sexta-feira, 29 de agosto de 2008

UM NOBEL PARA UM CLÁSSICO



Equivalente ao Prémio Nobel da música, a banda Pink Floyd ( ex aequo com a soprano norte-americana Renée Fleming), recebeu das mãos do rei Gustav da Suécia o prémio Polar.
Clássicos do rock, apreciados quer na vertente popular quer na mais erudita, esta banda conquistou há muito o seu lugar no Panteão dos clássicos, revolucionando o Rock da perspectiva psicadélica à perspectiva sinfónica. Uma das melhores de sempre. Pink Floyd forever.
ARTUR

ILHAS SEYSCHELLES EM TRÊS ÂNGULOS




(Fotos de Sofia P. Coelho)

Iluminarium: #30

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

EÇA INÉDITO

De comboio até Jerusalém, pelos trilhos da memória

Grande parte dos textos de Eça de Queirós publicados durante a sua vida surgiu em jornais, desde a redacção do Distrito de Évora, passando pelas Farpas e outros periódicos portugueses. Porém, é nas páginas da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro que encontramos a maior concentração de artigos do autor – contos, crónicas, prosa de Fradique Mendes – divulgados pela imprensa brasileira entre 1880 e 1897. Os textos daqueles dezassete anos foram, após a morte de Eça, coligidos em diversos volumes, preparados primeiro por Luís de Magalhães e mais tarde por outros organizadores. Em 1909 Magalhães reuniu um conjunto muito heterogéneo de textos – díspares pelos intervalos entre as datas de escrita, pelos géneros literários, pelos lugares de publicação – sob o título Notas Contemporâneas. Nesta colectânea encontramos, entre outros escritos de Eça, o relato de viagem «De Port-Said a Suez» (Diário de Notícias, 1870), um prefácio para o livro de versos dum autor quase desconhecido (Aquarelas, de João Dinis, 1889), e a biografia-homenagem a Antero de Quental «Um génio que era um santo» (Antero de Quental – In Memoriam, 1896), além de vários textos provenientes da Gazeta de Notícias. Deste jornal saiu, aliás, o título do volume, sugerido pela rubrica «Notas contemporâneas», que encabeçava em Dezembro de 1892 a crónica «Os grandes homens de França», assinada «João Gomes», pseudónimo por poucos conhecido, usado por Eça de Queirós noutras notas – as «Notas do Mês», da Revista de Portugal, em 1890 e 1891.
Contudo, nem Notas Contemporâneas nem as restantes antologias póstumas esgotavam o levantamento das crónicas de Eça publicadas no jornal carioca. Em 1990, Elza Miné, investigadora brasileira dedicada ao estudo da colaboração literária de escritores portugueses na Gazeta de Notícias, revelou que a «Carta a Bento de S.», d’ A correspondência de Fradique Mendes, resultara da transformação, por eliminação de alguns trechos e desenvolvimento de outros, de uma crónica sem título saída na Gazeta. Sabendo-se que as restantes «cartas» de Fradique tinham sofrido um processo idêntico de rescrita e reutilização por parte do autor, ficava aberta a possibilidade do reencontro com outras peças queirosianas esquecidas.
Durante a preparação do dossier para a Edição Crítica de A correspondência de Fradique Mendes , procurei reunir todos os materiais referentes a Fradique. Foi assim que, pesquisando a primeira edição do Eça de Queirós – In Memoriam, encontrei um velho hors-texte, reprodução de um recorte de jornal colado sobre uma folha de papel, onde os acrescentos nas margens e a numeração, do punho do autor, em tudo semelhantes a outros recortes usados por Eça na elaboração da sua obra fradiquista, confirmam a legenda «A Correspondência de Fradique Mendes – Uma prova emendada por Eça de Queiroz». A comparação com as cartas de Fradique publicadas em 1900 permitiu encontrar o texto transformado: tratava-se da carta «XI – A Mr. Bertrand B. – Engenheiro na Palestina», primeira da série inédita do volume de 1900, uma vez que as dez anteriores tinham saído previamente em diversas publicações e as que se lhe seguiam estavam todas identificadas como resultantes do reaproveitamento de textos jornalísticos: esta era considerada como sendo a única original do livro de 1900.
O tema desenvolvido, a inauguração do caminho-de-ferro entre Jafa e Jerusalém em 26 de Setembro de 1892, permitia a datação aproximada do texto entre Setembro e Outubro daquele ano. Tratava-se agora de saber de que publicação provinha o recorte emendado. Uma vez que não devia tratar-se de um jornal português, pois Eça dedicava então a maior parte do seu tempo a escrever para a Gazeta de Notícias, pedi a Elza Miné que me possibilitasse verificar a sua colecção de microfilmes do jornal carioca. A sua generosidade ao enviar-me o microfilme permitiu resolver o enigma.
Na primeira página do número da segunda-feira 17 de Outubro de 1892 da Gazeta foi publicado o segundo folhetim do conhecido conto «Civilização» e, logo abaixo da assinatura de Eça, a rubrica «Notas Contemporâneas» abre novo título, de duas colunas: «O caminho-de-ferro de Jerusalém», assinado «João Gomes». O facto de ser pouco óbvio encontrar dois textos de Eça de Queirós na mesma página da mesma edição da Gazeta ocultou o texto da crónica. Supunha-se, além disso que, na Gazeta, Eça usara o cabeçalho «Notas contemporâneas» e o pseudónimo misterioso apenas na crónica já mencionada, «Os grandes homens de França»; encontrava-se agora um padrão editorial. A continuação da leitura do segundo semestre de 1892 da Gazeta de Notícias levou ao encontro de outro texto com as mesmas características, publicado no domingo 18 de Setembro daquele ano, «Colombo e o seu centenário», este inteiramente desconhecido, esquecido durante os últimos 116 anos , talvez por não ter sido aproveitado por Eça para nova composição, ao contrário do que aconteceu com «O caminho-de-ferro de Jerusalém» / «A Mr. Bertrand B.»
A alteração do título é um efeito da passagem do tempo entre a primeira redacção – ditada e datada pela notícia – e a rescrita do texto; mas é também a consequência da mudança do público-alvo e do objectivo estético do autor: o acontecimento descrito na crónica dirigia-se a um público passageiro, que esperava de Eça de Queirós a análise quase imediata dum facto da sua actualidade; a intenção da carta não se gastou com a passagem do tempo – o autor eliminou a data da inauguração do caminho-de-ferro, esvaziando a carta de referentes temporais, mantendo a sua opinião, num contexto literário diferente, sobre um assunto sempre actual, o dos benefícios e malefícios do progresso.
A correspondência de Fradique Mendes foi dada a público pouco mais de um mês após a morte de Eça. Desconhecemos ainda quem fez a revisão final do volume e qual a última vontade do autor quanto aos critérios de organização das cartas de Fradique. As transformações no recorte do In Memoriam permitem apenas concluir que, se acaso reviu todo o volume, Eça fê-lo sobre provas de página, como era seu hábito: o texto que agora podemos ler em cada um dos suportes difere dos outros dois . Na crónica, a crítica amargurada do autor quanto aos avanços do progresso numa terra onde deveria reinar a espiritualidade excede o comentário mais tardio e mais sarcástico da carta, cujo destinatário, uma personalidade aparentemente real, Bertrand B. , recebe em discurso directo as frias considerações do ficcional Fradique Mendes, segunda máscara dissimuladora do autor para duas variações sobre o mesmo tema, a que não faltam ecos de A Relíquia e da nostalgia duma remota viagem ao Médio Oriente, maculada por um elemento hostil à paisagem contemplada em 1870. O comboio vinha, passados vinte anos, arruinar as memórias daqueles lugares santos, sagrados para quem os admirara com os olhos da juventude.

Irene Fialho












NOTAS CONTEMPORÂNEAS

O CAMINHO-DE-FERRO DE JERUSALÉM

A obra horrenda está consumada: - e Jesus, se ainda se lembra da terra e dos homens, que tão mal lho merecem, pode na verdade gemer de novo o seu consumatum est! Desde ontem ficou concluído, ficou aberto, com as locomotivas acesas, fumegando e silvando, o Caminho-de-ferro de Jaffa para Jerusalém! O Progresso, sujo ainda com a felugem deste feito, e contente, esfrega as suas mãos de aço!
É em Jaffa, a antiquíssima Jeppo, já falada e rica antes do Dilúvio, que se ergue, com os seus alpendres, a sua carvoeira, as suas balanças, a sua sineta áspera, o seu chefe de boné agaloado, a primeira Estação desta Estrada de Ferro, entre esses laranjais, tão gabados pelo Evangelho, onde S. Pedro, chamado pelos brados das mulheres, ressuscitou Dorcas, a tecedeira, e a ajudou a sair do seu sepulcro. Daí a locomotiva, com os seus vagões de 1.ª classe, forrados de chita, atravessa a planície de Saaron, tão particularmente amada do céu, e que, nos intervalos das guerras Filistínicas, se cobria toda de açucenas e rosas; corta através de Beth-Dagon, e mistura o pó do seu carvão de Cardiff ao vetusto pó do Templo Fenício, que Sansão, mudo e repassado de tristeza, derrocou movendo os ombros; e rola por sobre Lydda, e atroa com os seus guinchos o grande S. Jorge, que ali dorme o seu sono terrestre; toma água, por um tubo de couro, do Poço Santo donde a Virgem na fugida para o Egipto, repousando sob o figueiral, deu de beber ao Menino; pára em Ramleh, que é a velha Arimateia (Arimateia, quinze minutos de demora!) a pátria do homem que enterrou o Senhor; fura em túneis fumarentos, as severas colinas de Judá, onde choraram os profetas; rompe por entre ruínas que foram outrora a valente cidadela e são hoje a sepultura dos Macabeus; galga, numa ponte de ferro, a torrente onde David errante escolhia pedras para a sua funda justiceira; corre através do vale melancólico que habitou Jeremias; passa ainda a Emaus, transpõe a torrente do Cédron, e estaca enfim, arquejando, no vale de Hénon, no terminus de Jerusalém.
Tal é o seu sacrossanto itinerário: – e eu que não sou engenheiro, nem accionista desta Companhia dos Caminhos-de-ferro da Palestina, mas um velho peregrino desses lugares adoráveis, tenho a caturrice de considerar esta obra de civilização como uma obra de profanação. S. Pedro ressuscitando a velha Dorcas; a florescência milagrosa das roseiras de Saaron; Sansão e a sua desconsolação e a sua força; o Menino bebendo, na sua fuga para o Egipto, à sombra das árvores, que os anjos iam adiante semeando. São talvez fábulas: mas são fábulas que há dois mil anos têm dado a energia moral a um terço da Humanidade.
Os lugares onde se passavam esses factos, decerto muito simples e muito humanos, que depois, através da imaginação e pela necessidade que a alma tem de Divino, se transformaram na adorável mitologia cristã, são por isso veneráveis perante a religião como perante a história. Todo o céu, todos os seres excepcionais que hoje formam para o crente, a corte do céu, desde Jacob a S. Paulo, viveram, combateram, ensinaram, padeceram, naqueles lugares – que por isso muito justamente se denominam santos. Jeová só ali se mostrava no seu terrífico esplendor, no tempo em que visitava os homens.
Todos os deuses nascem no Oriente – mas a Palestina foi decerto a residência mais grata da divindade. Daí lhe ficou esse dom único na terra, de tornar mais piedosos e melhores, e mais toleradores da vida, e mais fortes em esperança, aqueles que vão em peregrinação respirar esse ar, que ainda conserva o perfume da passagem dos anjos, e pisar esse solo onde ainda não se apagaram as pegadas divinas.
A Terra Santa constitui assim um perpétuo fermento de ilusão. Mas a ilusão é tão útil como a certeza – e na formação de todo o espírito, para que ele seja completo, devem entrar tanto os Contos de Fadas como os problemas de Euclides. Destruir pois a influência moral, religiosa e mesmo poética da Terra Santa, tanto sobre os corações simples como sobre as inteligências cultas, é um retrocesso na verdadeira civilização. Ora, locomotivas correndo entre Jerusalém, Jericó, Nazaré, Belém, a Galileia a Samaria, com os seus guinchos, a sua pressa rude, a sua fealdade, o seu desenvolvimento paralelo e de estações, restaurantes, hotéis, ónibus e outros et coeteras inevitáveis e grosseiros destroem irremediavelmente essa influência da poética Terra-dos-Milagres, porque a modernizam e a materializam.
Essa influência encantadora da Palestina de que provinha? Unicamente de ela se ter conservado através destes quatro mil anos, imutavelmente bíblica e evangélica. Decerto existem hoje em Israel, modificações introduzidas pelo muçulmanismo; a administração turca é menos completa e eficaz que a administração romana; os vergéis e jardins que cercavam Jerusalém desapareceram; certas cidades perderam o seu heróico feitio de cidadelas; o vinho é raro; e não duvido que aqui e além, em Sião, se gema ao piano a valsa de Madame Angot. Mas todas estas alterações são de exterioridade.
A vida íntima, a sua forma rural, urbana ou nómada, as maneiras, os costumes, os cerimoniais, as construções, os trajes, os utensílios, – tudo permanece idêntico ao que era nos tempos de Abraão e nos tempos de Jesus. Entrar na Palestina é como penetrar numa Bíblia real e viva. As tendas de pele de cabra plantadas à sombra dos sícomoros; o pastor, apoiado à sua alta lança, seguido do seu rebanho; as mulheres, de túnica azul e branca, cantando a caminho da fonte, com o seu cântaro no ombro; o montanhês, atirando a funda às águias; os velhos sentados, pela frescura da tarde à porta das vilas muradas; os claros terraços cheios de pombas; o escriba que passa com o seu tinteiro dependurado da cinta; as servas à porta moendo o grão; o homem de longos cabelos nazarenos que nos saúda com a palavra de paz! e que conversa connosco por parábolas; a hospedeira que nos acolhe atirando para nós passarmos, um tapete ante o limiar da sua morada; e ainda os longos mantos às riscas brancas e pardas, e os bastões com uma flor esculpida, e as jóias, e os perfumes, – tudo imediatamente coloca o peregrino na velha Judeia das Escrituras, e de um modo tão presente e tangível, que a cada momento se espera ver Jesus surgir a uma volta do caminho, no meio dos seus amigos.
É esta imutabilidade da Terra-Santa que lhe dá a sua estranha e subtil influência sobre as almas. A história ou lenda que cada um tem na memória adquire logo, na sua decoração natural, onde se não desmanchou uma linha nem uma só cor desbotou – uma realidade tão intensa, que parece, passados momentos, que não a aprendemos num livro, mas que a testemunhamos, que andamos nela envolvidos, e que a nossa alma está agora nela recebendo a sua verdadeira iniciação.
Esta sensação, preciosa para o crente, não o é menos para o céptico, (quando inteligente) porque o põe numa comunhão directa, intrínseca, com um dos mais maravilhosos momentos da História Humana. Decerto seria igualmente interessante (mais interessante talvez) que se pudesse colher a mesma emoção intelectual na Grécia, e que aí encontrássemos ainda, viva e idêntica, nos seus mesmos trajes, nas suas maneiras, na sua sociabilidade, na sua cultura, o seu viver, a grande Atenas de Péricles. Infelizmente, essa Atenas incomparável jaz morta, para sempre soterrada, desfeita em pó, sob a Atenas romana e a Atenas bizantina, e a Atenas bárbara, e a Atenas muçulmana, e a Atenas constitucional, com o seu parlamento e o seu deficit. Por toda a parte hoje, o cenário da história está esfrangalhado e em ruínas. Os próprios montes perderam, ao que parece, a configuração clássica: e ninguém pode achar no Lácio, o rio, e o fresco vale que Virgílio habitou e tão suavemente cantou. Um único sítio na terra permanecia ainda com os aspectos, os costumes, os trajes, e o viver, com que o tinham visto, e de que tinham partilhado os homens que deram ao mundo uma das suas mais altas transformações; - e esse sítio era um pedaço da Judeia, e a Samaria, e a Galileia.
Se esse lugar privilegiado for grosseiramente modernizado, e se nele se sumir para sempre a oportunidade tão educadora de ver o Passado (que é todo o esforço das ciências arqueológicas), há aí uma lamentável profanação, e por perder esse tipo sobrevivente das civilizações primitivas, o tesouro do nosso saber fica tristemente denunciado.
Ora, a modernização da Terra-Santa é certa, logo que através dela comecem a silvar e a fumigar esses caminhos-de-ferro, que, mais que nenhum outro elemento da nossa civilização, têm a propriedade de reduzir todas as regiões e todos os costumes, os mais urgentes e originais ao protótipo querido deste século, que é o distrito de Liverpool ou Marselha.
Ninguém mais do que eu, decerto, aprecia e venera o caminho-de-ferro: - e ser-me-ia penoso o ter de jornadear de Lisboa para o Porto, ou de Madrid para Paris, como Jesus subia o vale de Jericó para Jerusalém, escarranchado num burro. As coisas mais úteis, porém, são importunas, e mesmo escandalosas quando invadem brutalmente lugares que lhes não são congéneres. Nada há mais necessário na vida do que um restaurante: e todavia ninguém, por mais descrente ou irreverente, desejaria que se instalasse um restaurante com a sua vulgaridade, desejaria que se instalasse um restaurante com a sua vulgaridade, as suas mesas, o seu tinir de pratos, o seu cheiro a guisados, – nas naves de Notre-Dame, ou na velha Sé de Coimbra. Um caminho-de-ferro é obra excelente, entre Paris e Bordéus – Entre Jericó e Jerusalém, basta a égua ligeira, que se aluga por dois dracmas, e a tenda de lona que se planta à tarde, entre os palmares, à beira de uma água clara, e onde se dorme tão deliciosamente sob a paz radiante das estrelas da Síria.
E é justamente essa água árabe, e a tenda, o camelo grave que leva o rancho, e a escolta flamejante de beduínos, e as frescas paragens junto aos poços bíblicos, e as longas recordações do Passado, à noite, em torno à fogueira do acampamento, que fazem o encanto da jornada, e atraem o homem de gosto, que ama as emoções verdadeiras. Quando de Jerusalém se partir para a Galileia, num wagon estridente e cheio de pó, ninguém fará essa peregrinação magnífica, – a não ser o destro commis-voyageur, que vende pelos bazares chitas de Manchester ou panos vermelhos de Sedan.
É bem possível por isso que esta Companhia dos Caminhos-de-ferro da Palestina venha a recolher os seus wagons vazios e inúteis, aos depósitos de Marselha, seu elemento natural.
Será essa uma pura alegria para todos os espíritos cultos – que não forem accionistas. Mas, se ela florescer, se o peregrino adoptar para isso da sua fé, ou da sua curiosidade histórica, a «grande velocidade a 200 réis por quilómetro» – então a obra horrenda ficará imutavelmente consumada, e para sempre estabelecida na terra dos milagres, na Sião Redentora e brilhante de claridade.
E, dentro de poucos anos, o homem positivo, que de manhã partir da velha Jeppo, no seu wagon de 1.º classe, e comprar na estação de Gaza a Gazeta Liberal do Sinai, e jantar divertidamente em Ramleh no Grand-Hotel dos Macabeus, irá, à noite, em Jerusalém, através da Via Dolorosa, iluminada pela electricidade, beber um bock e bater três carambolas no Casino do Santo Sepulcro!
E tudo isto, (afirmaram as gentes graves desde Brindisi até Glasgow) será Progresso, maravilhoso Progresso!

João Gomes

Iluminarium: #25

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

NO CAFÉ




O Verão caminhava incerto de calor e dias mais frescos, mas nada me fazia esmorecer o entusiasmo que era deambular por essa Europa fora a queimar tempo, coleccionar paisagens, ver gentes sem objectivo nem preocupação nem horários. Uma vez por outra a noite amena e uma esplanada (em Roma ou em Paris), o eterno bloco de notas e o escrevinhar ao acaso das impressões que um dia poderiam vir a ser úteis. O café do costume bebido com paladares mais ou menos agradáveis de acordo com a concepção do local. Uma ou duas trocas de palavras em conversas de ocasião. Gente que ia e vinha na mesma onda despreocupada de passeio. A Europa era essa vasta auto-estrada de veraneio onde culturas milenares se iam encaixando em eternas lições de História, paisagem e descoberta. Van Gogh, um holandês que morava em Paris e que nunca conseguiu vender um quadro seu em vida, pintava a esplanada de um café parisiense sob um céu quente de estrelas brilhantes. Linklater, um jovem cineasta americano filmava uma das mais belas e mais simples histórias de amor que passaram pelo cinema com um ainda pouco conhecido Ethan Hawk. Um americano e uma francesa conhecem-se no comboio entre Paris e Viena. Conversam, apaixonam-se, separando-se com a promessa de um reencontro. BEFORE SUNRISE (95)encarna um pouco desse ambiente romântico e aventureiro que cobre a Europa durante este período de férias.
Com o On The Road de Kerouac debaixo do braço palmilhei muita estrada à boleia, conheci muitos lugares e gentes e diverti-me bastante. Lembro-me de uma boleia de um camionista belga de Paris para Inglaterra com mais um amigo meu. O belga não falava francês nem inglês. Ia para Southhampton. Partimos de Paris ao fim de uma tarde espectacular de Agosto com uma caixa de cervejas na parte de trás da cabine. De vez em quando o camionista abria uma lata, fazia o gesto para o imitar-mos e abria uma sorriso de orelha a orelha: “Portugal? Portugal? Euzeebio…Euzebio… Very good, very good” E nós sorriamos a dizer que sim e a tentar lembrar um ou dois jogadores belgas para sermos simpáticos. Chegámos a Pas de Calais cerca da meia-noite já bastante entornados, mesmo a tempo de entrar no ferry. Naquele tempo o canal ainda não tinha túnel. O belga mantinha-se fresco como uma alface. Dentro do barco havia um mundo inteiro de bares e lojas e desculpas para passar o tempo. Trouxemos as cervejas cá para cima e continuámos a conversa. “ Euzibio…Euzibio…Very good”.
Cansados e com as pernas a tremer decidimos vir até cá fora já quase no fim da viagem. O dia amanhecia devagar abrindo à nossa frente um cenário fantástico. Ao longe os célebres rochedos brancos de Dover assemelhavam-se a uma imagem lunar. Várias cenas passavam pela minha imaginação: o desastre de Dunquerque e a enorme operação de resgate das tropas inglesas feita por todo o tipo de embarcações, o primeiro português a atravessar aquele canal a nado, o Canal da Mancha que os ingleses insistem em chamar de English Channnel, os preparativos para o desembarque na Normandia, etc, etc. Desembarcámos em Inglaterra após demoradas burocracias alfandegárias. A CEE era ainda uma miragem. Na estrada para Southhampton o belga foi à sua vida e nós a caminho de Londres. Grandes despedidas. “Euzibio…Euzibio…” mais uma vez a selar o profícuo diálogo de uma noite de viagem. O segundo camião que nos levou até Londres era conduzido por um gajo australiano. Olhou de lado para o meu livro a espreitar fora da mochila e perguntou se andava a fugir de alguma coisa. Respondi que não. Então andava à procura de qualquer coisa. Também não. Para ele, quem andava na estrada, andava sempre ou a fugir ou a correr atrás de qualquer coisa. Quem estava bem não saía donde estava. Meio ensonado respondi-lhe que talvez estivesse à minha procura. Ele abriu os braços triunfante.” There it is. I Knew it. We all search for something or run away. Never fails…” Perguntei-lhe de que é que ele fugia ou o que é que perseguia. Respondeu-me que decidiu sair da Austrália por causa da policia. Tinha estado em Israel num Kibutz e agora trabalhava ali. Também se procurava naquelas viagens todas. Talvez um dia se encontrasse. O problema é que se demoramos muito a tentar encontrar quem somos, quando esse dia finalmente chegar…talvez já seja demasiado tarde para nos reconhecermos. Mas haverá sempre uma esplanada acolhedora no Verão de Paris pintada por um gajo holandês que nunca conseguiu vender um quadro enquanto foi vivo… Aí se reconhece qualquer coisa, ainda que não seja nada de espectacularmente importante.
ARTUR

Iluminarium: #18