terça-feira, 30 de novembro de 2021

OITENTA E SEIS ANOS DEPOIS


 


Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

DA BANDA DE AQUÉM

 Vigésimo quarto dia do décimo primeiro mês de dois mil e vinte e um. Ontem à noite os relâmpagos voltaram sózinhos a iluminar as copas das árvores que emolduram a janela do quarto. No princípio da madrugada já Júpiter brilhava na terceira vidraça superior sem nuvens a atrapalhar. É assim viver no princípio da banda de além, é ficar mais aquém de cada fenómeno que antes só se revelava através de filmes de oito milímetros, ou de histórias contadas pelos avós mais antigos. Muitas vezes me vem o impulso a que não cedo de tapar os espelhos da casa. Os olhos curiosos dos animais sossegam-me e quando há sinal de perigo é atrás de mim que se escondem. As gatas da cidade são agora leoas ferozes que me agradecem com ratinhos, grilos e baratas. Felizmente tive uma mãe comparável à maior maga das ciências naturais. Treinou a sua única filha para lidar com todos os seres vertebrados e invertebrados, de sangue quente e de sangue frio. Costumava amarrar um cordel à cauda dum murganho para eu poder passear com ele ou a apanhar lagartixas dando um nó de corrediço nas ervas mais compridas. Tornei-me uma pescadora exímia de lagartixas ao sol. No dia em que resolvi lavar as minhocas na banheira da casa acho que percebeu que a minha curiosidade seria sempre maior do que o meu pudor. Tinha então três anos e só tinha medo da sombra nas escadas para o segundo andar. Hoje até as sombras são sempre o lado onde a luz está por chegar.

A chuva voltou com força enquanto preparo o primeiro assado deste forno. Continuo com a sensação de estar isolada do resto do mundo das notícias que não vejo nem leio. Por tal alheamento descobri há pouco que a nossa amiga e colega está a necessitar de cuidados por causa do malfadado vírus. Os meus pensamentos e orações estão na tua direção, minha querida, e já te ouço a trautear umas notas de Alcafozes ao Loreto. Os padres italianos que se preparem.
Entretanto lembrei-me dos idos anos 90 do século passado. Eu com menos que meia dúzia de anos de voo e um passageiro conhecido orador seropositivo. Ele sentou-se por engano no lugar de descolagem e aterragem de tripulação na coxia da fila da janela de emergência do Boeing 737. A colega desse lugar pediu-me para lhe dizer que ele estava enganado e disse-me que não queria sentar-se nesse lugar. Perguntei se estava com medo de alguma coisa e ela respondeu-me que não queria apanhar SIDA. Ofereci-me para fazer a descolagem e aterragem no lugar dela,informei o senhor que o lugar dele era ao meio e que se poderia sentar na nossa coxia durante o voo. Não me lembro do nome dele nem dela. Tenho demasiados amigos engolidos por esse virus tão medonho como castigador e sempre soube que não era por partilharmos uma cadeira, assim como sempre soube que não engravidamos pela graça de nos sentarmos na mesma sanita do namorado. Éramos muitos no escritório voador e felizmente eram poucos os que padeciam de falta de informação e sensibilidade.
As rajadas de vento têm vindo a aumentar. O meu lençol já secou e molhou-se umas seis vezes. A toalha já resvalou a nau catrineta. O cão continua a achar que ao pé de mim as tempestades não o afetam. Eu continuo a achar que ao pé dele também não.
Estar a fazer o quê neste fim do mundo é o que me perguntam às vezes. A maior parte das vezes nem ouvem a resposta. Da banda de além à banda de aquém é num ai. Vale tanto a soma como o que se subtrai.
O forno já está aprovado para o mês que vai entrar. As pinhas já estão espalhadas pela mata. A noite caiu agora que me levanto. Nem a senti, nem ela a mim. É assim.
Elsa Bettencourt

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

AUTOVOUCHER OU A ALEGORIA DO FILHO DO PADEIRO

 



Na aldeia onde passo agora a maior parte do tempo, o padeiro costuma passar uma vez (às vezes duas) em passeio triunfal, qual parada medieval de outrora. Estaciona na cabeceira da rua principal e agarra-se à buzina como se quisesse anunciar um ataque nuclear eminente, tendo as pessoas dois minutos para correr para o abrigo. Aguarda uns instantes que os idosos se aproximem munidos do porta-moedas e do saquinho de plástico, fica ali a dar dois dedos de conversa e arranca até ao outro extremo da rua para repetir o ritual. Buzinadela estridente e prolongada, aproximação da população idosa, o estado do tempo, o futebol e ala para a próxima aldeia. Confesso que ao princípio me assustava tanta algazarra desnecessária quando uma simples combinação de horário poderia resolver a questão. Depois comecei-me a habituar com espasmos cada vez menos pronunciados e palavrões em escala decrescente.

Nos últimos tempos o padeiro deixou de vir diariamente, talvez por ter outros afazeres, talvez porque resolveu abrandar o ritmo da volta às aldeias. Em seu lugar mandou o filho, um miúdo tranquilo que aproveita as horas vagas da escola embora muito menos sociável do que o pai. O ritual não mudou a não ser na rapidez com que se desenvolve. É que isto de atender o público não é uma capacidade inata em ninguém…leva o seu tempo. Há sempre aquele cliente que reclama das carcaças que comprou ontem, o outro que deita um longo olhar para dentro da caixa da carrinha para de seguida se pôr a pedir aquilo que não há, já para não falar na epopeia dos trocos que, como todos sabemos, além de difíceis de arranjar ninguém parece ter. O rapaz chega à entrada da rua, agarra-se à buzina da carrinha como se não houvesse amanhã e, logo de seguida, arranca em direcção à outra ponta da rua. Os primeiros potenciais compradores têm apenas tempo para pôr o nariz de fora para se aperceberem que se quiserem pão vão ter que ir à padaria.

Ao fim do dia não faço ideia que contas é que pai e filho farão e qual o balanço diário da padaria itinerante. Mas a atitude do filho do padeiro faz-me lembrar o “autovoucher” do Governo para minimizar o impacto do aumento dos combustíveis. Por cada pipa de massa que gastar a consumir o seu combustível, traga a factura e troque por um apoio…zinho de 0,00005 %.

Ou seja, o consumidor é toureado com todo o cenário que indica precisamente o contrário. Temos padaria, temos serviço itinerante ao cliente…o que não temos é pão.

Faz lembrar uma piada antiga do Herman José em que era anunciado um concurso de sugestões para acabar com a burocracia. Quem quisesse participar teria que enviar um formulário devidamente preenchido com uma exposição de quinze páginas a explicar porque é que se devia acabar com a burocracia, acompanhado de uma fotografia de corpo e meio junto a um pastor alemão albino.

O chefe do governo e alguns dos seus ministros podem personificar a relação do padeiro e do seu filho. Um mais diligente, ou mais calculista, outros mais incompetentes, mais apressados, menos atentos. Ao fim do dia a panificadora terá que fazer o balanço das diversas estratégias aplicadas e assumir as falhas do sistema. Mais depressa ou mais devagar, em loja fixa ou itinerante. Os consumidores cá estarão, sempre os mesmos, com a mesmas necessidades de comer pão todos os dias. Se não nesta padaria…noutra qualquer…

Artur


domingo, 14 de novembro de 2021

O REGRESSO DA TERTÚLIA

 





No próximo Sábado, dia 20, a Tertúlia Regressa a Braço de Prata. Na primeira sessão vamos estar à conversa com José Guedes. "Na Rota do Yankee Clipper", "O Aviador" e "Carlos Bleck" serão os títulos em debate. Dos "Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras" até à Aeronáutica em geral, experiências de vida, livros, memórias e mais que na altura se verá. Estão todos convidados.