quinta-feira, 14 de agosto de 2008
NO CAFÉ
O Verão caminhava incerto de calor e dias mais frescos, mas nada me fazia esmorecer o entusiasmo que era deambular por essa Europa fora a queimar tempo, coleccionar paisagens, ver gentes sem objectivo nem preocupação nem horários. Uma vez por outra a noite amena e uma esplanada (em Roma ou em Paris), o eterno bloco de notas e o escrevinhar ao acaso das impressões que um dia poderiam vir a ser úteis. O café do costume bebido com paladares mais ou menos agradáveis de acordo com a concepção do local. Uma ou duas trocas de palavras em conversas de ocasião. Gente que ia e vinha na mesma onda despreocupada de passeio. A Europa era essa vasta auto-estrada de veraneio onde culturas milenares se iam encaixando em eternas lições de História, paisagem e descoberta. Van Gogh, um holandês que morava em Paris e que nunca conseguiu vender um quadro seu em vida, pintava a esplanada de um café parisiense sob um céu quente de estrelas brilhantes. Linklater, um jovem cineasta americano filmava uma das mais belas e mais simples histórias de amor que passaram pelo cinema com um ainda pouco conhecido Ethan Hawk. Um americano e uma francesa conhecem-se no comboio entre Paris e Viena. Conversam, apaixonam-se, separando-se com a promessa de um reencontro. BEFORE SUNRISE (95)encarna um pouco desse ambiente romântico e aventureiro que cobre a Europa durante este período de férias.
Com o On The Road de Kerouac debaixo do braço palmilhei muita estrada à boleia, conheci muitos lugares e gentes e diverti-me bastante. Lembro-me de uma boleia de um camionista belga de Paris para Inglaterra com mais um amigo meu. O belga não falava francês nem inglês. Ia para Southhampton. Partimos de Paris ao fim de uma tarde espectacular de Agosto com uma caixa de cervejas na parte de trás da cabine. De vez em quando o camionista abria uma lata, fazia o gesto para o imitar-mos e abria uma sorriso de orelha a orelha: “Portugal? Portugal? Euzeebio…Euzebio… Very good, very good” E nós sorriamos a dizer que sim e a tentar lembrar um ou dois jogadores belgas para sermos simpáticos. Chegámos a Pas de Calais cerca da meia-noite já bastante entornados, mesmo a tempo de entrar no ferry. Naquele tempo o canal ainda não tinha túnel. O belga mantinha-se fresco como uma alface. Dentro do barco havia um mundo inteiro de bares e lojas e desculpas para passar o tempo. Trouxemos as cervejas cá para cima e continuámos a conversa. “ Euzibio…Euzibio…Very good”.
Cansados e com as pernas a tremer decidimos vir até cá fora já quase no fim da viagem. O dia amanhecia devagar abrindo à nossa frente um cenário fantástico. Ao longe os célebres rochedos brancos de Dover assemelhavam-se a uma imagem lunar. Várias cenas passavam pela minha imaginação: o desastre de Dunquerque e a enorme operação de resgate das tropas inglesas feita por todo o tipo de embarcações, o primeiro português a atravessar aquele canal a nado, o Canal da Mancha que os ingleses insistem em chamar de English Channnel, os preparativos para o desembarque na Normandia, etc, etc. Desembarcámos em Inglaterra após demoradas burocracias alfandegárias. A CEE era ainda uma miragem. Na estrada para Southhampton o belga foi à sua vida e nós a caminho de Londres. Grandes despedidas. “Euzibio…Euzibio…” mais uma vez a selar o profícuo diálogo de uma noite de viagem. O segundo camião que nos levou até Londres era conduzido por um gajo australiano. Olhou de lado para o meu livro a espreitar fora da mochila e perguntou se andava a fugir de alguma coisa. Respondi que não. Então andava à procura de qualquer coisa. Também não. Para ele, quem andava na estrada, andava sempre ou a fugir ou a correr atrás de qualquer coisa. Quem estava bem não saía donde estava. Meio ensonado respondi-lhe que talvez estivesse à minha procura. Ele abriu os braços triunfante.” There it is. I Knew it. We all search for something or run away. Never fails…” Perguntei-lhe de que é que ele fugia ou o que é que perseguia. Respondeu-me que decidiu sair da Austrália por causa da policia. Tinha estado em Israel num Kibutz e agora trabalhava ali. Também se procurava naquelas viagens todas. Talvez um dia se encontrasse. O problema é que se demoramos muito a tentar encontrar quem somos, quando esse dia finalmente chegar…talvez já seja demasiado tarde para nos reconhecermos. Mas haverá sempre uma esplanada acolhedora no Verão de Paris pintada por um gajo holandês que nunca conseguiu vender um quadro enquanto foi vivo… Aí se reconhece qualquer coisa, ainda que não seja nada de espectacularmente importante.
ARTUR
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