domingo, 28 de maio de 2023

NO CENTENÁRIO DE EDUARDO LOURENÇO


  NOTA : ASPARTESDOTODO CELEBRAM O CENTENÁRIO DE EDUARDO LOURENÇO COM ESTE TEXTO QUE, APESAR DO SEU CARÁCTER ACADÉMICO E DE NÃO SE DEBRUÇAR "APENAS" SOBRE O PENSAMENTO DA FIGURA MAIOR DA ENSAÍSTICA E DA FILOSOFIA PORTUGUESA DO SÉCULO XX, SOBRE ELE SE SUSTENTA E INCIDE NA SUA MAIOR PARTE.


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IDENTIDADE, IDENTIDADE CULTURAL, MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: EUROPA E O PORTUGAL EUROPEU


UM    

    Qualquer reflexão sobre a temática da construção da cultura e da identidade europeias, tem em conta uma série consagrada de marcadores, ou referentes matriciais que se tornaram canónicos. Assim, a identidade cultural europeia – assumindo-se aqui a fusão dos dois pólos da questão numa mesma expressão que, longe de gerar uma entidade homogénea e unitária, produz realidades muito distintas, como veremos mais tarde – aparece como uma aglomeração ou aglutinação de “heranças”: a herança da Grécia, de Roma, da Cristandade, do Renascimento, do Iluminismo, da Revolução Francesa, dos direitos do Homem, enfim, de uma miríade de referentes cuja amálgama constituiria essa mesma identidade. Nesse sentido, caberia às ciências humanas a tarefa ingrata de dar sentido a essa reunião heteróclita de matrizes. Mas bastará esse, digamos assim, “amontoado” de origens para dar conta do objecto a definir? Pelo contrário, a mera aceitação de algumas evidências será suficiente para a construção de um discurso crítico, sólido e fundamentado, em torno de um tema crucial e operativo no modo como cada um de nós experiencia a sua pertença a uma comunidade política que reivindica para si mesma ser continuadora de um legado tão vasto e tão heterogéneo? Os defensores de taxinomias estritas argumentarão que o curso da história política, social e cultural da Europa tem decorrido da integração sucessiva das suas diversas matrizes referenciais e da conjugação mais ou menos bem sucedida de todos esses influxos. E, na realidade, têm razão, pelo menos em parte; o repertório de legados a que aludi sucintamente – e muitos outros podem ser acrescentados – revela-se de grande utilidade como ponto de partida, sob condição de não conduzir a uma aporia na qual a aceitação acrítica de todos os legados e a passividade aproblemática com que se aceita que eles se integram sem conflitos numa mesma totalidade explicativa equivale à passagem de uma ontologia a uma metafísica perene, na qual o tratamento dos mesmos temas conduz inexoravelmente às mesmas conclusões. Sem negar a utilidade do repertório matricial e a sua operabilidade na construção de um horizonte de legibilidade e inteligibilidade de uma identidade (ainda) em construção, constato e sublinho a premência de duas questões de grande alcance que à partida emergem da sua aceitação acrítica:

a)    Todos os elementos que, aglutinados, formam a cultura e a identidade europeias, têm o mesmo peso e significado?

b)    Constituirão todos esses elementos uma rede de transferências conceptuais entre si? Se sim, de que modo?

 

A obsessão essencialista formada a partir de uma visão estrita do conjunto historicamente consolidado de legados culturais cuja amálgama – e mesmo a hipotética coalescência – teria resultado naquilo que designamos como “identidade cultural europeia”, contaminada por uma fixidez que contraria o próprio espírito e carácter dinâmico de que essa identidade deu provas substantivas.[1]

          Assim, a melhor maneira de abordar o problema é tomar como ponto de partida uma declaração de Edgar Morin em “Pensar a Europa”, citada por Isabel Baltazar no texto “Pensar a História da Europa: Reflexões Sobre a Construção Europeia de um Destino Comum”: “A Europa é uma noção incerta, nascida da barafunda, com fronteiras indefinidas, de geometria variável, sofrendo de deslizes, rupturas, metamorfoses. Trata-se por conseguinte, de interrogar a ideia de Europa naquilo que ela tem de incerto, de turvo, de contraditório, para tentar extrair daí a identidade complexa”.

          Como se depreende, a escolha lexical de Edgar Morin não é inocente; “incerto”, “variável”, “turvo”, “contraditório”, “identidade complexa”, escolhas que remetem para um objecto em permanente construção e metamorfose, sujeito às mais variadas interpretações – todas elas com pretensão a validade lógica e universal – plural, aberto e, sobretudo, instável. O que me leva de volta ao início deste texto: neste ambiente de não-fixidez, podemos reduzir a interpretação da identidade cultural europeia a um jogo dialético de matrizes e referentes canónicos?

          Tenho vindo a utilizar indistintamente a expressão “identidade cultural europeia” como um conceito composto, no qual “identidade” e “cultura” parecem ter o mesmo conteúdo, completarem-se e equivalerem-se. Mas esta utilização indiferenciada não é, também ela, isenta de problematização. De facto, podem ser encaradas como entidades autónomas e não redutíveis entre si. Diversos autores exprimem a necessidade de pensar a cultura de um modo que a caracterize como suporte da identidade. Isabel Baltazar, no texto já referido, é uma dessas vozes. Diz-nos ela: “Para além de desesperadamente se procurar uma unidade na diversidade cultural europeia, tão presente em Fernando Pessoa, é o reconhecimento da cultura como elemento fundamental para definir a própria identidade europeia.” [BALTAZAR, 2011, p. 216][2]. Em “A Identidade Cultural Europeia”, Vasco Graça Moura aponta no mesmo sentido, quando diz: “Dada a própria natureza das coisas, qualquer identidade relevante que se pretenda ver num conjunto de nações que formam a Europa tem que ser também, necessariamente, uma identidade cultural.” [MOURA, 2013, p. 12]

          Neste ponto, e para concluir esta secção, resta-me contrastar todas estas teses sobre a identidade e a cultura europeias com o especialíssimo caso da identidade cultural portuguesa e o modo como esta se confronta, adequa, adapta ou, pelo contrário, se desajusta, se afasta da(s) sua(s) contraparte(s) europeia(s). Antecedendo essas considerações, e enquadrando-as, adianto dois pressupostos que se deduzem da literatura disponível:

a)    Apesar dos particularismos e características identitárias, decorrentes do imaginário que a estrutura e lhe confere sentidos e interpretações próprios e originais, a identidade cultural portuguesa sempre se sentiu atraída e determinada pelo poderosíssimo centro de atracção gravitacional da identidade cultural europeia;

b)    Contra o pano de fundo da identidade cultural europeia, com o qual partilha os mesmos referentes e matrizes, a identidade cultural portuguesa afirma-se primeiramente pela sua excepcionalidade, mesmo se todos os outros povos europeus também se percepcionam como excepcionais nalguma das suas características definidoras ou ponto do seu percurso histórico.[3]

Não cabendo aqui estabelecer um repertório integral dos elementos simbólicos, religiosos, imaginários, etc. que fundamentam a crença na excepcionalidade da identidade portuguesa, e que se manifestam em todas as dimensões e vertentes possíveis da vivência colectiva, cristalizando-se quer na cultura popular, quer na esfera da alta cultura[4], como podemos finalmente caracterizar a identidade portuguesa? Segundo Eduardo Lourenço, como uma “hiperidentidade”[5], uma tese formulada no texto “Psicanálise Mítica do Destino Português” [LOURENÇO, 2022, pp. 23-66]. Esta forma de questionamento da identidade portuguesa como hipertrofia de determinados elementos constituintes dessa mesma identidade é para Eduardo Lourenço um problema de grande magnitude; resulta de uma tensão constante entre o espírito europeu universalizante e aberto e o fechamento que a hiperidentidade implica. Aliás, este problema liga-se com uma outra dimensão crítica de que Lourenço dá conta em diversos escritos, ao caracterizar a cultura portuguesa como uma não-cultura, devido justamente ao facto de não ter um carácter universal; na sua perspectiva, faltar-lhe-ia a vertente especulativa e racional que resulta do labor filosófico, isentando-a, isolando-a dos movimentos de pensamento que são, também eles ou principalmente eles, uma das marcas de água da identidade e da cultura europeias. De tal forma assim é, e Lourenço não deixa nunca de sentir o peso trágico dessa circunstância, que chega a caracterizar essa, digamos assim, falha, como “indigência ontológica”. De resto, esta interpretação no limite de um pessimismo lúcido, veio a ser matizada no pensamento de Lourenço ao longo da sua linha evolutiva: se nos anos 40 e 50 via o problema da identidade cultural portuguesa dessa forma, na fase tardia da sua obra esse pessimismo, e a ansiedade que lhe é concomitante, ampliam-se: já não é só a cultura portuguesa que é uma não-cultura; toda a cultura europeia o é também, já que se desenvolveu num ludismo sem transcendência e sem a aspiração à criação universal de valores que tinha sido o seu apanágio.

Concluindo: a identidade portuguesa assenta numa estrutura simbólica, que actualiza permanentemente uma mitologia sempre renovada, uma estrutura profunda cuja origem está ligada aos mitos fundadores da própria nacionalidade (o seu carácter miraculoso e transcendente), passa pela exaltação mística e épica de “Os Lusíadas”, é filtrada pelos mitos sebastianistas, resgatada pelas visões do V Império, re-interpretada pela Geração de 70 – especialmente por Antero de Quental –, assumida como determinante cultural pelo Estado Novo e plasmada na Filosofia portuguesa e nos movimentos artísticos e culturais do século XX[6], como se essa estrutura simbólica fosse uma latência sempre pronta a irromper na nossa vida (mental e afectiva) comum sempre que nos confrontamos com crises e sobressaltos de ordem política, social ou económica.

 

 

DOIS

 

Como temos vindo a considerar, a memória cultural portuguesa é rica e complexa e, mesmo abstraindo da percepção de excepcionalidade, da mitificação do passado, da ausência de uma reflexão generalizada sobre o ser português, da imagem degradada que os portugueses têm do seu presente – permanentemente contrastada com o passado percepcionado como glorioso – e de uma subjetivação e territorialização (para retomar o termo empregue por José Gil) que funcionam como forças de bloqueio de uma vivência plena e realizada, actualizada, do seu potencial de desenvolvimento, constitui o fundamento, sustentáculo e reforço da identidade portuguesa. Esta memória colectiva compartilhada, mesmo geradora da “hiperidentidade” que temos vindo a referir, e que foi identificada por Eduardo Lourenço como predicado fenomenológico da identidade portuguesa, é ainda assim o “cimento” de uma comunidade política que, de outro modo, tenderia para o esquecimento. Se concordarmos com Eduardo Lourenço, seguindo-o na tese de que a cultura europeia se deixa corroer pelo lúdico, o imediato e o material, construindo monumentos à banalidade, teremos que aplicar o mesmo diagnóstico à nossa dimensão.

Os fenómenos da urbanização acelerada nas últimas décadas, cujos efeitos de desequilíbrio são amplamente conhecidos, nomeadamente na desertificação e abandono de parcelas do território e na perda de coesão social, a globalização e mudanças profundas nas estruturas sociais, são factores de desagregação de uma identidade cultural que, nem por ser “hiperidentidade”, escapa a uma evolução que tende a tornar menos densa e significativa; os “lugares de memória” de que falava Pierre Nora tornam-se para os portugueses meras cerimónias e rituais comemorativos, impondo a obrigação de relembrar constantemente aquilo que se comemora. Por outro lado, a perda de conexão com as raízes culturais, efeito de uma modernização que só o é à superfície e que se manifesta em aspectos triviais da nossa vivência coletiva, tem vindo a desligar os indivíduos do património comum e a tornar difusa e evanescente a memória histórico e cultural. Na minha perspectiva, a memória e o esquecimento desempenham papéis conjugados na identidade portuguesa. Sem desvalorizar o influxo externo decorrente da abertura ao mundo, nem a pressão exercida pela modernidade tecnológica, e sem esquecer que as identidades são dinâmicas, importa considerar a aplicabilidade ao caso português das ideias de Paul Ricoeur sobre a relação dialética da memória com o esquecimento, bem como a necessidade de considerar a importância central de uma ars oblivionis com um estatuto paralelo com a ars memoriae.   Aparentemente esta relação assenta num paradoxo: aquilo que Ricoeur designa como “dever de memória” apresenta-se como “dever de lutar contra o esquecimento” e assim anular ou minimizar aquilo que a natureza do esquecimento representa de dano ou malefício. A primeira nota a reter no processo de exame da temática do esquecimento é o propósito de ultrapassar aquilo que Ricoeur designa como “polissemia opressiva”, ou uma patologia da linguagem, que perturba a possibilidade de o visar (ao esquecimento) num horizonte que não seja o da pura negatividade. A argumentação do filósofo é acerca dessa questão muito clara: a representação do passado é problemática, desde logo porque se coloca a questão da total confiabilidade da memória – Ricoeur chama-lhe mesmo “ambição de confiabilidade da memória” e fala também em “enigma constitutivo da lembrança” originado pela dialética ausência/presença na representação do passado – e também do seu abuso: a memória que recorda tudo e que, pelo seu carácter totalitário, se torna monstruosa. No limite, podemos pensá-lo, essa memória que recorda tudo e que, nesse sentido, abarcaria a totalidade do Ser, tornar-se-ia inútil, num sentido que Ricoeur sugere ser o da nossa coexistência no passado e no presente. Assim sendo, considero que a ars oblivion opera no caso português no sentido de atenuar – mas só à superfície e só no que diz respeito ao rituais quotidianos, uma vez que as estruturas profundas não mudam – os efeitos negativos da hipertrofia da identidade, por um lado, e por outro a manter uma reserva (“esquecimento de reserva”) que permite o sentimento de pertença a uma comunidade política e a uma entidade cultural que é maior do que a soma dos indivíduos que dela, com maior ou menor grau de consciência do legado de que são portadores, se reclamam. Sobretudo, porque permite esquecer tudo aquilo que é inútil na compreensão da história e na atribuição de sentido ao presente.


Arnaldo Mesquita


 



[1] No ensaio “A Europa ou O Diálogo Que Nos Falta”, de 1949, Eduardo Lourenço faz a seguinte reflexão: “(…) à Europa tudo lhe convém menos do que a resignação hindu à inércia do extático”.

[2] Torna-se desnecessário sublinhar que o conceito de “identidade” implica um conjunto de particularismos e originalidades através dos quais se afirma, esquecendo-se por vezes a realidade de transferências culturais que formam também cada identidade. Por sua vez, o adjectivo “cultural” tem um sentido e abrangência mais latos. Em “Gramática das Civilizações”, Fernand Braudel caracteriza-o deste modo: “(…) designa o conjunto do conteúdo que abarca simultaneamente civilizações e cultura. Nestas condições, dir-se-á de uma civilização (ou cultura) que ela é um conjunto de bens culturais, que o seu lugar geográfico é uma área cultural, que a sua história é uma história cultural, que os tributos de uma civilização a outra civilização são tributos ou transferts culturais, tanto materiais como espirituais.” [BRAUDEL, 1989, p. 20]

[3] Como muito bem notou Eduardo Lourenço na obra “Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade”: “Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse desde sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa convicção que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos «identidade». Como para os indivíduos, a identidade só se define na relação com o outro. Como essa relação varia com o tempo – é o que chamamos a nossa história –, a identidade é percebida e vivida por um povo em termos simultaneamente históricos e trans-históricos.” [LOURENÇO, 2012, p. 9-10]

[4] “O singular do povo português é viver-se enquanto povo como existência miraculosa, objecto de uma particular predilecção divina. Dizer-se que se vive como “povo de Deus” seria irrelevante, sobretudo hoje, que esse conceito tomou um sentido mais vago. É como povo de Cristo, e não meramente cristão, que, desde a sua irrupção na história medieval como reino independente, os responsáveis pela sua primeira imagem e discurso mítico o representam.” [LOURENÇO, 2012, p. 12]

“Não há na cultura portuguesa discurso mais alucinatório e sublime que o de António Vieira. É a síntese arrebatada, mas simbolicamente coerente, de cinco séculos de vida colectiva vividos com a convicção arreigada – mas também culturalmente cultivada – de que a própria existência de Portugal é da ordem não só do milagre, como da profecia. Pela sua pública fidelidade crística, Portugal profetiza.” [LOURENÇO, 2012, p. 21]

 

[5] De resto, não é o único a fazê-lo. José Gil lê a identidade portuguesa como uma força de bloqueio do nosso desenvolvimento colectivo e produtora de “subjectividades autocomplacentes”, fechadas ao exterior – entenda-se, ao exterior dessas subjectividades – territorializadas, construindo muros e fronteiras mentais que provocam a paralisia do desassossego, que o filósofo reputa como motor de uma dinâmica que permite mobilizar o presente e o futuro num mesmo desígnio. Compare-se esta forma de pensar a problemática da nossa identidade com aquela que Lourenço formula em “Nós E A Europa ou As Duas Razões”, quando afirma: “Por um lado, subtrai os portugueses à consciência deprimida que teriam de si sem esse passado; por outro, impede-os de investir na sua vida real, no seu presente, uma energia e uma ambição que sempre parecerão medíocres comparadas com as do século de esplendor, ou, pelo menos, de dinamismo excepcional.” [LOURENÇO, 1994, p. 11-12].

Aliás, refira-se que Gil utiliza uma metodologia de análise que, não sendo exactamente similar à de Lourenço – ambos utilizam a terminologia e o tipo de exame das profundidades, arcanos e análise da discursividade narrativa – lhe permite chegar a conclusões semelhantes quando diz, por exemplo: “Não foi Eduardo Lourenço que afirmou que, longe de sofrermos um défice, sofremos sim de um excesso de identidade?” ou ainda “O nosso mal é a identidade” [GIL, 2009, p. 20].

[6] Importaria referir a intervenção nesse processo de movimentos como o Saudosismo e a centralidade da obra e do pensamento de Teixeira de Pascoaes no seu ideário, o projecto ideológico da revista “A Águia” como divulgadora das concepções da Renascença Portuguesa, intelectuais e filósofos como Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, António Sérgio, etc., culminando no messianismo sebastiânico expresso por Fernando Pessoa em “Mensagem”.


                                                       

sábado, 27 de maio de 2023

Fim de TardeOntem



 

 A pausa do trabalho que não falta faz-se aqui, a cinquenta metros da porta. Sento-me num tronco ou no meio da erva fofa e fico a pasmar. Estes companheiros são os cúmplices dos dias. Trazem-me paus, flores e lagartixas. Brincam às apanhadas em memória dum tempo em que uns caçavam os outros. Há um milhafre a pairar e a ver esta humana algo desajustada do rebuliço lá longe. Acho que um dia vai aproximar-se e juntar-se à brincadeira. Recolhemos amostras de galhos de várias árvores para um futuro trabalho. Recolhemos flores para identificar e secar. Verificámos o plantio em tocos de árvores caídas. É uma experiência constante esta de viver com galochas nos pés, tesoura e machete numa mão e bordão na outra. Se me chateio? Só se ligar as notícias. Sou como um caracol com esta concha que me protege.

Elsa Bettencourt

quinta-feira, 18 de maio de 2023

ARNALDO MESQUITA E A PALA DE WALSH

 

domingo, 7 de maio de 2023

TALVEZ PELO MAR FORA

 

É tão vasta a palavra “talvez” que cabe dentro dela uma existência inteira, uma expectativa no horizonte que nunca se aproximou, uma dor que doeu para lá do tempo que tinha, um desperdício aproveitado desprovido de justificação. Talvez um dia tenhamos chegado aqui vindos de não se sabe onde para uma viagem sem mapa nem bússola, um caminho de solavancos e encontrões cujo sentido só será conhecido quando já não fizer sentido nenhum. Talvez nos tenhamos encontrado nessa viagem atribulada quando dois comboios pararam na mesma estação em direcções diferentes. Duas janelas que coincidiram entre apeadeiros, olhares cruzados, rostos familiares e um apito ensurdecedor de partida a sublinhar uma despedida antes do reconhecimento. Talvez uma memória tivesse ficado esquecida, perdida no apagamento das coisas que não podiam ser lembradas. Talvez, como quem está numa praia onde o mar toma conta de tudo e a voz não se consegue ouvir. Talvez o Sol me tenha aquecido a falta do teu abraço antes das ondas embalarem as noites que não dormimos. Talvez os desencontros, as faltas de comparência e de sintonia tenham sido os sinais de todo este caminho onde, sabendo de nós, de alguma forma também sabíamos que nunca nos iríamos encontrar. Talvez o mar nos soubesse dizer alguma coisa mas se tenha esquecido da melhor forma de o fazer. Em vez disso deu-nos tranquilidade, silêncio, uma resposta vaga, um conselho imperceptível em forma ondulada de uma respiração permanente. Talvez a caminhada tivesse algum sentido e as ausências, as dores, os desencontros e os acidentes fossem lições que era necessário aprender. E o caminho foi percorrido, primeiro com medo, depois com raiva e por fim com resignação. Talvez tudo fosse uma ilusão extremamente real de saborear para que melhor se pudesse ultrapassar mais uma etapa. Talvez volte esta tarde ao mar e, desta vez fique por lá a deixar cair a noite, quieto sem me mexer, a ondular na respiração das ondas, a falar contigo através do vento. Talvez fique por lá e não volte e deixe em terra os desencontros e as ausências, as dores e as perguntas a que nunca consegui responder. Talvez no meio do ondular o corpo se desprenda e a voz se cale e tudo  fique inexplicavelmente parado como um comboio na sua última estação. Os passageiros a saírem em fluxo contínuo, as bagagens e, por fim as luzes desligam-se. O silêncio enche todo o espaço e só as memórias vão ficar por ali como pequenas marcas da passagem dos dias. Pequenas marcas que o tempo se encarregará de varrer de manhã enquanto prepara uma nova viagem. Talvez…

 

Artur