terça-feira, 23 de dezembro de 2008

FRENTE AO MAR


Naquela manhã de Inverno acordou naturalmente na casa em frente ao mar. Sem cansaço interrompido, nem ressaca picadora de miolos, nem coisa nenhuma que lhe tivesse vendido o sono a troco de um ou outro excesso. Montou a costumeira dose de café na máquina, esperou, encheu uma caneca e foi até á janela. Naquela manhã sem nuvens até a claridade arrepiava, mas não se importou muito com isso. Deixou-se ficar como que hipnotizado pela paisagem que conhecia desde sempre, desde que se conseguia lembrar de si próprio. O farol ao longe, as escarpas, o voar das gaivotas, o desenho da praia na maré baixa, até as vagas, sendo novas lhe eram familiares. Conseguia encontrar uma história em cada uma delas sem pressa, sem grande esforço. Várias histórias que conseguiam construir a História de uma vida. Os primeiros Verões entre panamás, baldes e pás, gritaria de irmãos e primos, avós avisadoras, tias solteiras de beijo fácil e lambuzado, sestas forçadas, gelados no fim do dia. Olhou de revés para se certificar que a velha mesa redonda com os retratos ainda ali estava, no canto da sala onde sempre esteve. Tentou encontrar as tias, novas de vestidos leves e claros, sorriso aberto a preto e branco. Estavam lá embora fosse mais lento a encontrar os seus nomes do que as poses para a posteridade. A primeira braçada fora de pé, a adrenalina de conquistar um mundo enorme até aí inacessível, o grito triunfante do esqueleto pré-adolescente em jeito de aviso aos emissários atlantes. Depois um mergulho num sonho enquanto o corpo crescia sem se dar quase por isso. Os amigos, as fogueiras nocturnas, o primeiro cigarro, as motas, as namoradas, o surf. Ah, o surf. A segunda dose de libertação que o libertou a conta gotas ao longa daquela vida sem sentido. Os momentos de reflexão e paz conseguidos em flutuação, agitação, remadas de existência. Apesar da hérnia, apesar do reumático, apesar de muito o querer acabou por ser obrigado a guardar a memória na prancha velha que apodrecia na garagem. Olhou para o fundo onde se erguia a grande cidade. Conseguia imaginá-la sem esforço envolvida em doses industriais de pessoas, automóveis e gases mortíferos. A cidade no Natal. A mãe, o pai… Voltou a espreitar para a mesa redonda das fotografias. Ainda ali estavam. Partidos há muito mas presentes nas memórias, nas breves recordações, nas gargalhadas colectivas com os irmãos naquela mesma sala. Nunca morrem aqueles que amamos. Estão sempre connosco aqui ou no outro lado, seja lá onde isso for. Era Natal em frente ao mar. A televisão chamou-lhe a atenção com uma música antiga dos 20 anos. Agora só conseguia ver dois canais: o dos filmes e o dos sucessos antigos, fechando o mundo em recordações ou obras de arte que o tivessem ajudado a conhecer o mundo, a conhecer-se a si. A música trouxe-lhe recordações e o beijo de uma mulher. O nome levou mais alguns segundos a chegar mas o seu cheiro não. O seu sabor, as corridas desenfreadas entre dois mundos que se aprendem à força de tacto… e ficou feliz por se recordar. Que seria feito dela agora? Estaria cheia de filhos a preparar a Ceia? Já teria netos? Estaria ainda viva? É impressionante como se perde o rasto das pessoas. Como esquecemos as suas memórias no ficheiro da lembrança e de como voltamos a ele sem perceber que já passaram tantas eternidades…como se ainda ontem os tivéssemos visto.
Voltou a olhar o mar com a mente limpa, repleta de vácuo. Tinha que se vestir. Tinha prometido à irmã, aos sobrinhos. Tinha prometido qualquer coisa onde se incluía a sua presença. Já não se lembrava bem a que horas. Não interessa, pensou, hei-de ir. Desta vez tenho que ir. Celebrar o Natal sem os pais, doía-lhe. Arranjava desculpas, trabalho, famílias de companheiras da altura, qualquer coisa. Doía-lhe a falta dos pais e de vários amigos. Doía-lhe principalmente uma vida estúpida e com muito pouco sentido que lhe tinha sido apresentada ainda muito novo. Fez o que se esperava dele. Estudou em vez de vadiar, foi ao psicólogo em vez de se suicidar, teve filhos em vez de ser egoísta, trabalhou em vez de roubar. Doía-lhe principalmente o “para quê” de tanto sacrifício, tanto sapo engolido, tantas lágrimas de tantas dores dispensáveis. Nunca esteve bem na sua pele talvez porque se interrogou demasiado, deixou que a consciência tomasse conta dele, o tiranizasse até um beco sem saída. Ver o problema e saber-se impotente para o conseguir resolver…mais valia ser cego. Sim, doía-lhe a vida. Apesar de naquela manhã de Inverno mediterrânico à frente do mar já não lhe doer. A idade, a afinidade com o mar, a inteligência…e um tumor na cabeça recentemente diagnosticado sem hipótese de cura. Não estava triste e muito menos infeliz. A palavra certa para aqueles dias era “aliviado”. Aquele seria certamente o último Natal da sua vida, por isso tinha que estar a determinada hora em casa da irmã. Não para se despedir, não para fazer um anúncio dramatizado da sua morte mas apenas para estar com eles. Porque os amava. Não havia nada de errado na sua condenação. Ela estava lá desde o dia em que nasceu. Como todos. A dose de sofrimento que lhe tocou também não era nenhuma exclusividade. A outros doeu mais e com mais força. Sabia isso tudo…por isso é que tinha consciência de perceber. Que se vive e se morre e que nada do fica faz sentido nenhum. Cumpre-se apenas um ciclo, o princípio e o fim de uma existência.
Brevemente estaria ele naquela mesinha redonda da sala entre os retratos das tias, dos avós, dos pais. “Bem-vindo ao clube”, sorriu para dentro de si. Olhou o mar mais uma vez. Ali estava, muito antes dele, ali continuaria muito depois. Mais um amigo que deixava. Ergueu a caneca cheia de café no ar em jeito de brinde:
“Paz na terra aos bacanos que eu vou ter que me ir embora com boa vontade…”

ARTUR GUILHERME CARVALHO

Grafite s/ papel #3

sábado, 20 de dezembro de 2008

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

IT'S A WONDERFUL LIFE


DO CÉU CAÍU UMA ESTRÊLA

Frank Capra

EUA, 1946

Voltar aos clássicos de vez em quando pode ser um exercício refrescante, como que uma bolha de tranquilidade na agitação do pensamento. Recordar DO CÉU CAÍU UMA ESTRÊLA é voltar a uma infância de escola primária em que a televisão exibia em muito menor número de alternativas um nível de qualidade que nunca mais recuperou. Filme extremamente adequado ao Natal e para todo o tipo de audiências, ao mergulhar no espaço de uma pequena comunidade americana do pós-guerra, a inocência da sua proposta está longe de ser gratuita na medida em que toda a base do argumento assenta na eterna luta moral da existência humana. Praticar o Bem num espaço agreste e cujas regras dificilmente deixam vislumbrar o devido retorno transforma a bondade em desespêro.
O eterno homem comum da época (James Stewart) é salvo do suicídio à última da hora por um aspirante a anjo da guarda em trabalho para merecer as suas asas. Contrariado, o ex-suicida não aceita o seu salvamento, chegando mesmo a afirmar que nunca deveria ter existido. Fazendo-lhe a vontade o anjo resolve mostrar-lhe como seria aquele pequeno universo caso a sua ausência fosse real. A partir daqui o protagonista vai ser confrontado com um sem número de situações arrepiantes e deprimentes que assolam tanto a comunidade como as pessoas que lhe estavam próximas. Ao longo da história as duas lições do anjo vão ganhando forma: convencendo o renitente suicida: “ Nenhum homem é um fracasso se tiver amigos” e “todas as vidas de qualquer um interferem nas dos outros”.
O filme termina em happy end inevitável, não sem antes percorrer toda uma equação emocional aqui e ali pontuada de forte intensidade. (Re)visionar este filme é recordar com alguma emoção o tempo da inocência mas também é uma chamada de atenção em relação à vantagem de seguir o caminho “realista” da facilidade de sermos egoístas, gananciosos ou moralmente indignos. A eterna luta da consciência humana onde cabem todas as teorias e todas as respostas. A simplicidade do filme é comovente sem ser simplória na medida em que equaciona a razão da existência, bem como a melhor maneira de a gerir. Não é por acaso que tanto o realizador como o actor principal consideraram este filme como o mais importante das suas carreiras.
Ver DO CÉU CAÍU UMA ESTRÊLA, é fazer parar o tempo e sentir uma brisa de boa vontade e entendimento tão necessário para a nossa vida diária. Se a vida não tem sentido nenhum, então não há nenhuma razão para não fazermos dela um espaço de amor e solidariedade.

ARTUR GUILHERME CARVALHO

KAFKA


Era um sonhador e as suas criações foram muitas vezes concebidas com as características próprias do sonho; imitam exactamente a extravagância ilógica e angustiosa dos sonhos, sombras chinesas e maravilhosas da vida que fazem rir.
Mas se é um riso que faz chorar, é por razões superiores do melhor que temos em nós (…) . As páginas de Kafka contam-se entre as coisas mais dignas de ser lidas que até agora produziu a Literatura Universal.”

Thomas Mann

Le Bang

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Interferência #9

UM TRIPLANO DE MINIATURA


De que matéria serão feitos os sonhos? De memórias De desejos? De simples ilusões? De coisa nenhuma e de um pouco de tudo? Essa era a questão que menos poderia interessar ao pequeno André quando acordou naquela manhã. Lembrava-se que tinha estado noutro lugar durante a noite. Numa praia de areia dourada, onde se via o fundo do mar piscado em milhares de reflexos de luz. Uma terra sem nome onde se sentia bem a brincar com o seu balde e a sua pá, no faz e desfaz das formas da areia molhada. Alguém o chamava lá de cima, debaixo de um toldo. “André! Annnndréééé´!”, a mãe com um chapéu de palha arredondado de aba larga fazia-lhe sinais acenando com a mão direita. Olhou ainda hesitante para o castelo inacabado à sua frente. Faltava acabar o fosso e um lado das muralhas. Tinha tempo quando voltasse. Aquele chamado denunciava qualquer coisa de muito breve. Um creme nas costas, um chapéu na cabeça, ou talvez a sandes que estava por terminar. Viu a mãe em pé com uma das mãos estendida à altura dos seus olhos, que lhe dizia para a segurar. Agarrou-a. Por mais que tentasse não lhe conseguia ver o rosto. Só o comprimento das pernas, um fato de banho com rosas estampadas e, lá em cima, uns óculos escuros tapados pela sombra do chapéu. Sabia que era a mãe dele, da mesma maneira que nos sonhos temos certezas sem ter imagens definidas. Passearam lentamente ao longo da praia, muito perto da linha inconstante onde as ondas vinham morrer vestidas de branco. Trocaram palavras, trocaram sorrisos, trocaram carinhos. A mãe pegou-lhe ao colo por breves instantes e abraçou-o demoradamente. Depois voltou a pô-lo no chão. Disse-lhe qualquer coisa que lhe custou a dizer. Qualquer coisa que começava numa desculpa e acabava numa despedida. Por uma razão qualquer que André não conseguiu perceber, depois daquela tarde na praia iria passar muito tempo até a voltar a ver. Um tempo muito grande. André ainda tentou dizer-lhe para ficar mais um pouco, mas ela foi-se afastando como se tivesse um autocarro para apanhar, daqueles que partem a horas certas. A sua figura foi ficando cada vez mais pequena até ser uma silhueta, até ser só o espaço vazio da sua ausência. André ficou sozinho naquela praia sem perceber bem porquê. Não chorou nem gritou como costumava fazer quando o contrariavam e admirou-se com isso. Depois voltou para trás e caminhou de encontro ao castelo de areia que tinha deixado a meio. Com a subida da maré, restava-lhe apenas a torre mais alta, que parecia querer resistir enquanto memória do castelo que já tinha sido. Sentou-se na areai a ver o mar por instantes. Depois acordou. Voltou a conhecer as paredes do quarto e os desenhos estampados na cobertura do edredão que o tapava. Sentou-se na cama meio estremunhado e esfregou os olhos. Tentando rever o sonho, compreendeu perfeitamente que a sua mãe nunca mais o voltaria a visitar. Teve pena porque, das poucas vezes que se lembrava de a ter visto, sentia-se bem. Pensou depois no pai, nos avós, na Ana Rita e teve um longo bocejo. A mãe podia ter partido, mas havia ainda muita gente no seu pequeno mundo. Gente que não se tinha despedido e que gostava muito dele. Olhou para o lado direito e viu, sobre a mesa-de-cabeceira, um brinquedo que não tinha visto antes. Um avião vermelho e branco com três asas. Isso queria dizer que o pai tinha chegado. Achou o avião tão estranho que pegou nele para o observar com mais atenção. Até que alguém abriu a porta do quarto e lhe veio dizer que era hora de ir para a escola.

(Publicado na colectânea de contos “Histórias de Amanhecer”. Papiro Editora, 2006)

domingo, 7 de dezembro de 2008

UM RIO, DUAS FAMÍLIAS


O “catamaran” atravessa o Tejo no seu roncar aparente de vagar, que o faz andar depressa. Deixou o Seixal às 6:15, como previsto no horário. À medida que a penumbra do amanhecer toma conta do estuário, a luz artificial da embarcação vai ficando cada vez mais fraca com a entrada pujante dos primeiros raios de Sol através das janelas. Algumas pessoas lêem as primeiras notícias do dia para passar o tempo. Outras cruzam os braços deixando tombar as cabeças para a frente, na tentativa de recordar o sono interrompido. Há vários anos que Ana Rita vê o dia nascer no meio do rio. Tantos que já lhes perdeu a conta. Pelo canto do olho tenta ler os títulos das notícias do jornal do homem do lado. Depois ajeita o saco vazio das compras que ainda vai fazer à praça, antes de se dirigir à casa onde trabalha. Uma casa onde começou como mulher-a-dias, mas que, com o passar do tempo, foi acumulando as tarefas de cozinheira, ama do pequeno André e governanta. As três casas que fazia como mulher-a-dias deram lugar a uma só, com a inevitável melhoria de pagamento. O tempo ensinou-a a dedicar-se àquele espaço de pai e filho sem mulher como quem adopta uma segunda família. No princípio dos seus 40 anos não encontrava muitas razões para se queixar da vida. Estabeleceu com ela uma relação de esforço e de trabalho com um retorno equilibrado. Os seus dois filhos eram já homens. Um estava a acabar o curso de engenharia no Técnico e o outro dava os últimos passos no ensino secundário. O marido era condutor de autocarro na cidade. Homem dedicado ao trabalho, uma vez por semana gostava de deitar abaixo umas “litradas” de cerveja com os amigos. Nessas noites, Ana Rita, em vez de maldizer os efeitos nefastos da bebedeira, agarrava no corpo do seu homem, deitava-o e aproveitava a sua momentânea debilidade para dar largas ao seu desejo. Umas vezes seguindo instruções do “Correios Sentimental” de ma publicação feminina que costumava ler, outras por intuição própria, o certo é que nessas noites chegava a ter dois e três orgasmos. Por isso não se lamentava quando ele não esperava por ela, ou simplesmente nem conseguia comparecer ao encontro dos corpos.
O seu patrão era uma rapaz uns anos mais novo, extremamente educado e atencioso, mas completamente distraído. Podia-lhe ter roubado a casa toda, móvel por móvel, que ele nunca iria perceber. Talvez por trabalhar nos aviões não conseguisse muitas vezes trazer a cabeça para a terra no regresso. Em certos aspectos era ainda uma criança e isso fazia-a ter ainda mais ternura por ele e pelo filho, com toda aquela tragédia da D.Mariana.
Segundo diria uma tia de Ana Rita, que tinha nascido em Benguela, quando uma criança fica órfã muito nova é responsabilidade de toda a tribo a sua educação e amparo. Em adulta será sempre importante para os destinos da aldeia. Era uma das poucas histórias de África de que Ana Rita ainda se lembrava. Tinha dezasseis anos quando se deu a descolonização em Angola. Apesar das dificuldades que se seguiram após a fuga para Lisboa com os pais e os irmãos, não se cansava de agradecer a Deus todos os dias por não ter lá ficado. África para ela era a fome, a guerra e a injustiça a martelarem os dias das pessoas. Um pesadelo que não queria voltar a ter. Restavam-lhe breves recordações da infância e algumas histórias de tribos que nunca tinha visto, contadas pela geração mais velha. Como era oriunda de África, o patrão trazia-lhe de vez em quando um pano, uma pulseira ou ma estatueta de madeira, de cada vez que voava para aquele continente. Ela fingia-se feliz e aceitava com um grande sorriso. Não tinha coragem para lhe explicar que não queria saber de África para nada, com medo de o ofender.
Se a tia de Benguela tinha ou não razão nas histórias que contava, era difícil de dizer. Para Ana Rita as macumbas, as limpezas dos maus espíritos e as parábolas que a tia contava só deveriam ser levadas a sério se assim o entendesse o seu bom senso. A tia por vezes acusava-a de ter um “coração português”, como se fosse uma ofensa para a sua raça. E depois? O que é que estava escrito no seu bilhete de identidade ou no cartão de contribuinte? Que Ana Rita era uma cidadã da República Portuguesa. Era isso que ela era. Aqui trabalhava, aqui pagava impostos, aqui votava nas eleições. Não queria ser outra coisa. Por outro lado, aquela história das crianças que ficavam órfãs muito cedo fazia algum sentido. Em África como em qualquer outra parte do mundo. Daí a dedicação ao pequeno André como a um terceiro filho. Não era só vesti-lo, dar-lhe a comida e ficar com ele em certas noites quando os avós não estavam disponíveis e o pai fora. Era brincar com ele quando voltava da escola, contar-lhe histórias para adormecer e emprestar-lhe o colo, o peito, as festas e os beijos quando ele precisasse.
Quando desembarcou em Lisboa já o Sol iluminava todos os cantos do Cais do Sodré. Na noite anterior o André tinha ficado em casa da avó, por isso não foi preciso dormir em casa dele. Mas o pai chegava àquela hora e, depois e descansar, ia ter fome. Era preciso fazer uma sopa, ou uma salada e um bife para quando ele acordasse. Ana Rita deixou o cais de desembarque e misturou-se com a multidão a caminho do Mercado da Ribeira.


(Publicado na colectânea de contos “Histórias de Amanhecer”. Papiro Editora 2006)

Interferência #7

sábado, 6 de dezembro de 2008

O ROSTO DE MARIANA


A manhã levantava-se devagar, meio envergonhada de luz, debaixo de uma enorme carga de água. Quando o BMW se deteve próximo de uma paragem de autocarro, ainda a Rua Maria Pia estava deserta de tráfego e de pessoas. Uma mulher saiu e fechou a porta do carro, ficando a ver o monstro de chapa azul escura desaparecer para os lados de Alcântara. À sua frente subia a Rua Correia Teles, uma elevação breve mas bastante acentuada que ia estabilizando à medida que atravessava a quadratura do bairro de Campo de Ourique. Para trás, a rua que descia, um dos muitos acessos que conhecia de cor, e que desaguava no caos urbanístico do Casal Ventoso. Noutras alturas teria descido aquela rua no automático até à porta de um «dealer», onde compraria mais uma dose de heroína. Para a pagar havia a receita obtida numa noite de prostituição numa rua de Campolide. Sem saber bem porquê, naquela manhã resolveu esperar um pouco à chuva, antes de descer. Como não tinha nenhuma protecção além do blusão surrado de ganga que lhe disfarçava o frio, a chuva depressa tomou conta dos cabelos, pingando pelos caracóis castanhos em breves fios prateados que a manhã iluminava. Na rua deserta a mulher perguntava-se: “ O que é que eu ando aqui a fazer?”. Uma pergunta mil vezes formulada que outras mil se manteve isolada de resposta. Um absoluto e enorme “nada” do tamanho da solidão daquela rua. Chamava-se Mariana. Sabia que era dependente de heroína, embora já não se lembrasse há quanto tempo. Sabia que tinha um filho que entregara à guarda do pai. Um papel assinado no Tribunal de Família num dia de Sol. Esforçava-se para se tentar lembrar há quanto tempo o tinha feito, sem êxito. Podia ter sido há uma semana, podia ter sido há um mês. O filho deveria ter quatro anos, isso lembrava-se. Tinha sido presa no dia do seu aniversário há não muito tempo. Às vezes tinha saudades dele…Outras não. Esquecia-se que ele existia. Lembrava-se de uma tarde de Sol, sentada na encosta do monte virada para o vale de Alcântara, a ver ao fundo o Tejo a caminho do mar. Podiam estar os dois numa praia a brincar na areia ou a passear à beira mar… Mas eram cada vez menos as suas certezas, cada vez mais curto o seu espaço de lembrar. Por isso decidiu ficar ali mais algum tempo à chuva, tentando alargar esse tempo. Antes que a comichão chegasse, ou as dores que lhe queimavam as entranhas e a punham a urrar como um animal selvagem. Naquela manhã, a chuva forte que caía e limpava as ruas, sem o saber, limpava também o seu corpo, amolecendo as chagas que ali começavam a habitar, atenuando os nódulos negros nos braços, nas pernas, e em todos os espaços onde a agulha se introduzia sem pedir licença. Como não conseguia roubar, prostituía-se. Naquela noite tinham sido quatro, cinco vezes que a sua boca havia tirado o molde de sexos masculinos solitários, erguidos na sombra do interior dos automóveis. O corpo não. Apenas a boca, os lábios, as mãos. Não era capaz de vender o corpo porque já não o tinha. Desaparecia um pouco todos os dias como se um ser estranho instalado no seu ventre a fosse comendo devagar. No reflexo da montra de uma loja confirmava a sua transparência, não se lembrando sequer se alguma vez tinha sido bonita. Certezas, tinha duas. Precisava de heroína para viver e era uma puta. Não havia dúvidas sobre isso, nem sequer desconforto. Apenas uma miséria vegetativa feita de nada e de coisa nenhuma que não parava de crescer. Quantas vezes tinha dito a si própria, olhos na seringa, que aquela seria a última vez? Tantas quantas as que continuou a mentir
Chamava-se Mariana e era bem possível que em tempos tivesse sido bonita. Agora era um pequeno aglomerado transparente de pele e ossos que se passeava à chuva pela Rua Maria Pia às seis e meia da manhã. Ia descer, comprar, consumir. À noite, voltava a sair para se vender numa rua escura de Campolide, fazer dinheiro, para poder voltar a descer, comprar, consumir… Quis chorar por se sentir tão mal, tão sozinha, tão vítima de si própria. Mas tinha-se esquecido de como o fazer. A luz da manhã era agora mais brilhante, mais intensa no cinzento geral das nuvens que haviam abrandado a sua descarga de chuva. As primeiras pessoas começavam a aparecer a caminho do trabalho, agrupando-se de forma automática na paragem do autocarro. Apesar de estarem a alguns metros de Mariana, ninguém a via. Resolveu descer. Que se lixasse o mundo e aquela gente toda num suspiro. É claro que não a podiam ver. Se ela já não se via, não se lembrava de quem tinha sido, não eram os outros que o iam fazer. Naquela manhã ninguém a viu. Só a chuva e o velho blusão surrado de ganga. Ninguém a viu também quando descalçou os sapatos e resolveu atravessar a rua chapinhando nas poças de água. Só o motorista do autocarro reparou no seu rosto tranquilo e nos caracóis castanhos quando não conseguiu parar. E continuou a ver aquele rosto nos seus sonhos e nas sessões com o psicólogo da empresa durante alguns meses. Foi o último e o único a ver o rosto de Mariana, o único a lembrá-lo depois de morrer. Um dia comprou flores e foi colocá-las na sua campa. Desde aí, nunca mais voltou a sonhar com ela…

(Publicado na colectânea de contos “Histórias de Amanhecer”. Papiro Editora 2006)

Interferência #6

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

VOO NOCTURNO


Quando a morte passa perto de nós, ficamos com a sensação de andar distraídos há muito tempo. Paramos para pensar e repensar milhares de assuntos, como quem atravessa um túnel, chegando ao outro lado transformados em qualquer coisa muito diferente do que éramos.
Demora cerca de 11 a 12 horas para atravessar o continente africano num eixo Sul – Noroeste, de Joanesburgo a Lisboa. Pelo caminho, noite fora, são muitos os espaços de tempo vazio em que nada acontece no cockpit. A velocidade de cruzeiro do avião e o silêncio quase permanente das comunicações de terra deixam-nos as estrelas como única companhia. É nestas alturas que se pode pensar em todas as coisas, as mais insignificantes, e as outras.
A Mariana morreu há três meses e eu ainda não arranjei maneira de explicar ao meu filho porque é que a mãe nunca o foi visitar. Como é que se explica a morte a uma criança de quatro anos? Eu próprio não me lembro do que é que me disseram quando o meu pai caiu com o avião dele em Angola. Sei que não ouvi nenhuma das palavras da minha mãe, embora conseguisse ler nelas o sentido total da tragédia que acabava de nos entrar pela porta adentro. Parecia que o mundo tinha acabado naquele dia. Tinha sete ou oito anos, estava ainda na escola primária. Embora não visse o meu pai muitas vezes, sempre me senti bem ao pé dele. Quando partiu para a última comissão no Ultramar, não me acordou. Não gostava de despedidas, por isso fazia-as em casa. Na cabeceira da minha cama deixou-me um avião de miniatura que ele mesmo tinha montado. Um “Fokker” Dr. II triplano, o mesmo modelo do Barão Vermelho pilotado durante a I Guerra Mundial, vermelho e branco, com a cruz da Força Aérea alemã pintada nas asas. Guardo esse avião até hoje, como a única coisa que me faz lembrar que alguma vez tive um pai. Isso e uma medalha em forma de cruz, semelhante às do avião, que um velho fardado da Marinha me pendurou no peito no Terreiro do Paço, num 10 de Junho cheio de militares, fanfarras, discursos, viúvas e órfãos como eu. Sempre entendi que devia dar a miniatura do “Fokker” ao meu filho e sempre me recusei fazê-lo. Talvez porque no meu íntimo acreditasse que isso implicaria a minha morte. Uma superstição que, tal como todas as superstições, nascem na terra de ninguém e tomam conta de nós, às vezes de uma forma absurda.
A última marca sobre território de Angola está assinalada na noite pela chama dos poços de petróleo de Cabinda. Segue-se o Congo e o Zaire quase ao lado um do outro. O avião do meu pai caiu algures para Leste, nas terras da Lunda. Nem um nem outro foram alguma vez encontrados. Quando estava a terminar o liceu, meteu-se-me na cabeça a ideia de ir lá à procura. Alugava um jipe, contratava um guia e voltava com um pedaço de chapa do Fiat, um osso ou o capacete de voo. Qualquer coisa para que a minha mãe e os meus irmãos pudessem olhar, tocar e ter memória. Qualquer coisa que, de alguma maneira, o fizesse voltar a casa… para lhe poder agradecer o avião que me deixou na cabeceira antes da última partida.
Lá em baixo a noite escurece o solo, vendo-se esporadicamente pequenas linhas de fogo. São as queimadas da vegetação seca a preparar futuros espaços de pastoreio. Atravessamos o Golfo da Guiné na direcção de Abidjan, Costa do Marfim. Direcção: Senegal. Depois o deserto do Sara. Um brilho metálico e frio mergulhado no azul aveludado da noite. Visível na planura da sua aridez por uma Lua Cheia prateada, que por instantes nos faz esquecer a fome, a sede, a doença, a guerra e tantas outras tragédias que assolam há décadas o continente mártir. A imagem do deserto fez-me lembrar outra vez a Mariana. Lembrei-me de um tempo em que tudo corria bem, em que éramos só nós dois. Um fim-de-semana no Algarve, a praia, o fazer amor entre as dunas abraçados pelo vento, embalados pelo bater das ondas. Julguei ser capaz de resolver o seu problema. Julguei que um filho podia mudar definitivamente o rumo da sua vida. Enganei-me. Nada aconteceu como eu julgava que iria acontecer. Na manhã em que a vi no Tribunal de Família para receber a custódia do miúdo, percebi. As nossas vidas circulavam por estradas diferentes. Ela na mesma estrada que o meu pai, anos antes. Embora com encenações diferentes, seguiam a mesma rota, o mesmo caminho minado, pronto para lhes explodir na cara a qualquer momento. Nem por isso os deixei de amar e de transportar comigo a sua memória até ao fim dos meus dias. As montanhas do Atlas desenhadas no radar servem de último sinal de trânsito que me avisa estar a chegar ao fim do continente africano. Em breve começam os procedimentos de descida a caminho de Lisboa. O discurso da assistente para os passageiros dá-lhes as últimas informações antes da aterragem. Horário no destino, diferença horária do ponto de partida e temperatura. Mais uma vez lembra-se que devem apertar os cintos. Quando a manhã se levanta, a cidade abre-se à minha frente, espraiada ao longo do rio em tons de azul-turquesa. A luz do Sol e a aterragem recarregam-me a adrenalina. Como se tivesse acordado depois de uma noite normal de sono. “Trem em baixo. Flaps!” O comandante olha-me de relance, certificando-se da minha concentração. A aterragem é minha. Chamo a Torre. “Autorizado a aterrar na pista 03”. A segunda circular passa debaixo da barriga do avião quase a roçar o solo. Ainda não há grandes filas de carros. O toque do Airbus A-340 na pista é seguro e normal, sem preocupações. Segue-se a ruidosa inversão de motores para complementar a travagem do aparelho. Lá atrás ouvem-se palmas. Duzentas e setenta almas regressam à Terra ao fim de quase 12 horas de voo.
Quando chegar a casa vou buscar a miniatura do “Fokker” triplano e vou dá-la ao meu filho. Ele que faça o que quiser com ela. Já perdi o medo de morrer como o meu pai. Depois da morte da Mariana libertei-me das superstições. Não há repetições na vida, apenas factos. Coisas que acontecem porque acontecem, muito simplesmente. Do meu pai vou guardar apenas a medalha do 10 de Junho. Para não me esquecer do porquê da sua morte.
Entro no estacionamento e corto os motores. Termino o parking check-list . O voo acabou, podemos ir para casa.

(Publicado na colectânea de contos Histórias de Amanhecer, Papiro Editora 2006)

Interferência #5