quarta-feira, 25 de junho de 2014

TRÊS NOTAS



1. O guerreiro está verdadeiramente silencioso. E imóvel.





2. Enquanto os americanos, franceses e britânicos (com a ajuda de alguns bravos portugueses) combatem a vérmina talibã no Afeganistão, por cá os congéneres desta escumalha vivem em paz, em alegres folguedos. Um pouco mais sofisticados do que os seus congéneres afegãos (que só frequentaram as madrassas, islâmicas, os de cá cursaram a Universidade Lusíada e outras do mesmo calibre onde o mérito, a inteligência e a cultura são altamente reconhecidos e premiados) são advogados, professores, deputados, ministros, banqueiros, consultores, assessores e quejandos, em vez de ignorantes e selvagens camponeses a quem deram uma kalashnikov e licença para matar. Em vez de professarem esse aborto ideológico, moral e religioso que é o islamismo fundamentalista, preferem a ideologia da ganância, da corrupção, do amiguismo e do compadrio, decorando mal e porcamente sínteses mal-amanhadas das cartilhas neoliberais. Irmana-os a mesma capacidade de destruição e de rapina, a mesma vontade de moldarem o mundo à sua imagem e semelhança, transformando-o num lamaçal de imundície. Uns e outros julgam-se investidos de uma missão histórica e de um messianismo milenarista, que justifica todos os crimes. É difícil combatê-los, a não ser que se adopte a tática extrema e definitiva: cercá-los e fuzilá-los onde quer que se encontrem. É a única linguagem que esta praga gémea entende.


3. "De cada vez que uma medida de poupança não é possível de prosseguir, o Governo não tem outra possibilidade que não a de ir pelo lado da receita."

Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro de Portugal


A este - como dizia o outro iluminado - a língua portuguesa é uma cena que não lhe assiste.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

POST TENEBRAS LUX









A filosofia europeia tem o seu grandioso final no pensamento de Friedrich Nietzsche ; a partir dele, outros rebuscaram as ruínas, escavaram nas lixeiras, negociaram com os resíduos, por vezes muito habilmente, mas também com a consciência de que a época dos grandes sistemas tinha passado à história. Porque Nietzsche apresenta à sociedade uma questão fundamental : o importante não reside na oposição pessimismo/optimismo, nem sequer no confronto entre transcendência e imanência, mas na sua superação, a qual, de algum modo, introduz a dialética hegeliano-marxista no terreno da especulação errática própria da modernidade. O que conta não é o facto de não se acreditar em nada, mas sim que tal suponha a entrega ao desespero. Não acreditar orgulhosamente em nada, conscientes de que esse vazio é a matéria com se que faz o sujeito contemporâneo. E este materialismo do superhomem converte-se, no fundo, num materialismo transcendente, no qual o imediato conduz à experiência da dor de viver como via de conhecimento. Freud aparece também aninhado nas pregas desta interrogação ansiosa de todos os sistemas. Como diz George Steiner em "O Castelo do Barba Azul": 

  Existe a aquiescência estóica de Freud, a sua suposição, sombria e fatigada, de que a vida humana é uma anomalida cancerosa, um desvio entre vastos estados de repouso orgânico. E existe a alegria de Nietzsche face ao inumano, a percepção tensa, irónica de que somos, sempre fomos hóspedes precários de um mundo indiferente, com frequência homícida, mas sempre fascinante. A teoria da linguagem de Ludwig Wittgenstein é o complemento ideal desta tendência jubilosa em direção ao nada. As palavras dão forma ao mundo, que em si mesmo não tem sentido. 

A teoria da linguagem de Ludwig Wittgenstein torna-se o complemento ideal desta viagem jubilosa em direcção ao nada. As palavras dão forma ao Mundo que, por si mesmo, não tem sentido. A literatura centro-europeia de finais do século XIX e princípio do século XX atêm-se a este axioma e não o larga nunca. Para Hermann Broch os edifícios narrativos podem construir-se e destruir-se a gosto, sem que tal signifique o seu conforto terno ou o seu desaparecimento. Estão simplesmente aí, para serem moldados, tal como a vida. Para Robert Musil tudo é questão do pormenor ignorado, que de repente explode e ocupa o lugar do relato, convertendo-no numa narração que-pensa-por-si-mesma. Para Robert Walser, o mesmo pormenor retrai-se e nega a sensção do pensar, que passa a fazer parte da vagabundagem metafísica típica do século. Também na música ocorre algo de parecido, sobretudo a partir do momento em que Arnold Schönberg desconstrói o sinfonismo à força de lhe insuflarem traços de cabaret surrealista, o mesmo método mediante o qual Anton Webern ou Alban Berg recuperam o lied e a ópera para os minimizarem e dessacralizarem. A cultura burguesa europeia entrou assim no seu último beco sem saída.
Teremos que olhar para o cinema como um objecto estranho que interfere neste processo. Há nele algo de bastardo, de intruso, de ladrão que recolhe as migalhas do saber ocidental para lhes arrebatar  o último alento de transcendência mal compreendida. Só faltava ver, mas não bastava a fotografia, na qual os mortos continuam imóveis. Havia que observar como se agita e move o fantasma, como pode sobreviver para além de si mesmo, como os restos arqueológicos da grande cultura se reúnem num último arranjo. A coisa real passa a ser uma alucinação, que por sua vez nos devolve o mundo tal como o conhecemos. É um movimento circular que regressa a Nietzsche : amar as sombras, abraçar a dúvida para além de si mesma e transformar essa acção numa imagem que permanece. O cinema nasce, pois, com o estigma da morte estampado na sua fronte, mas também com uma transformação do seu sentido: morrer é renascer, refazer, refanzendo-se. Tudo foi concebido para que a reprodução não tenha fim. E por isso o cinema teve sempre que conviver com a ameaça da sua própria morte. Imagem do desaparecimento contínuo, o cinema morre cada vez que um écran transmite um contorno, mas também renasce das cinzas com o próximo fotograma. Uma forma que pensa, ou uma forma que sente, depois do desabar do pensamento e da lingaugem ?
Nos últimos tempos essa "morte do cinema" enfrentou violentamente a sua versão optimista, a "mutação": o cinema não morreu, apenas mudou de aspecto. À melancolia, ao luto de um Serge Daney, responde o entusiasmo, por exemplo, de Jonathan Rosenbaum. Afinal, é uma questão política, já que à derrocada das ideologias, ao fim da História  - e da história - imposto por aqueles que se arrogam como detentores do poder da sua narração, sucedeu a inocência fotocopiada das neoutopias, daquelas que necessitam de acreditar em si próprias, para que outros acreditem. Mas essa necessidade de crença é fomentada a partid o poder, que também requere desesperadamente contrapesos de si mesmo para que não se sinta só na sua capacidade de gerar ilusão. A grande ilusão do neocapitalismo, então, dá lugar às ilusões das neoutopias, comparável a um parque temático do progressismo anti-sistema. Como superar essa nova dualidade a partir do cinema, a partir da imagem, negando a sua morte e, simultaneamente, o seu futuro ? De que modo podemos desejar o cinema do presente sem o mitificar, penetrando na sua matéria feita de transcendência de forma a que a dor se converta em prazer transversal ? Não haverá, depois de tudo, um supercinema capaz de superar a esperança num pós-cinema, um fluxo de origem nitzscheano (o superhomem) e freudiano (superego) capaz de crer apenas em si mesmo como simulacro transcendente ?

terça-feira, 17 de junho de 2014

LÊNDEAS E NARRATIVAS



1. A fotografia acima documenta, com proverbial eloquência e meridiana clareza, o modo como a liberdade, a paz e a democracia reinam no Iraque, após a intervenção e a retirada das tropas norte-americanas. À direita da imagem, deitados numa espécie de fossa, vêem-se diversos homens que estão a ser libertados das suas vidas, de um modo democrático (ninguém é poupado, ninguém é favorecido, são todos iguais), para poderem, enfim, gozar a paz eterna. Com toda a legitimidade, o portas irrevogável, o cherne barroso e o aznar têm motivos para se orgulharem do modo abjectamente servil como propiciaram e apoiaram a intervenção norte-americana, tendo até o irrevogável recebido uma medalha que comprova os altos serviços prestados ao bush filho, essa espécie inominável de atrasado mental que os acasos do destino puseram à frente de um país detentor de uma militar incomparável e capaz de a utilizar de acordo com as suas conveniências e interesses momentâneos. Tudo o resto não interessa: esfrangalhar um país, destruir um equilíbrio conseguido e mantido à custa de milhares de vidas, substituir um ditador pelo caos e depois dizer adeus e agora "amanhem-se como puderem" pode ser resultado de uma política pragmática e de uma visão do mundo assente na "realpolitik"; não é, certamente, do âmbito da ética e dos valores que todos queremos ver consagrados na Europa herdeira do humanismo e iluminismo. Eu, se fosse o irrevogável, cobria-me de vergonha, dobrava a cerviz até ao chão numa das reverências que ele tão bem sabe fazer e devolvia a medalhinha de lata que os americanos lhe atiraram, como se atira um osso a um cão, pelos serviços prestados.

2. Por outro lado, se eu fosse o cavaco, mandaria a canzoada deixar de ladrar, rapidamente e em força, como dizia o manholas. Já chega de grunhidos e do zurrar da escumalha do pote, enlameando o Tribunal Constitucional. A incompetência, a falta de cultura (não sabem duas letras do tamanho de uma casa) e de preparação técnica desta gente, aliadas à sua agenda política (que consiste basicamente na venda ao desbarato do país aos amigalhaços e no favorecimento de negócios) já se tornaram insuportáveis, mesmo quando estão calados e a fazem pela calada, como os ladrões. Termos que os ouvir "aliviarem-se" das suas opiniões, dos seus estados de espírito e das suas queixas, remete para um estado de tortura física e psicológica que deveria ser considerado como um crime público e julgado num Tribunal penal internacional.


sábado, 7 de junho de 2014

E DEPOIS, NADA

Tenho fases em que desisto de ouvir, outras em que deixo de dizer (ou escrever, vai dar ao mesmo). Nessa altura só me apetece ficar em casa a ouvir musica e a ver filmes. Em solidão vou ouvindo o que os outros disseram, não no momento em que falaram mas na altura em que os quis ouvir. E essa é a grande virtude do processo criativo. Uma estrutura infinita de prateleiras para onde vão convergindo os conteúdos artísticos, uma espécie de memória colectiva universal em forma de biblioteca. No seu silêncio ficamos mais disponíveis, mais receptivos e, o nosso enriquecimento é mais profundo. Precisamente quando deixamos de querer ouvir ou de dizer. A armadilha da actualidade e da moda é das piores doenças que destroem uma alma criativa. Porque não saiu com a força desejada, porque não foi entendida por um número suficiente de gente. A ansiedade e a desilusão rapidamente se combinam para minar a auto-estima e a vontade de continuar. Mas tudo é uma treta pegada se exceptuarmos o momento em que se está a praticar a criatividade. Sem que seja necessária uma confirmação do exterior sabemos se o que estamos a produzir vale alguma coisa. Se valer, será válido pela eternidade. O seu reconhecimento é que poderá não ser imediato, mas isso depende de uma infinidade de factores.
Há momentos em que desisto de escrever apenas porque não me apetece, porque não tenho nada a dizer, porque não consigo ouvir. Nessa altura prefiro ficar sentado à espera de ser encantado pelo trabalho de alguém. O silêncio preenche-se com som, o escuro do buraco negro com imagens e o Ser com harmonias alheias. Não interessa que não entendam o que dizemos, o que escrevemos. Alguém há-de entender um dia. Não interessa que as nossas quotas não sejam válidas no clube do “que está a dar”. Daremos aquilo que temos para dar pela mesma razão que só morreremos no momento em que tivermos que morrer. O mundo será exactamente o mesmo que era antes de nascermos, seja a nossa obra reconhecida ou não.
Por excesso de visitas ao blog e uma falta imensa de número de comentários correspondente já pensei colocar uma fotografia da Ciciollina com um cavalo para a provocação. Para choverem comentários e manifestações críticas do mau gosto. Mas, vendo melhor, não o vou fazer. A vida não é (nunca foi) tão séria como isso, do mesmo modo que ninguém me pediu para dizer/escrever coisa nenhuma. Se e quando o faço é porque me apetece sem pretender agradar a ninguém em específico. Escrevo como respiro porque essa é a minha natureza desde sempre. Se não escrevo começo a inchar por dentro correndo o risco de rebentar. E como gostava de deixar mais um ou dois títulos antes de me pôr a andar deste campo de concentração mal frequentado vou nivelando o “inchaço” para não rebentar de vez. Vou gerindo as pausas e os tempos do silêncio inspirando-me nos sons e nas imagens dos outros. Atravesso o rio sabendo que é impossível chegar ao outro lado sem molhar os pés. Digo bom dia à Ciciollina e que admiro muito a sua obra principalmente aquelas imagens com um cavalo. Brinco com o gato, faço cócegas ao sobrinho e pelo caminho vai saindo um romance. Heterodoxo, explodido, disperso, caótico, vai saindo qualquer coisa “em forma de assim” como escreveu o O’Neil. Um sermão que se converte num testamento para as novas gerações. Ou será um testemunho, uma prova de vida de três gajos da minha idade com as fronteiras dos neurónios todas queimadas? Uma história de amores e depressões, aprendizagens a acções radicais. Uma prova de que existimos uma vez, que cá andámos, um sinal para garantir a reforma no livro das gerações? Sei lá. Só sei que já me apaixonei pelos personagens, que me apaixonei pela sua história, pela sua juventude, pela sua maneira de passar pela vida. Agora tenho a certeza de que “temos romance”. Só não sei quando. Depois faz-se uma festa, juntam-se família e amigos, dão-se autógrafos e depois, nada. Tudo volta ao normal, à vidinha do costume como se nada se tivesse passado. Voltarei às minhas vontades de desistir, a ficar autista em relação ao mundo e a regressar à biblioteca onde os silêncios e o ecran escuro se desenham com os sons e as imagens daqueles que como eu, fizeram uma festa, juntaram família e amigos, deram autógrafos e depois, nada.


Artur