quarta-feira, 31 de agosto de 2022

COLHEITA DE AGOSTO NO TRIGÉSIMO PRIMEIRO DIA


 



Onde é que começa o fim e acaba o princípio?
O que é mais verdadeiro?
A metade ou o inteiro?
A mentira piedosa ou a pureza da verdade?
E o amor onde é que mais vale?
Vale ao perto ou nas colinas longínquas da metade?
Num lugar sem idade brotam rebentos sem cuidados. Implícitos e explícitos, verdes de tempo, enraizados na argila outrora semente.
Onde fica o meu estar antes tão veloz agora tão devagar? Contemplo ou ignoro este silêncio ruidoso? Tem pássaros lá dentro e folhas a cair. Um galho que estala e uma fonte que não se cala.
Das coisas que merecem ser perguntadas jamais deverão ser faladas. É-se, nesse ser sem grandes demandas.
Pisa-se, este chão, procissão de passos, ladeado pelas primeiras beladonas da estação. E colhe-se, colhendo,no reflexo urgente da formiga e da cigarra, sendo canção.
Elsa Bettencourt

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

ATREVENDO-ME A NADA QUERER SER




Atrevo-me a dizer que não me apetece dizer nada. Ficar esquecido num canto e deixar esgotar o frenesim que foi toda uma vida a correr atrás de metas, sonhos, objectivos nunca alcançados, ou conquistados mas nunca conseguidos. Atrevo-me a dizer que me sinto melhor quando estou calado a observar o tempo que acontece, a folha da árvore que ondula com a brisa, o gato a espreguiçar-se sobre o muro. Ter muito para dizer e não haver recipiente onde o despejar torna-se inútil, frustrante, deprimente. As histórias escrevem-se para serem transmitidas a um receptor, pressupõem uma reacção, uma resposta. As histórias são breves pedaços de comunicação, memórias partilhadas, tempo dividido. Mas a ligação do indivíduo que simplesmente se cala e observa o tempo a acontecer, a Natureza que se manifesta, é também uma espécie de comunicação.

Dizem que o Universo mantém um diálogo permanente connosco desde o dia que nascemos. Na maior parte das vezes estabelece essa comunicação através de sinais. Imagens, números, estruturas, o comportamento do corpo, sonhos, leituras, etc, que provocam em nós alguma reacção, actuam um sistema qualquer que…dá sinal. Podem ser avisos em relação ao caminho que se apresenta adiante. Podem ser necessidades de corrigir a rota ou pode ser simplesmente que exista dentro de nós uma linguagem sinalizadora que funciona como a sala de navegação de uma existência. Normalmente não se conseguem decifrar com a razão…sentem-se, fazem pressentir, ressoam, tornam-se reconhecíveis. Por isso levam algum tempo até se conseguirem esclarecer. Se houver algum caminho a percorrer neste universo e se for essa a nossa tarefa permanente, então os sinais são para interpretar enquanto grupo de regras dessa viagem. O caminho, esse, continua sempre, sem se interromper, sem hesitações, indiferente à decifração.

Deixemos no ar enigmas e mensagens cifradas ou, muito simplesmente, comunicações que não fazem sentido nenhum. Aparentemente acabarão por o fazer em algum lugar, em algum tempo.

Atrevo-me a dizer que na maior parte das vezes não me apetece dizer nada, guardo as memórias numa caixa e fico a ver a coloração de uma flor ou a caminhada do gato sobre o muro assim que estão encerradas as cerimónias da sua higiene diária. E distraio-me ao fim da tarde com o melro pontual que aterra sobre a relva do jardim em busca de uma minhoca para o jantar. Tudo já foi inventado, para quê pretender a forma original, para quê escrever melhor que o outro? Escreve-se e pronto. Quando me apetece, quando a voz interior fala mais alto e sai pelas entranhas, quando me lembro daquela história que ouvi, daquela personagem que cruzou o meu caminho. Não que tenha interesse nenhum para ninguém querer ouvir. Simplesmente resulta de um acto de higiene diária que se executa sobre o muro que separa o absurdo do racional, a vontade da inércia, a vida da morte. O muro fica, os passos da saída sobre ele são executados com estilo e o Sol volta a descer no horizonte enquanto um melro atrevido nos olha encantado com uma minhoca pendurada no bico.

 

Artur