sexta-feira, 29 de setembro de 2023

INACTUAIS - NOTRE MUSIQUE / A NOSSA MÚSICA



A inactualidade como ontologia da actualidade

Michel Foucault
 

Notre Musique, de 2004, é uma continuação do discurso político, filosófico e poético sobre o nosso presente que Jean-Luc Godard vinha mantendo há longos anos, com uma nova e inusitada predicação: ler o futuro no passado é agora assumido como necessidade absoluta, como um determinismo ou uma predestinação incontornável, feita de fragmentos de filmes e de actualidades, que tecem uma quase insuportável rede de atrocidades e dor, em que a memória consigna à montagem a vontade de pensamento, retendo o tempo da tragédia: os símbolos do Inferno, do Purgatório e do Paraíso que declinam nesta nova Commedia a derrota da Razão. Porquê ? O silêncio contém a resposta. Soldados e vítimas desenham a crueldade e parecem ressoar a frase do filósofo Emmanuel Lévinas: "Só a humanidade desarmada merece esse nome". Epifânia do olhar, campo e contracampo, a lição de cinema continua, somente a união dos olhares constrói o discurso, abre a dialética, a imagem clama pela imagem, a forma o seu conteúdo, o castelo de Elsinor é um dado anagráfico, o castelo de Hamlet é o signo poético, Elsinore é o real, Hamlet o imaginário. O cinema é a razão, a verdade, o discurso que esmurra as coisas, mostrar é compreender, olhar é interpretar. A última praia, o Paraíso, é a ironia de um Pierrot le Fou revisitado, a dança, o Éden, os bosques e fluxos dos Umiliati de Jean-Marie Straub. A Razão como utopia, ainda o segredo do cinema, notre musique.

Em relação a For Ever Mozart e Éloge De L'Amour é um filme mais modesto (uma "petite musique" em suma, fermentando menos coisas "juste une conversation" (nem um discurso, nem um panfleto), uma troca de ideias (ou seja, imagens e sons), uma mistura de real e ficção a partir de uma actualidade política que fornece o ponto de partida de uma meditação de Godard que se apoia obsessivamente sobre os signos metafóricos e outros estigmas da História já visados nos filmes precedentes. A estrutura escolhida é a do tríptico : o quadro central (o reino do Purgatório) situa-se durante os Encontros Europeus do Livro, Sarajevo, Outono de 2002. Mais curtos, e mais conceptuais e plásticos (o Inferno, o Paraíso), os dois quadros laterais enquadram - ou melhor, precedem e seguem-se, já que estamos no cinema, e onde mais poderíamos estar ?) - o motivo principal como que para o fazer ressoar (no ruído do mundo) e raciocinar (segundo a teoria da dúvida e a prática de colocar em cena e à prova o autor-filósofo).

O inferno é a guerra das imagens (os cavaleiros teutónicos de Alexandre Nevsky), mas também a ideologia (a navegação dos Anges du Péché ou a bandeira americana flutuando no capot de um automóvel) como em Histoire(s) du Cinéma ou um filme de Pelechian colorizado numa vaga de lava incandescente carreando o horror. O paraíso é simultaneamente muito belo (o rosto majestático da jovem mulher) e derrisório: por detrás de um posto de controle mantido por fuzileiros americanos, situa-se um bosque onde se joga à bola em fato de banho como num acampamento um pouco "grunge". Mas pelo olhar, jurar-se-ia que a tristeza durará para sempre (Van Gogh/Pialat).

Godard ele mesmo (um pouco mais sorridente, ou menos soturno do que é costume) confere uma semelhança de organização à narrativa do amplo quadro impressionista, primeiro pelo seu papel de mensageiro da imagem, mas também pelo seu génio de cineasta-montador hábil na criação de correspondências, fazendo dialogar tudo e o seu contrário, e sobretudo a filmar a banalidade do quotidiano como poesia pura (um eléctrico atravessando uma terra de ninguém nocturna), uma composição estética (um pé que desce uma escada) ou um suspense intrigante (apelos da ficção a partir de uma simples rapariga correndo na multidão ou de diplomatas chegando em viaturas). Tirando fotografias da sua mochila, Godard explica as virtudes da montagem (relação ou oposição, e mais ainda questionamento perturbador) a um público de estudantes pouco atentos, e sobretudo cruzando a expressão de pessoas reais (o poeta palestino Mahmoud Darwich ou o escritor catalão Juan Goytisolo) com as personagens de ficção, nomeadamente o tradutor de português-hebraico-russo-espanhol-francês e a sua sobrinha judia francesa de origem russa, jornalista-oportunista. De facto, como se conjugam clichés documentais roubados e planos muito compostos, superfícies vazias (a fachada de um hotel) e ícones simbólicos ( a biblioteca destruída e de novo aberta aos leitores); é na mesma imagem que os índios emplumados se exprimem com as palavras de Darwich diante da ponte de Mostar em reconstrução (recordamos os efeitos-boomerang de Ne Touche Pas À La Femme Blanche de Marco Ferreri).

Notre Musique fala da questão israelo-palestiniana no coração das feridas nunca cicatrizadas do conflito na ex-Jugoslávia, uma vez que a reflexão de Godard é sempre mediatizada, distanciada, descentrada, tomando de empréstimo o pensamento de outros como a música de Sibelius, Part ou Monk para compôr as suas próprias harmonias. Na postura de "heroína" de uma ausência de intriga, a jovem Olga tem dificuldade em compreender aquilo que precisa, aquilo que procura, os laços que tece entre a sua história familiar de ontem (o seu avô durante a Ocupação) e a situação internacional actual. Godard tudo faz para a tornar cinematograficamente atraente e depois, perto do fim, faz-nos saber que ela partiu para Jerusalém a fim de organizar uma tomada de reféns onde vai encontrar a morte. O que significa dizer-se judeu hoje ? O destino dessa terrorista cultural a favor da paz provoca no espectador diversos tipos de interrogações e fá-lo chegar aquilo mesmo que Heidegger chamava "caminhos de floresta", ou seja, caminhos que conduzem a uma clareira que não vai dar a lado nenhum. Godard não queria outra coisa.

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

CEM ANOS DE POETISA - TRINTA DE SAUDADE


 


«Porque a poesia é a ignorância propositada de coisas estúpidas que os políticos e politizados tomam a sério para adiarem o real humano que exige um mundo sem metrificadores que vivam à custa dela»


Natália Correia


13/ 09/ 1923

                      16/ 03/ 1993