses demoravam sempre mais tempo a passar. Guerra, doenças, instabilidade, economia, impostos, crime, catástrofes em geral. Ao fim de algum tempo ganhava-se imunidade a tudo aquilo. Ficava-se mais velho, mais sábio, mais corajoso, mais indiferente. Um jogo de cartas com os amigos, uns copos de tinto, ou umas bagaceiras valentes nos dias mais frios. A velhice tornava os homens de tal maneira sábios que se esqueciam das próprias maleitas, tendo às vezes que cansar a memória de forma prolongada até se conseguirem lembrar em que parte do corpo tinha sido a última dor que os levou ao médico. Uma vez por outra alguém deixava de aparecer. Sentia-se uma falta, desfiava-se uma recordação e semanas depois não se voltava a falar nisso. Outro viria preencher o lugar à mesa das cartas e do vinho. A televisão continuaria acesa ininterruptamente a um ponto de já ninguém se conseguir lembrar quando é que tinha sido comprada .  Naquela tasca não mudava nada a não ser o tempo, a sucessão das estações, o tempo de cada um desde que começava a frequentar o estabelecimento até deixar de o fazer. O resto continuava eterno e sem grandes variações. Havia o tempo dos homens e havia o tempo do resto…que era sempre o mesmo. Várias vezes se sentia a necessidade de mudar mas era apenas uma necessidade, nada mais do que isso. Ninguém lhe dava muita importância. As necessidades são como gemidos breves libertados pelo sono, ansiedades que não se conseguem perceber. Na tasca onde por vezes era preciso que tudo mudasse, tudo acabava por mudar para que tudo pudesse ficar na mesma.

 

Artur