sábado, 27 de setembro de 2008

MEMÓRIAS TROPEÇADAS

Todos os dias de manhã, quando saio para o escritório e atravesso a Mata de Monsanto para fugir ao trânsito, passo por uma paragem de autocarro onde está sempre a mesma mulher como que acabada de sair de um buraco, e que trabalha sem horário fixo aliciando os que por ali passam a passar não sei bem o quê com ela. Apesar daquele ar de guerreiro Normando pouco antes do desembarque no próximo território a invadir, o certo é que clientela não lhe falta. Há tipos que vão lá…e pagam.
Lembro-me de há muitos anos passar todos os dias na estação do Rossio onde encontrava um homem de olhar vago, sentado num banco de madeira, mãos a tremer em volta de um cartaz: “Doente de uns ataques” – pendurado por um cordel ao pescoço para não cair. E muita gente dava-lhe dinheiro…
Doente de uns ataques, um dia atrás do outro, pessoas para cima e para baixo, ruídos do comboio a chegar e a partir, estações umas atrás das outras e, doente de uns ataques, mais um dia, mais uns comboios, mais uns meses. Doente de uns ataques, que não se sabe bem como ou sequer o que sejam, apenas que aconteciam, doente de uns ataques quando os dias se tornam azedos e não há nada de que queixar, ninguém para culpar. Doente de uns ataques e a sombra do Tempo a fazer força nos ombros, a tirar velocidade às pernas e a empurrar para o fim. Doente de uns ataques e PORRA!! Que fizemos nós afinal enquanto cá andámos, que terra é esta, quem são estas gentes e o retorno da perplexidade de crianças quando começámos a espreitar o mundo. Lembro-me da primeira vez que vi um grupo de pessoas a cantar os “parabéns” numa festa de aniversário (talvez a minha família) e de como tudo me pareceu estranho, assustador. Tudo, ou quase, me fazia confusão, talvez por ser novidade e não estar habituado. Noutra escala já adulto, tudo me continuou a fazer confusão. Não me consigo habituar à Vida, não me consigo familiarizar com a Morte.
Volto para o buraco de mim a uma velocidade cada vez maior e preencho obsessivamente todas as folhas em branco que encontro com estas palavras, tenham elas sentido ou não… Doentes de uns ataques estamos todos sem saber a origem do mal. Doentes de uns ataques, indiferentes aos que sobem e descem como quem parte para lado nenhum. Doentes de uns ataques, os ruídos, as sensações, os conceitos, o Amor apertado de espaço para se poder expandir, as estações do ano a andar á roda , á roda sem parar. Doentes de uns ataques, de ataque em ataque até ao ataque final…
ARTUR

Desenhos de um Diário Informal: #4 (“Ab Ovo”)


quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O REGRESSO DAS TERTÚLIAS

O REGRESSO DAS TERTÚLIAS


É já no próximo Domingo, dia 28 deste mês, que retomaremos o convívio das Tertúlias na Livraria Braço de Prata. Abriremos a nova época com Afonso de Melo, escritor e jornalista, detentor de um vastíssimo currículo em ambas as áreas. Para informações mais detalhadas queiram por favor consultar o blog As Voltas da Tertúlia.
A sessão terá início a partir das 15 horas.

Desenhos de um Diário Informal: #2 ("vejam")


sábado, 20 de setembro de 2008

O COWBOY CANTOR


Saudemos irmãos o fim do Verão com fogueiras na praia e banhos nocturnos no escuro do mar. Saudemos o Outono que se aproxima com canções solitárias de solitários que se juntam como membros de um culto antigo que ninguém consegue definir ou lembrar. Olhemos para trás para o passado e mantenhamos viva a chama da Liberdade que nos fez viver. Olhemos para o Passado sem remorso nem saudade, mas com força, como quem mira um espelho... Saudemos irmãos o nosso reflexo porque...
Não sei como aconteceu...
O cowboy cantor olhava para mim,
E afinal, ele era Eu
Era Eu
O Tempo é eterno e o tempo é sempre Presente. O Ser nunca morre e tem a capacidade de lembrar, de viajar no buraco negro ao tempo em que foi...Total, Cósmico, Feliz !!!???
Ou outra coisa que lhe queiram acrescentar.

ARTUR

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

JÁ ME LEMBREI (título provisório)

Não é por mal, nem por vingança. Para dizer a verdade nem eu sei muito bem porque razão é que o faço. Por qual motivo me preocupo em aliviar o fardo a alguém que me é praticamente um desconhecido. Alguém com quem nunca houve nenhum tipo de intimidade, de afecto, de qualquer coisa parecida com a relação obrigatória que os seres costumam ter quando são responsáveis por ter dado vida a outros seres. Pelo menos os bichos… A mesma cara, a mesma expressão com que olho para a enfermeira é a expressão utilizada quando um médico me perguntava: “E na família? Tem antecedentes? Pai, Mãe? “ Sei lá dos antecedentes, ficaram escondidos no sótão de alguém que ninguém conhece, na memória de quem não se lembra. Sei lá, pôrra. Trata-se de informação menos volumosa que a de um órfão. Se os pais dele morreram novos, a história clínica não teve tempo para se desenvolver. Mas a tua, não. Cresceu, desenvolveu-se, mas sempre longe do meu olhar. Por isso olho para a cara indiferente da enfermeira do lar com a cara indiferente que me é permitido exibir e, tremulamente balbucio uma banalidade qualquer enquanto lhe faço chegar uma nota amarrotada às mãos. “Veja se ele fica confortável, se não apanha frio, se…” E desvio o olhar dos olhos dela como se estivéssemos a ensaiar uma peça ainda com o guião à frente dos olhos. Não houve tempo de decorar textos nem de banalizar comportamentos. Ao menos os bichos não fingem, não fazem ensaios, não se interrogam sobre o sentido da existência. Morrem e pronto. Enquanto mexem, tudo fazem para se manter de pé. Depois caem para o lado resignados.
Se não consigo trocar duas palavras contigo quando te visito é porque nunca me deste nenhum texto para eu ensaiar, não me convocaste para nenhuma das tuas representações. Se não te consigo tocar é porque me esqueci de como se faz, esqueci-me se alguma vez me tocaste. Não é por vingança nem por indiferença. É apenas o resultado consequente do nosso passado. Um tempo nebuloso onde praticamente não nos vimos, não nos tocámos nem nos conhecemos. Se insisto em vir aqui visitar-te será por alguma razão desconhecida que me empurra, um princípio longínquo de solidariedade. Tal como um comandante em guerra, que não deve deixar nenhum dos seus para trás no momento da retirada. Esqueci-me de quem és quando olho para o teu rosto acabado, sulcado por linhas e linhas de alegrias e tristezas como o rosto de todos os velhos. Quais foram, escapa-me, tal como me escapa todo o sentido da tua vida, o rumo, o sumo, o Ser.
Limito-me a sentar-me na cadeira ao pé da tua cama e gerir o silêncio. Isso lembro-me perfeitamente como se faz. Gerir a ausência, manipular as contas do vazio no dia dos anos, no Natal, sempre. E a partir de certa altura toda a solidão faz sentido, porque se não fizesse era indiferente. Rebentar de solidão é tão estúpido como rebentar de diarreia ou de outra coisa qualquer. Está lá e não arreda. Mais vale aprender a viver com ela como um casamento católico infeliz.
Não sei porque o faço mas há algo em mim que me impede que sejas entregue ao teu destino. Há algo em mim que entende que deves morrer com dignidade, com aquela dignidade com que todos devíamos morrer. Confortável, com o mínimo de dor e tranquilidade. Não é por mal nem por vingança. É pela indiferença que não me consegues ser indiferente. É pela raiva que não te conseguiria odiar mesmo que quisesse, é por ti ou por mim ou por outra coisa qualquer, mas… não vou permitir que partas em total solidão.

ARTUR GUILHERME CARVALHO

ÉS A NOSSA FÉ


ÉS A NOSSA FÉ

Edgar Pêra

Portugal, 2004

Tendo pensado inicialmente em acompanhar um clube pequeno que fizesse uma boa prestação na Taça de Portugal, e que eventualmente chegasse à Final, em 2002 a realidade imitou a ficção. O Leixões chegava à Final da Taça de Portugal com o Sporting. A este trabalho documental o autor chamou “comentário ou uma interpretação sonora das imagens captadas nas bancadas, de costas para o relvado”. De facto, neste documentário sobre futebol os protagonistas são precisamente aqueles que lhe dão vida, ou seja, os adeptos. Não há nenhuma imagem do jogo propriamente dito nem nenhum destaque de jogadores. Acompanhando sempre as pessoas em torno do ritual do jogo, o filme assinala essa metamorfose que transforma o próprio comportamento lúdico num espectáculo em si. A individualização do espectador que se transforma numa espécie de “massa encantada”, transformando ao mesmo tempo a sua personalidade em favor de um colectivo. Tudo isto decorre no processo de um jogo que começa muito antes do apito inicial do árbitro. Há todo um ritual prévio de “peregrinação” que começa a caminho do jogo exibindo uma série complexa de signos etnográficos (da exposição das cores do vestuário às palavras de ordem) que antecipa um hiato na vida daquelas pessoas, como se entrar no estádio fosse a encenação mágica de um outro mundo fora de todos os quotidianos.
No jogo, as pessoas estão com uma presença concentrada, focadas num só objectivo, ansiosas por explodir no momento do golo. E é toda esta transfiguração que, decorrendo ao longo do filme regista não só os momentos de fanatismo como também de extrema libertação, exorcizando-se desse modo a frustração de todos os dias. Religioso, fanático, incondicional do seu clube, o adepto é um bilhete de identidade dos nossos dias, da sociedade em que vivemos. É ele que apoia, alimenta e faz viver uma pesada e caríssima indústria que pouco ou nenhum respeito lhe tem. No filme de Edgar Pêra ficam registados comportamentos e rituais que nos acompanham desde a Idade da Pedra. A única diferença está entre os objectos de culto e reunião que vão mudando consoante as épocas. O que não muda é a necessidade de comunicação, de liberdade, de dedicação e de exorcismo que a espécie humana necessita para manter à tona da água a ténue esperança acinzentada pela própria incompetência de gerir os seus dias.

ARTUR GUILHERME CARVALHO

Le Panache de Monsieur McCork

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Alfarrábio Imaginário

Alfarrábio imaginário
Em caderno imaginoso
É mirabilia & maravilha
Ou, de redonda, enxovia?

domingo, 14 de setembro de 2008

NOVO ROMANCE DE DAVID SOARES


Apresentação do romance, Lisboa Triunfante (Edições Saída de Emergência), no próximo dia 4 de Outubro (Sábado), às 17H00, no Fórum Fantástico 2008 (Faculdade de Belas-Artes de Lisboa).

Disponível para pré-venda, em duas capas diferentes.
Lisboa Triunfante é um romance épico sobre a rivalidade entre duas figuras misteriosas, cuja contenda milenária se cruza com a história da capital portuguesa. Desde as origens pré-históricas de Lisboa até aos anos turbulentos que antecederam a implantação da República, passando pela elevação da cidade a capital do Reino por Afonso III e pela construção enigmática do Mosteiro dos Jerónimos, a galeria de personagens que dão vida a Lisboa Triunfante contém figuras como Frei Gil de Santarém, D. João V e Aquilino Ribeiro. Reunindo elementos de romance histórico e fantástico, este é o livro definitivo sobre uma Lisboa mágica, que possui tanto de reconhecível quanto de maravilhoso. Lisboa Triunfante é um triunfo de imaginação.

Apresentação realizada pelo escritor e cineasta António de Macedo.

Mais informações em:
Sonho de Newton
Fórum Fantástico
Saída de Emergência

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

OVAÇÃO

E agora pedia uma salva de palmas para o João Matos, ilustre colaborador deste blog, que nos fez o favor de ocupar os tempos mortos deste último Verão com vários desenhos, bonecos, expressões plásticas de um desassossegado que não pára...e além disso é parecidíssimo com o Fasssbinder.........CLAP,CLAP, CLAP, CLAP,CLAP, CLAP......... ovações dispersas, "Bravo", "Muito Bem", "BIIIIIS".....CLAP,CLAP,CLAP,CLAP,CLAP,CLAP, CLAP.... motins no segundo balcão, invasões de palco para obtenção à força de autógrafo.......CLAP,CLAP,CLAP,CLAP,CLAP,CLAP,CLAP..... Obrigado, já chega. Vão pela sombra e conduzam devagar.
Um abraço João...CLAP,CLAP,CLAP,CLAP,CLAP,CLAP, etc,etc.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008


CORRUPÇÃO
Realizador: Não tem.
Portugal, 2007


Num país pobre de recursos onde a distribuição da riqueza é profundamente desequilibrada, asfixiado por uma pesada e gigantesca máquina fiscal e burocrática, a corrupção encontra o terreno ideal para se enraizar e expandir. Instalada no quotidiano espalha-se a todos os sectores de actividade de uma sociedade. É claro que o futebol não pode ser excepção, nem o nosso país a única vítima desta praga. O futebol, os seus bastidores e o lado mais negro do seu espectáculo representam na sociedade a metáfora deste cenário pouco dignificante e omnipresente. Daí que qualquer argumentista interessado em escrever um filme sobre corrupção não tenha nenhuma dificuldade criativa a não ser a de escolher. A realidade “transborda” a ficção…
Vem tudo isto a propósito do filme CORRUPÇÃO, baseado no livro “Eu Carolina”, uma selecção de memórias de Carolina Salgado. Polémico desde mesmo antes de iniciadas as filmagens, o filme ganhou logo uma primeira batalha, ou seja, a da publicidade. As memórias da ex-companheira do Presidente do F.C.Porto levantaram ondas de choque por toda a sociedade portuguesa levando mesmo a própria Justiça a ver-se obrigada a actuar abrindo novos processos e reabrindo antigos com base em declarações proferidas nesse mesmo livro. Cavalgando esta onda providencial, o filme surge como uma consequência natural dos acontecimentos, abrindo-se uma excelente oportunidade no cinema de abordagem deste tema. Marcado desde o início pela polémica, os trabalhos do filme acabariam por encerrar da mesma forma com o realizador João Botelho a recusar-se a assinar o filme que rodou mas a que o produtor quis dar uma versão diferente no trabalho final. Circo, Carnaval e “Regabofe”: eis o futebol; eis o cinema; eis quase tudo o que se vai fazendo por aqui. Senão vejamos:
Apesar de baseado no já referido livro, o filme tenta não imitar a realidade para evitar as inevitáveis “chatices”processuais dos visados. Mas tirando a mudança dos nomes tudo é igual, sem originalidade nenhuma, inclusive a capa do livro. O mesmo título apenas com a troca de “Carolina” por “Sofia”, a cara da actriz na mesma pose.
Apesar de contar com um excelente elenco de actores, as interpretações dificilmente se conseguem libertar dos “clichés” habituais, dos estereótipos, sem encontrar espaço para desenvolver as suas personagens. Demasiado preso à realidade, materializado pelas declarações de Carolina Salgado no seu livro, o filme não consegue ganhar forma, expandir-se, ser autónomo, sendo esse o princípio e o fim da sua pobreza.
Em termos simbólicos o filme assinala o registo de um tempo, bem como o nascer de um outro em que as instituições se viram obrigadas a agir sobre o fenómeno, quanto mais não fosse para dar uma satisfação à sociedade que regulam. Ao querer tornar-se um protesto de indignação, torna-se patético. Primeiro porque a corrupção não é exclusiva de um sector, uma região ou um clube, nem no espaço nem no tempo. É omnipresente e leva séculos de existência. E depois porque as denúncias ou as acusações retiradas do livro de Carolina Salgado, retratando um aspecto desse mundo, são proferidas por alguém que nele viveu, para ele contribuiu e que só resolveu denunciar por ter sido afastada, por ter deixado de fazer parte dele. Ao contrário do filme, em que Sofia decide colaborar com as autoridades enquanto elemento infiltrado.
Em termos de construção do argumento também não vamos longe na fraqueza de razões. Num bar de alterne onde Sofia trabalha, é dada a ideia que todas as outras suas colegas têm relacionamentos íntimos com a clientela. Ela não!? A cena da piscina é gratuita, desnecessária e não tem qualquer relação com o resto do filme.
Concluindo. Quis-se fazer um filme sobre corrupção que acabou por se transformar em mais uma batalha de grupos de interesses. Perdeu o cinema. O mesmo já não se poderá dizer de PORTUGAL SA., esse sim, um filme sério, bem construído e bem apresentado da autoria de Ruy Guerra. Um filme pouco publicitado que poucos viram. Vá-se lá saber porquê??
Depois de CORRUPÇÃO e da onda de processos suscitados na sequência das declarações de Carolina Salgado no seu livro, a pergunta legítima é : “As coisas mudaram?” A resposta é : “Mudaram sim. Mas o Circo, o Carnaval e o “Regabofe” continuam.”

sábado, 6 de setembro de 2008

MORETTI : UM IMORTAL DO DESASSOSSEGO





“ Quem fala mal, pensa mal e vive mal.
As palavras são importantes .”

DA AGITAÇÃO AO VAZIO


Descendente directo dos despojos e mitos do Maio de 68, Moretti abre os olhos para o mundo no contexto de uma geração, por um lado perplexa e por outro plena de força e energia, pronta a mudar o estado das coisas ao mesmo tempo que as aprende. A política torna-se personagem central dos seus primeiros filmes. Mas como Maio tinha acabado numa cortina de incertezas e verdades inconclusivas, Moretti atira-se em busca da transparência, da clareza, das certezas por encontrar. Por isso, em vez de ridicularizar a direita, os conservadores e a Democracia Cristã ( o que seria demasiado fácil), resolve fazê-lo com os seus amigos, o seu ambiente, o lado daqueles que ainda procuravam chegar a algum lado.” O que é que falhou ? O que é que se está a fazer mal ? O que é que falta fazer ?” Perguntas básicas e essenciais que percorrem IO SONO UN AUTARCHICO, ECCE BOMBO e SOGNI D’ORO. A geração formada nas ideologias dos anos 60 é-nos retratada numa paralisia aflitiva, cujos espaços de comunicação e de vida se encontram despojados de movimento real. As relações desgastam-se, desfazem-se como cinzas ; os rituais de comunicação, à força de tanto se repetirem, esvaziam-se de sentido . Moretti é um ser errante, um autosuficiente inseguro, um perseguidor obssessivo da essência das coisas que nunca chega ao destino pretendido.
Em ECCE BOMBO, um grupo de amigos combina passar uma noite em claro para assistir na praia ao nascer do dia. Mas o Sol acaba por se levantar nas costas do grupo, no lado oposto... Esta busca frenética e insatisfeita de Moretti nos seus primeiros três filmes, episódios caricatos à mistura, longe de alcançarem alguma conclusão, transformam-se em testemunhos de dor e sofrimento onde, « a vida passa num flash » , como numa cantiga dos UHF. Em vez de pensamentos arrumados, certezas embrulhadas e uma moral padronizada, os filmes de Moretti são interrogações incómodas, caricaturas de desconforto, duvidas que nos obrigam a pensar... Como um espelho que nos é colocado à frente, acompanhado da pergunta : “ O que é que vês ?” Seja o que fôr que cada um possa ver, é unânime que não se consegue agarrar, como areia que escorre pelos dedos. No fim, algumas gargalhadas e uma angústia pesada. A auto-ironia retratava uma geração enganada, desorientada e desiludida. Da agitação do crescimento ao vazio da desilusão, enquanto caminho de aprendizagem.



DO VAZIO Á SOLIDÃO

Os anos 70 são a “ressaca” dos dez anos anteriores. O Paraíso anunciava-se ao virar da esquina, entre um “charro”, uma viagem de LSD e dezenas de jovens nus a correr por um parque verdejante. E tal como Pasolini havia profetizado : “ ...hoje lutam com a policia, amanhã estarão a beijar-lhe o cu. “ Para onde foram todos esses jovens verdejantes ? Ocupar as cadeiras dos pais nas empresas, na política, nas secretarias de Estado, nos jornais, etc, etc. Tornaram-se espirituais, vegetarianos, macrobióticos, yuppies, pais de familia. O mundo resolvia-se mais tarde. De fora ficaram os de boa-fé, aqueles que sempre acreditaram que o mundo se resolvia mais cedo. Sozinhos e desamparados, com o relógio da existência a passar dos 30, caíram no abandono ou, como ultimo fôlego, iniciaram os “anos de chumbo”. Moretti acusa o peso dessa década nos seus dois próximos trabalhos. Em BIANCA através de uma intolerância extrema e castigadora que não perdoa a traidores. Em LA MESSA É FINITA na pele de um amigo preso por pertencer a uma organização terrorista. Moretti está só e desiludido, mas acredita ainda que é possível mudar o mundo, resgatar um conceito de felicidade que se perdeu algures no caminho. Nem que seja à bofetada. Os seus alvos são todos os que ameaçam ou se desviam dos ideais de estabilidade ideológica e sentimental. Os que se venderam à mentira ,à falsidade e à mediocridade merecem morrer. O professor de matemática de BIANCA não resiste à mediocridade nem às contradições dos tempos modernos. O final de BIANCA é um cortejo de confissões em que Michelle solta todas as suas obsessões. As coisas deixaram de ser claras. As pessoas traiem-se, tornam-se más. Obcecado com o pressuposto de uma moral quase elementar, Moretti julga e condena, sem dó nem piedade.
LA MESSA È FINITA, o filme onde sofremos de forma divertida. A solidão do protagonista radicaliza-se. A violência inverte-se, passando de um professor violento para um padre desnorteado e impotente que assiste ao desagregar do mundo à sua volta. A desesperada vontade de compreender os outros dilui-se num universo incompreensível para D.Giulio que vê familia, amigos e o seu próprio passado esmagados pela vertigem da solidão. Uma solidão contagiante que o acabará por possuír também, materializando-se no seu exílio voluntário. D. Giulio parte, cansado e farto do retorno às origens.
E chegamos à síntese dos dois ultimos trabalhos, ou seja, a PALOMBELLA ROSSA. Metáfora do PCI no rescaldo da queda do leste comunista, mosaico estilhaçado de um percurso político generoso, comprometido e empenhado, caricatura dos grandes meios de comunicação, tentativa de compreender o homem nas suas dimensões individual e colectiva... e muito mais. PALOMBELLA ROSSSA utiliza a piscina e um desafio de pólo aquático enquanto espaço encenado de uma história, de um percurso, de uma encruzilhada, de uma consciência que luta desesperadamente na linha de àgua entre o passado e o presente, a respiração e a falta de ar, o ser e o nada... A dificuldade de ser comunista e a necessidade de o ser. Agora que uma parte do mundo caíu, terá caído também a vontade de o continuar a mudar ? O desinteresse começa a entorpecer as consciências. As pessoas deixam de ser cidadãos para se tornarem consumidores. A ganância sobrepõe-se à cidadania. Certo ? Não, enquanto a voz de Moretti continuar a berrar. A berrar sozinha, no monte ou na piscina. Pela razão, pela clareza, pela moral, pela própria mãe...

DA SOLIDÃO COLECTIVA À SOLIDÃO INDIVIDUAL

O velho leão atravessa a década de 90 cansado. A desilusão mora nele mas já não o perturba. Como um corolário lógico das mentes em permanente desassossego, companheira inseparável daqueles que não deixam de pensar. A História segue o seu caminho inexorável, inexplicável e indeterminado, que veda aos seus intervenientes a distância necessária para se poder compreender. Mas estar vivo é estar atento, sempre obcecado em chegar à verdade, mesmo nunca o conseguindo. A inocência dos derrotados fica para trás. A solidão individualizou-se, deixou de ser colectiva tornando-se território exclusivo. Não é possível obrigar os outros a aceitarem as nossas ideias, mas não é por isso que vamos deixar de pensar. Moretti, uma motorizada Vespa e as ruas desertas de Roma ao fim de semana, abrem-nos a porta para CARO DIARIO. O eterno desencantado apresenta-se pela primeira vez reconciliado consigo mesmo. Analisa a sua Itália e os seus amigos afirmando sempre o primado da liberdade, da crítica e da vida. Fechado um ciclo histórico, Moretti reafirma a liberdade e o preço a pagar por ela, a solidão. A solidão enquanto agente de melancolia mas também de energia. Os amigos, os filhos, as manifestações da solidão de cada um. E por fim, um cancro. O repensar da existência e do seu absurdo, as sessões de quimioterapia, os médicos, uma estúpida chuva miudinha num céu cinzento de Roma. Por fim, o milagre de continuarmos vivos sem certezas de coisa nenhuma, enquanto personagens de uma anedota colossal chamada Humanidade.
A intranquilidade e a insatisfação actuam enquanto elementos de análise primordial dos vários tempos vividos por Moretti, quer no caminho do mundo, quer no da sua própria existência. A perseguição das mistificações da linguagem e do absurdo da comunicação tornam a palavra a sua obsessão de estimação. O seu uso abusado, corrompido e repetitivo despoja-lhe o sentido. Por isso “as palavras sãoimportantes”. Um dos seus filmes mais solitários e mais narcísicos, a par com SOGNI D’ORO, foi APRILE. São talvez as duas obras menos conseguidas de toda a sua filmografia. Trata-se de um trabalho que podia ser apresentado em formato doméstico, estilo video familiar. A ausência de ideias para fazer um filme novo, o nascimento do filho e o drama de uma esquerda que se continua a afundar constituem os principais eixos deste trabalho. Nenhuma novidade, nada a assinalar além do bocejo. Como se Moretti ensaiasse qualquer coisa ainda longe da sua forma final. Uma « qualquer coisa» que acaba por surgir de forma brilhante em LA STANZA DEL FIGLIO, consagrando-o definitivamente na galeria dos imortais do cinema europeu.
Para trás fica uma estrada de risco e aventura, desafio e inovação, onde ficaram registadas três décadas. Três décadas de História, política e filosofia de uma Europa agitada, inconstante e incerta que procura a todo o custo uma nova forma continental de existência.


ARTUR GUILHERME CARVALHO


NANNI MORETTI
(Filmografia - realização)
IO SONO UN AUTARCHICO (76)
ECCE BOMBO (78)
SOGNI D’ORO (81)
BIANCA (84)
LA MESSA È FINITA (85)
PALOMBELLA ROSSA ( 89)
CARO DIARIO (93)
APRILE (98)
LA STANZA DEL FIGLIO (01)
IL CAIMON (06)