sábado, 19 de março de 2022

LETRAS DOS AÇORES





«Meu querido pai, Cheguei bem à ilha grande depois duma viagem curta e de coração pesado. Não contava começar o oitavo ano longe de tudo onde cresci, nem a aprender tanto caminho de cor. Choro bastante, mas em compensação dou também lugar às gargalhadas. Sou boa a imitar sotaques e já estou especialista em “miquélense”.»
"Cartas de Chegada", Elsa Bettencourt (in) 𝘼𝙫𝙚𝙣𝙞𝙙𝙖 𝙈𝙖𝙧𝙜𝙞𝙣𝙖𝙡 — 𝙁𝙞𝙘𝙘̧𝙤̃𝙚𝙨, 𝙋𝙤𝙣𝙩𝙖 𝘿𝙚𝙡𝙜𝙖𝙙𝙖 𝙉.º𝟯, Ed. Artes e Letras, 2022.

sexta-feira, 18 de março de 2022

O AQUÁRIO


 

Janta-se em silêncio na cervejaria do bairro a contar as luzes lá fora através do aquário das sapateiras em estado de semivida, às voltas no mesmo sítio. Rostos de sempre e outros que não conheço distribuem-se ao longo do balcão, olham com ar científico para o telemóvel enquanto esperam pela imperial e, por cima das nossas cabeças a eterna televisão a debitar imagens de guerra, de vidas destruídas, manobras diplomáticas, tácticas de progressão no terreno. A bola ficou guardada por instantes no armário do Inconsciente Colectivo, à espera de melhores dias.  A guerra é como aquelas visitas indesejadas que se sentam à nossa mesa sem ninguém as convidar e em três tempos estão a dirigir os temas da conversa, não deixam ninguém falar e fazem cair uma tremenda azia sobre o nosso apetite. Às vezes como no balcão, outras apanho esta mesa que fica mesmo em cima da janela ampla para a rua onde posso comer em silêncio a olhar lá para fora. Na cervejaria onde sempre vim, logo a seguir à esquina, primeiro pela mão do meu pai antes dele partir para Angola, lembro-me perfeitamente de um jantar em silêncio horas antes dele embarcar. Não podia haver choraminguices dado que se estava num local público. E como também não havia razões para comemorar, comia-se calado a olhar lá para fora poucos anos antes de chegar o aquário dos crustáceos. Os carros eram diferentes, as pessoas vestiam-se de outra maneira, mas a televisão encavalitada num canto do tecto debitava imagens de África, helicópteros, paradas militares, mensagens de boas festas dos soldados em Dezembro, um almirante muito velho a distribuir medalhas em Junho. As imperiais, os bitoques e o senhor Amadeu agarrado à alavanca da cerveja e a rosnar pelo canto do olho

Puta da guerra

Porque um filho dele lá, depois outro, felizmente voltaram vivos. O meu pai também, mas o Luis que namorava a minha tia, não voltou. Casavam daí a meses, a minha tia andou anos a carregar uma depressão. Depois tudo acabou e voltou a bola, os títulos, os lances que não eram penalty, tudo aos berros em nome de clubes e cores. Depois as cores passaram a partidos políticos, havia noite de festa nas eleições, cada um debitava a sua posta enquanto a televisão debitava concelhos, distritos, percentagens, números de deputados. E com os partidos políticos veio também um aquário enorme que o sr. Amadeu colocou mesmo em frente à vitrine com o intuito de chamar a clientela. Uma inovação que só as hábeis e diligentes mãos do Aurélio conseguiam manipular. Desde o ritual da manga arregaçada até à luva de borracha as primeiras operações anfíbias eram espectáculo garantido com todos os presentes a suspirar por uma dentada de uma tenaz à qual o Aurélio se esquivava com mestria.

Eh, homem! Parece que nasceste para isto… - diziam no fim para disfarçar a inveja

 Anos mais tarde o meu primeiro filho a fazer o voo de adaptação na cervejaria, os pés a balouçar sem chegar ao chão, o aquário com as sapateiras a andar às voltas para cima e para baixo, a empurrar-se para chegar a lugar nenhum e logo a seguir a rua e as pessoas, os prédios e os automóveis. Lá em cima na televisão a guerra no Iraque, a invasão do Koweit, o deserto, as variantes diplomáticas e nós em silêncio para não acordar os demónios mais negros que povoam o planeta, a tentar passar nos intervalos da chuva a ver se eles não nos viam. Eu, um pai maçarico não me queria despedir de um filho tão pequeno e mergulhar num remoinho de infernos se esses infernos se alargassem até ali à cervejaria. Por isso comíamos em silêncio. Uns anos mais tarde mais um filho e desta vez a antiga Jugoslávia a desfazer-se aos pedaços, em ódio de uns contra os outros, genocídios, atiradores furtivos a disparar sem nexo sobre a população indefesa, movimentações diplomáticas, cidades destruídas. As sapateiras no aquário a treparem em susto umas para cima das outras a tentar fugir das mãos certeiras do Aurélio, o senhor Amadeu a secar um copo com o pano de muitas voltas e a rosnar por cima do olho

Puta da guerra

Enquanto as imperiais para lá e para cá, enquanto os bitoques, as moelas a chiar na frigideira, enquanto as sapateiras a saltar do aquário sem perceber bem o que lhes ia acontecer, cheias de medo, de frio, cheias de alho, de barriga para o ar e tenazes imóveis.

 

Depois foi o Iraque outra vez, e a Síria, e o Afeganistão, e o Líbano e em toda a parte e em parte nenhuma, a televisão sempre por cima das nossas cabeças, as imagens da selvajaria e da destruição, mortos, vidas viradas do avesso para sempre, cidades destruídas e sempre o silêncio ao ver aquilo tudo. Tudo caladinho a ver se os demónios da guerra não se lembram deste lugar

Os bitoques e as imperiais, as canecas e as moelas a chiar na frigideira, as pessoas, o aquário com as sapateiras lá dentro, uma e outra vez, um e outro ano sem parar.

E nós todos, uma geração depois da outra, enfiados num enorme aquário chamado cervejaria a correr para lá e para cá sem sair do lugar, encavalitados uns nos outros a tentar escapar à diligente mão do funcionário da morte para não sermos capturados e enviados para um poço negro de onde nunca mais se regressa.

 

Artur


terça-feira, 15 de março de 2022

ENTRE O PALCO E A PLATEIA

 Décimo quinto dia do terceiro mês de dois mil e vinte e dois. Ainda se atualiza os dados pandémicos do dia neste lugar cheio de árvores em todas as janelas. Não os ouvia antes, nem os ouço agora. Sinto-os no olhar dos mais velhos em forma de interrogação esgazeada entre as filas do pão e do papel higiénico, do álcool gel e da gasolina sobrevalorizada. No meu é como se o areal se tivesse mudado para as pálpebras e retina.

Tudo encareceu, sobretudo o que não se encontra.
Tudo rareou, sobretudo o que não se compra.
Além da banalização do mal, banalizou-se tudo o que mais nos prejudica e tudo o que nos eleva como entes humanos. A compaixão e a empatia manobra-se através dos vidros pelos técnicos estudiosos do polegar para cima ou para baixo e das técnicas de evasão do sentir mais fundo. Afinal já andamos a ser treinados para viver através da espessura do filtro que nos protege. Na dúvida desenhamos um sorriso sobre a máscara. Estamos proibidos de contactar o essencial por risco de contágio de qualquer sentimento sem antídoto em qualquer prateleira digital. O medo, a culpa, a impotência e a raiva servem-se às colheradas misturadas com mel, imagens de primavera, e a coragem dos inocentes. Interrompo o pensamento para ir dar um abraço a uma das minhas pessoas preferidas que está a poucos quilómetros de mim. Regresso dois dias depois às palavras daqui e aos pensamentos dali. Tenho sorte e agradeço. Reclamo da tinta que não seca e de tudo o que acho que posso controlar. Desligar os serviços noticiosos volta a ser urgente para bem da sanidade mental que tanto sofreu estes últimos dois pares de anos. Não me enganei nas contas! Para mim são dois pares porque o meu confinamento começou mais cedo, antes de qualquer pandemia, com limitações ditadas pelo meu corpo e pelos médicos. Novamente, só posso ter a veleidade de controlar a minha bolha. Só posso ajudar dentro dos meus limites. Não vou apontar dedo nenhum a ninguém porque não está na minha natureza nem quero que esteja. Se me pedirem a opinião digo o de sempre. Não gosto de senhores da guerra seja de que nacionalidade forem. Também não gosto que explorem a minha sensibilidade com imagens de sofrimento seja de que ser for. Há uma falsa sensação de que só agora é que todos os males acontecem. A sério? Por onde é que temos andado? Onde é que estamos quando precisam de nós? No meu caso, e porque eu estou sempre bem disposta, até sobram os dedos duma mão para contar as presenças preciosas que me agarraram com força para eu não cair. Sei-vos de cor meus raros amigos e sei porque muitas vezes me são mais íntimos do que o meu espírito é a mim. Deixem que a poesia de todas as coisas vos toque e façam o que sabem fazer. O barril do petróleo ou o preço do óleo, a invasão das privacidades ou das cidades, os vírus eminentes ou narizes proeminentes, são os fios que seguram as marionetas quando as querem pôr no devido palco. Aproveitemos a vida e o que resta dela. Abraço-vos.