quarta-feira, 28 de setembro de 2011

RAY, NICHOLAS RAY



"Estás a despedaçar-me!"

(James Dean em "Rebel Without A Cause")

Porque foi Nicholas Ray tão admirado pelos críticos franceses dos anos 50, e uma tão grande fonte de inspiração para aqueles que viriam a tornar-se os realizadores da Nouvelle Vague ? A resposta reside, talvez, na observação muitas vezes repetida por Ray acerca do limitado contributo do argumento para o resultado final do filme - afirmação que ilumina a sua abordagem decididamente não-literária da arte cinematográfica - e no agudo sentido da dor pessoal e da angústia evocadas pela frase em epígrafe, retirada do seu filme mais conhecido.
Ray foi um marginal em Hollywood, um homem cujo profundo desapontamento com a sociedade americana em geral e com a indústria cinematográfica em particular veio a manifestar-se não apenas na sua conturbada relação com os estúdios cinematográficos, mas também no conteúdo dramático e na força impulsionadora da sua obra. Os seus filmes constituíram, em grande parte, poderosas e profundas contribuições pessoais para aquilo que foi, e ainda é, uma camisa de forças, especializada na produção de entretenimento de massas, homogeneizado e de sentido débil; expressaram a sua consciência de tormento íntimo, solidão e desespero, conflito e confusão, fazendo-o apenas através de meios cinemáticos.
Para Godard, Truffaut, Rohmer, Rivette e outros, Ray era o exemplo acabado de um "auteur", um admirável exemplo de um artista, cuja inteligência patente, intensidade de sentimento, e puro amor ao cinema asseguravam que a sua assintaura criativa podia ser viva e facilmente percebida entre toda a tralha constituída pelo cinema comercial norte-americano.
Para mim, para nós (um grande abraço ao Artur, esse maravilhoso cinéfilo, que descobriu e conheceu tantas coisas antes de mim), os seus filmes representam o triunfo do individual sobre a segura e branda conformidade do sistema, alinhando com Von Stroheim, Buster Keaton ou Orson Welles - talentos de ambiçaõ massiva ("bigger than life", outro título de um dos maiores filmes de Ray), originalidade e génio esmagados pela lógica implacável do sistema filistino que imperava em Hollywood.
Ray possuía aquilo a que os gregos chamavam "sabedoria de Sileno", ou seja, a capacidade de reconhecer o sentido trágico e pessimista da vida humana, de olhar com coragem essa condição e de a traduzir em expressão artística. As suas personagens falam muitas vezes por ele próprio - já referi numa postagem anterior a fabulosa frase "I always contradict myself" de "Bitter Victory" - e, assim sendo, poderia ser Ray a proferir a frase "I'm a stranger here myself", dita por Sterling Hayden em "Johnny Guitar". Esta estranheza, esta sensação de desenraízamento, poderá explicar em parte uma das características quanto a mim maiz bizarras do seu percurso artístico: a indiferença em relação aos gostos dominantes, ao polimento estético, ao equilíbrio ,contenção e outros modos de expressão mais convencionais e respeitáveis. Ao mesmo tempo, não foi particularmente inovador, quer em termos técnicos, quer formais; a maior parte das vezes trabalhou no contexto de géneros populares e tradicionais, como o western, o thriller, o filme de guerra ou o melodrama. E é precisamente essa tensão, entre a sua sensibilidade pessoal, e os constrangimentos do cinema comercial, que tornam a sua obra tão interessante, tão duradouramente moderna e de tal maneira influente na obra de sucessivas gerações de cineastas. A sua importância releva não apenas dessa influência, reinvindicada ou não, mas do facto de milhões de jovens continuarem a atestar o poder de "Rebel Without A Cause" na expressão de emoções, realçando o modo como Ray transcendeu o seu tempo com uma visão da vida que continua a afectar-nos: dor, ansiedade, incerteza, violência e solidão são elementos da condição humana, e poucos realizadores, especialmente em Hollywood, os confrontaram tão directa e intensamente, de um modo tão pouco comprometido como Nicholas Ray. Mesmo nos seus filmes mais convencionais, a sua sensibilidade perturbada pelo pessimismo constitui uma força activa na caracterização quer de indivíduos, quer da sociedade. É por isso mesmo que teremos que voltar sempre a esse "corpus"cinematográfico único e pungente que, apesar de tudo, de toda a angústia e mal-estar, celebra a singular e dolorosa preciosidade da vivência humana e da capacidade de alguns indivíduos resgatarem aquilo que resta de dignidade, liberdade e sentido na trágica condição humana. É por isso que sempre voltaremos aos filmes de Nick Ray, relembrando o fabuloso diálogo de "On Dangerous Ground" entre o detective protagonizado por Sterling Hayden e outra personagem:

" - Lixo, é tudo aquilo com que vivemos. Lixo ! Como é que consegues viver com isso ?
- Eu não vivo com isso. Vivo com outras pessoas"

sábado, 24 de setembro de 2011

TRILOGIA DA AUSÊNCIA – EPÍLOGO




A.B. e C.


O Pavilhão do Dramático de Cascais já não existe, a Escola Secundária de Belém-Algés foi demolida, os Ramones já morreram todos (menos um), o tempo daquele tempo evaporou-se e nem a lembrança nostálgica o fará pôr de pé outra vez, regressar das profundezas do passado.
O mais certo é nunca termos estado aqui, nem de passagem. O mais certo é sermos apenas sombras errantes que julgaram ter tido um corpo, uma memória, uma consciência. Breves nuvens de fumo a pairar sobre a assistência enlouquecida de um concerto de uma banda punk nos anos 80. Ruídos de comboios ensurdecedores que nunca aconteceram assustam-nos os sonhos ainda hoje numa terra despojada de sentido, de lógica, de esperança. Nem acusamos nem lamentamos nada, limitamo-nos a recordar como se as recordações tivessem sido factos reais, como se a Vida tivesse alguma vez tido lugar dentro de seres que nunca acreditaram em nada a não ser em si próprios vagamente. Sementes que germinaram e cresceram no anonimato, ignorados, esquecidos, vagamente considerados como dados para estatísticas. Se calhar nunca estivemos aqui, livros perdidos numa estante de um escritório numa casa esquecida pelos arquivos municipais, num canto perdido da cidade.
Se calhar nunca houve uma vida digna desse nome, um caminho bem delineado por marcos e referências, um piso irregular para caminhar, um ponto de partida e outro de chegada. Se calhar nunca houve nada.

Artur

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

TRILOGIA DA AUSÊNCIA III




C.


Gosto de estar nesta casa ao pé do mar, acho que estou em Oeiras, gosto de ficar aqui depois do lanche a observar o fim do dia. De vez em quando aparecem duas lagartixas no rebordo da varanda a quem eu dou migalhas das minhas bolachas. Chamei-lhes Ângelo e Bruno porque têm o nome de dois tipos que de vez em quando me vêm visitar, dois antigos colegas da CIA com que eu trabalhei há muitos anos no Médio Oriente. Como sou reformado pensionista, isso quer dizer que já não posso trabalhar, devo ter sido ferido nalguma missão arriscada. Eles nunca tocam no assunto, um vem de mota, sempre a meio da semana, deve ser antes de ir para casa. Sei porque aparece com o capacete debaixo do braço. A outra casa onde estava era pior que esta. De vez em quando o vizinho ligava uma musica aos berros, uma musica que, depois de muito tempo desligada continuava a tocar na minha cabeça. Às tantas parecia um comboio a andar por cima da casa, um comboio muito ruidoso que eu tinha a certeza que ia fazer cair as paredes, que nos ia soterrar vivos. Nessa altura ficava muito perturbado e desatava a gritar. Depois davam-me injecções e tudo acalmava outra vez. Desde que vim para esta casa perto do mar já não ouço essa musica, limito-me a ficar muito triste se por acaso há barulho à minha volta. Desde que não haja barulho, está tudo bem, consigo desenhar o Zé Carioca com um papel vegetal por cima, consigo ler duas páginas de um livro, um livro qualquer, o que interessa é conseguir terminar uma página que seja, o médico diz que eu estou a fazer progressos apesar de já não me lembrar da idade que tenho. Mas há-de vir, há-de chegar, a memória é muito destruída por causa da medicação forte. No outro dia consegui adaptar um emissor receptor na cauda do Bruno. Isso vai-me permitir localizá-lo durante a noite, saber onde ele está, se está em segurança ou a fugir de algum cão vadio que o queira comer. Não sei a minha idade mas sei que já fui jovem, é óbvio, basta olhar ao espelho para perceber que estou mais perto de morrer do que de outra coisa. Mas perto de morrer estamos nós todos, todos os dias desde que nascemos. A morte é isso, uma companheira permanente e indesejada, uma sombra que caminha colada à nossa sombra. No fundo tudo se resume a uma simplicidade insuportável, uma transparência que se pode ler em três frases e dois acordes de guitarra. O mais assustador é que nunca estamos preparados para uma visão tão simples das coisas. Estamos aqui mas também estamos noutro tempo, noutra dimensão, na nossa juventude a dançar na praia ao amanhecer, num comboio que viaja no espaço a caminho da Nave Mãe, onde está a decorrer um acontecimento fantástico. Eu digo isto porque desconfio que já fiz todas estas viagens que há para fazer, já falei como seres dos outros mundo que me explicaram que está tudo bem, o que é preciso é não exagerar, o que é preciso é que nos vamos amparando uns aos outros ao longo do caminho, sermos amigos, conseguir acompanhar a respiração da montanha. O resto virá, o resto resolve-se por si, a morte não é nada, é apenas mais um meio de transporte entre dimensões. Sei que aqui e agora ajudo as lagartixas ao fim da tarde e, muito depois de eu morrer, elas hão de vir ter comigo, porque é assim, porque somos amigos e os amigos servem para se encontrarem, para se ajudarem, para se empurrar uns aos outros pelo caminho. Os caminhos de pedras só nos são dados a percorrer para aprendermos estas verdades básicas. Uma simplicidade insuportável porque começamos a ler o livro da vida pelos últimos capítulos e não pelas primeiras páginas, como eu faço agora. Assim é que se devia começar, em vez de acreditar em coisas que não estão lá a não ser na imaginação da propaganda que nos formata a cabeça. Nós somos livres, somos sempre livres e o sofrimento serve apenas para fortalecer essa liberdade do espírito, essa conquista obrigatória da evolução do Ser. Lembro-me vagamente de uns quantos pensadores alemães que arrepiaram caminho nesse sentido, só que agora esqueci-me dos nomes deles. E gregos também. E lagartixas que como o mar, nós e o ar que respiramos, fazem todos parte da mesma realidade que não é real, apenas uma imagem para ajudar a aprender, todos somos a parte uns dos outros. O sofrimento é apenas uma ponte para ficarmos mais fortes. A vida, como a julgamos entender, não existe. A Vida nunca existiu.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

TRILOGIA DA AUSÊNCIA – II






B.

Não sei se foi o telefonema da minha mulher (“quando vieres para casa não te esqueças de ir aos frangos, não temos nada para jantar), sempre oportuna, quando estou concentrado a fazer alguma coisa, se foi a cara de palonso do meu cliente que quer pagar menos 50 euros de pensão à mulher dele, se foi a mulher que estava ali a vender castanhas na rua, se foi o olhar vazio daquela rapariga mal vestida e com ar sujo à porta do estádio da Cruz Quebrada quando fui correr de manhã. Nunca sei nada em relação às razões de ser do que quer que seja. Baralho-me a mim mesmo a um ponto que me é extremamente difícil encontrar o caminho e sair em qualquer direcção, da confusão em que me meti. Acho que foi sempre assim. Resolvo as equações mais complicadas com muito mais facilidade do que consigo resolver os meus problemas. No fundo o que eu acho é que os problemas que vou encontrando também me pertencem e, como não os posso resolver sem a colaboração dos outros, acabo por não conseguir resolver nada. E o gajo quer pagar menos 50 euros, a escola dos filhos custa 400 a cada um, e sôtor trate lá disso que a minha ex-mulher não precisa do meu dinheiro para nada, o pai dela é rico, e resolva lá isso, e eu resolvo e escavo na lei a conveniência que mais interessa a este palonso que vai pagar menos 50 à mulher e mais 200 a mim. Mas que é que se pode fazer? O mundo é assim desde muito antes de eu nascer e não foi por eu aparecer que o vento passou a soprar noutra direcção. E faço o que esperam que eu faça desde que me conheço porque essa é a única maneira de não ver a minha mioleira torrada, essa é a única maneira de não me chatearem a cabeça, de pagar a faculdade dos meus filhos, sustentar a casa, encarar o saloio do meu sogro sem precisar do dinheiro dele, atravessar a vida com alguma tranquilidade, pagar a casa de saúde ao Camilo.Inquestinavelmente o mais inteligente de todos nós, infelizmente dominado pela depressão.
E no entanto houve um tempo em que as coisas podiam ter marchado noutra direcção, um tempo em que me distraí a fazer equilibrismo à beira do poço, um tempo em que o desinteresse tomou conta dos dias, um tempo em que nada me interessava. Valeram-me o Ângelo e o Camilo, a sorte de encontrar os gajos certos no momento certo, mesmo antes da precipitação pela ladeira abaixo. Não sei qual das imagens do dia é que me fez regressar aquela noite fantástica em que tudo aconteceu, aquele momento tão determinante que me fez atravessar a agulha da linha para a estação certa, o que sei é que nunca me vou esquecer dele. Não, não, foi aquela rapariga mal vestida e com ar sujo à porta do estádio depois de ter ido correr. Foi no semáforo fechado em que tive que parar com a mota. Vi o Tejo à minha frente e, mais para a esquerda, vi a sala 32 da escola onde estive no 12º ano, a sala onde nos reuníamos para o “charro” das 5 antes de ir para casa, a escola onde conheci o Ângelo e o Camilo, a escola onde a minha vida podia ter escolhido direcções opostas, a escola que já lá não está, como se nada daquele tempo tivesse alguma vez acontecido. A escola onde andámos e a estação de Cascais à espera deles, que desembarcavam de um comboio de Marte com as criaturas mais estranhas lá dentro, “Freaks”, “Punks”, indiferenciados, com ar ausente como se uma potente mistura química estivesse a circular nas condutas do ar das carruagens desde o Cais Sodré. Do concerto lembro-me do princípio e do fim. No Dramático de Cascais os Ramones chegaram com Rockaway Beach, tocaram as primeiras cinco músicas sem parar, indiferentes aos aplausos ( o baterista dava três berros nos últimos compassos da cada musica e eles arrancavam de imediato para a seguinte), finalmente disseram boa noite ou qualquer coisa do género. O pavilhão navegava no espaço descontrolado, as pessoas dançavam, atiravam-se ao chão, urravam e faziam milhares de coisas ao mesmo tempo, nuvens de erva pairavam sobre as nossas cabeças, não havia maneira de evitar respirá-las. Porquê os Ramones? Porque para eles tudo era simples e veloz. Em três frases e dois acordes despachavam os problemas mais difíceis. Para nós bastava estremecer os corpos e ligar à corrente eléctrica que o mundo desaparecia naquele instante, as ondas más saíam porta fora e ficava só a vibração, uma vibração nem boa nem má, mas uma força intensa que nos elevava aos patamares mais elaborados da consciência. A minha mãe não tinha morrido quando eu tinha 15 anos, o meu pai não passava a vida a trabalhar numa multinacional pelo mundo fora e eu não estava sozinho na minha casa no Birre, a meio caminho do Guincho e de Cascais. Os coices da vida não me acertavam e a música era um estado eterno de vibração. Às vezes ainda sinto isso quando aperto as goelas à mota na A5 a caminho de Cascais e obrigo-nos a vibrar a um ponto muito perto da explosão. Não é o caso de hoje. Hoje tenho que ir à igreja. Subo com a mota até ao alto da Serra de Sintra, acendo um “berlaite” e ponho-me a ouvir a respiração da montanha. A outra parte do concerto de que me consigo lembrar é já cá fora. A polícia de choque estava à nossa espera, conversa vai, conversa vem, caem-nos em cima, grande carga de porrada seguida de fuga e aceleração. Como estava perto de casa não tive dificuldade em me esconder com o Ângelo e o Camilo. Depois fomos para a praia acabar a noite. E ao fim de muita carga na cabeça afastei-me um pouco em direcção às rochas. Em cima de uma vi a minha mãe, perguntei-lhe o que estava ali a fazer àquela hora. Não respondeu. Sorriu-me. Fiquei a olhar para ela durante não sei quanto tempo, até que me disse: “Não exageres, Bruno. Não exageres. Eu estou bem, não te preocupes.” Depois disse-me adeus e foi-se embora. Quando voltei para trás encontrei o Camilo. Vinha transtornado, contei-lhe o que se tinha passado. Ele, com a maior naturalidade pôs-me um braço por cima do ombro. “Estava bem a tua mãe?” Disse-lhe que sim. “Então, óptimo. Senta-te aí e vamos beber uma cervejinha.” E assim fizemos. Toda a situação extraordinária naquela noite estava condenada à banalização, as noites mágicas dispõem de uma lógica própria, de um sentido pessoal, de um propósito exclusivo que termina ao amanhecer. Tudo era tão evidente como o mar e as ondas que não se viam de noite mas que nem por isso deixavam de existir. E o amanhecer foi saudado pela nossa própria coreografia de uma das músicas dos “Ramones”. O Sol nascia e nós tocávamos as nossas guitarras e bateria imaginária. “Sheena is a punk rocker, Sheena is a punk rocker yeah” . Desde aí ficámos amigos até hoje, estudámos juntos e seguimos para a faculdade. Se não me tivesse encontrado com eles, talvez hoje não estivesse aqui ao pé da serra a ouvir a respiração do monte encostado à mota. Talvez à beira do poço tivesse escolhido saltar lá para dentro. Talvez não me surpreendesse quando chegasse a casa e a minha mulher me perguntasse: “Então e os frangos?” Talvez não estivesse cá para me lembrar de responder: “Estava fechado.”

quarta-feira, 21 de setembro de 2011


TRILOGIA DA AUSÊNCIA


(A tribute to RAMONES)

Dedicado aos meus companheiros de Blog, Arnaldo, Sofia e João



A.

Tenho uma enorme dificuldade em dar um nome, em nomear uma data à maior parte dos acontecimentos da minha vida, excepto neste caso. Lembro-me perfeitamente que tinha 19 anos, que estava no último ano antes da Faculdade (o 12º), e que o ano lectivo era 1980/81. Estávamos numa escola pré-fabricada em Algés junto ao rio, mesmo ao lado da Doca Pesca. Uma escola que já não existe. Para lá chegar, tínhamos que passar por um túnel subterrâneo, mesmo por baixo do apeadeiro da estação de comboios. Um corredor escuro e fundo atravessado por milhares de pessoas a caminho do trabalho, das aulas, de outro comboio noutra linha. Uma massa anónima e adormecida de seres, mortos-vivos automatizados pela tirania da rotina, do quotidiano, do imperioso almanaque das leis da sobrevivência. Por cima os comboios arrastavam-se num ruído aterrador de aeroporto, a lama e a poeira decoravam o piso consoante a época do ano, máquinas de néon vendiam produtos estranhos, cigarros, bilhetes, pastilhas elásticas. O mais poético som que se conseguia ouvir era o piar das gaivotas à volta dos barcos que regressavam da pesca. Até o rio cheirava mal. Tal como o ronco de demolição dos comboios, a crise anunciava-se em todos os cantos da existência. Entrava como um nevoeiro intrometido e ocupava todas as frestas, todos os espaços, corroendo tudo o que pudesse cheirar a esperança. Colocava uma cancela em todo o tipo de ambições, um peso absoluto no bater dos corações.
Percebia-se a realidade, percebia-se tão bem e de forma tão nítida que não havia nenhuma vontade de querer fazer parte dela. Todas as desculpas e todos os esquemas eram válidos para estar ausente, longe dali. Tudo era tão infinitamente absurdo e desprovido de sentido, tudo era tão pesado e tão doloroso, tudo era uma condenação sem julgamento. O único crime era estar vivo, existir, pensar. E no entanto estudávamos. Mais para manter a inteligência acordada e em forma do que para chegar a algum sítio.
Atravessávamos aquele túnel todos os dias, os comboios desmoronavam-se por cima de nós, os neons das máquinas iluminavam a parvoeira dos nossos dias. Numa parede um grafitti de um boneco feio e um poema ao lado: “I don’t care, about this world, about that girl, about this words, I don’t care…”
E essa era a leitura do dia, a leitura de todos os dias, o farol de nevoeiro que gritava para manter a consciência acordada, o Ser em alerta, a criação em perspectiva. A canção dos Ramones era a única parte daquele túnel que fazia sentido, o único objecto de atenção digno de registo, o único pensamento válido, a única luz sobre as trevas.
Foi portanto com redobrado entusiasmo que recebemos a notícia. O Bruno tinha lido no jornal, não era mentira. E enquanto fumávamos o “charro” das 5 atrás da sala 32, a última sala da escola, jurámos que nem que o mundo caísse, nem que a vaca tossisse, nem que nos fuzilassem logo a seguir, iríamos lá estar. Os Ramones vinham tocar a Cascais e ainda nem sequer estavam no fim da carreira, como a maioria dos que por cá passavam. Era preciso arranjar bilhetes, acima de tudo era preciso conseguir financiamento para comprar os bilhetes. Umas idas à Feira da Ladra com um saco de tralha inútil arrancada do fundo da arrecadação, umas lavagens de carros a vizinhos com pouco tempo, umas tardes a servir no café do bairro, uns caldos Knorr vendidos a putos a fazer de haxixe, era preciso pôr a cabeça a funcionar. Arranjar o dinheiro não foi difícil. Os dias passavam a ter algum sentido, algum propósito. Até o túnel por baixo da estação dos comboios parecia animado nas manhãs mais cinzentas. O irmão mais novo do Camilo tinha 13 anos e também queria ir. Como os pais se opusessem de forma veemente, decidiu fazer greve de fome. Ao terceiro dia o pai do Camilo, um antigo preso político, foi sensível à pretensão do filho. Quando levantou a proibição, no entanto, o miúdo estava tão debilitado que caiu à cama com uma febre enorme. Já não pôde ir.
E finalmente chegou o dia do concerto. Eu e o Camilo embarcámos na estação do Cais do Sodré para uma viagem alucinante. Eram centenas e centenas de pessoas que tinham o mesmo destino, cada um mais alucinado que outro. O comboio era um autêntico circo, um lugar mágico onde as pessoas normais nem se atreviam a entrar. Cabelos compridos, rapados, mulheres com roupas extraordinariamente curtas, vestes negras, música aos berros a saltar de vários rádios, algazarra, coxos, zarolhos e droga, droga de toda a qualidade e feitio que escorria pelas paredes. Comprimidos, erva, haxixe, heroína, ácidos. A Feira circulava pelas carruagens em grande animação. Um cheiro indecifrável a Patchouli e frangos assados. Á nossa frente sentaram-se três tipos mais velhos. Percebia-se que eram veteranos da guerra pelas tatuagens que exibiam nos braços. “Guiné 1969 – 71”, “Os Fantasmas” com a cabeça do personagem da banda desenhada, uma G3 por baixo da frase, “Deve-te a vida…” Eram tipos calados com o olhar vazio, não falavam com ninguém nem ninguém se metia com eles. Instintivamente todos os respeitavam. Tinham estado num quotidiano de inferno. O maior inferno que um homem pode aguentar. Conviveram com as atrocidades, o sangue, o cheiro da morte. O que tinha o cabelo até aos ombros, de vez em quando sacava de um saco de plástico com uma espécie de caramelos derretidos lá dentro. Apertava uma porção com muita paciência até a tirar para fora. Depois comia-a. A seguir passava o saco aos amigos dele. Não conseguíamos tirar os olhos dali. Depois de Oeiras, já na terceira vez em que o saco saiu cá para fora, o dos cabelos compridos ofereceu. Hesitámos. Ele insistiu, tirou um pouco para fora e ofereceu outra vez. Eu comi, o Camilo comeu a seguir. Olharam para nós e foi a única vez que os vimos a rir. – Óleo de haxixe. Vai-vos fazer bem.
Quando chegámos a Cascais já o chão fugia a correr debaixo dos nossos pés. Parecia que tínhamos acabado de viajar na galáxia, de um planeta para outro. O Bruno encontrou-nos à porta da estação. Eu falava com ele com dificuldade.
- Então meu? O que é que estás a fazer num programa de televisão?

sábado, 17 de setembro de 2011

1000-Mensagem

Eis a milésima mensagem. Agora reparei e assim o disse. Um marco, e como o nome indica, mil-partes que fazem o todo das Partes do Todo, plúrimas a 4 vozes, distintas e ainda assim harmonizáveis pois como a imagem completa a palavra esta expande a primeira. E assim, a cosmopolita fotografia da Sofia, o verbo tantas vezes poético & nostálgico do Artur, a verve acerada do Arnaldo. Por mim, escrevinhando e garatujando, dou os meus parabéns e amizade a todos os partistas deste blogue: a quem o faz e a quem o vê.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DO LADO NEGRO




Há dias em que a estupidez, a ausência de racionalidade, a animalidade dos comportamentos e a nulidade da esperança são tão grandes, que a vontade de escrever é quase nenhuma. Quando não há futuro o presente transforma-se numa imagem diluída de sofrimento e falta de vontade. Um espaço de morte aparente infiltra-se por todas as frestas da existência e vai-se entranhando como um manto de nevoeiro cada vez maior, omnipresente. Nos anos 80 eu andava na casa dos vinte anos e acordava para o mundo real como quem é atirado para um pesadelo. O FMI andava por aqui e nada parecia ser alvo de alegria. Tudo era proibitivo, tudo custava os olhos da cara e praticamente ninguém tinha dinheiro para comprar nada. As estruturas económicas caíam uma após outra como um castelo de cartas, as fileiras de desempregados engrossavam nas filas para os subsídios, para a fome, para o desespero.
A principal razão porque nunca fui saudosista desses tempos é porque não me consigo esquecer das dimensões negras que pairavam sobre eles. Nunca me esqueci daquela família de Setúbal que jantou uma sopa com veneno para os ratos. Um suicídio colectivo a que só escapou o cão. Não tinham dinheiro para nada, pai mãe e dois filhos. Alguém se lembra deles? Havia regiões inteiras assoladas pela fome, bandeiras negras desfilavam nas manifestações, o bispo de Setúbal (D. Manuel Martins) levantava a sua voz de protesto contra as injustiças, contra o descalabro social. A violência tomava conta das ruas, a juventude, sem objectivos, sem futuro e sem lugar na sociedade, entrava no mundo das drogas. Eliminando a consciência, o sofrimento, o desespero, e, muitas e muitas vezes, a própria vida. O serviço militar era obrigatório (desde que não se conseguisse uma cunha de dispensa), como se ainda existisse uma guerra. A escolha de um curso, de uma actividade profissional, era baseada na fraca oferta existente. Poucos escolhiam aquilo em que melhor se poderiam realizar. Por alguma razão, se observarmos bem o espectro político-partidário, dos 50 para os 30 e tais, há um fosso de uma geração nos corredores da política. Como se durante 20 anos ninguém tivesse nascido aqui. E de certa forma, nunca nasceu. Nem a contemplar as maravilhas do 25 de Abril, nem a aplaudir a histeria neo-liberal, nem de boca aberta com o dinheiro que chovia do céu. Porque lhe faltavam as forças, porque lhe faltava a crença, porque se apercebeu demasiado cedo da mentira em que nos envolvem a todas as horas, porque nunca tiveram lugar entre dois mundos. A actividade cultural era praticada em ambiente subterrâneo, afastado dos grandes meios de comunicação. Os artigos circulavam em folhas fotocopiadas, os concertos faziam-se em espaços malditos, se alguém quisesse criar, tinha que o fazer por sua conta e risco. Não havia dinheiro para nada a não ser para pagar a dívida ao FMI.
E era neste ambiente esquizofrénico e deprimente que corriam os dias na maior parte dos anos 80. Finalmente a nossa entrada na União Europeia aliviou um pouco esse tempo negro. Mas poucos entenderam as lições desse tempo. Tão pouco que não descansaram enquanto não repetiram a receita.


Artur

THE MAN WHO SOLD THE WORLD



We passed upon the stair, we spoke in was and when
Although I wasn't there, he said I was his friend
Which came as a surprise, I spoke into his eyes
I thought you died alone, a long long time ago

Oh no, not me
We never lost control
You're face to face
With The Man Who Sold The World

I laughed and shook his hand, and made my way back home
I searched for a foreign land, for years and years I roamed
I gazed a gazeless stare, we walked a million hills
I must have died alone, a long long time ago

Who knows? Not me
I never lost control
You're face to face
With the Man who Sold the World

Who knows? not me
We never lost control
You're face to face
With the Man who Sold the World


David Bowie

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

NICK'S MOVIE



LIGHTNING OVER WATER / NICK'S MOVIE

Documentário/ Dramatização

Wim Wenders / Nicholas Ray

Alemanha Ocidental/ Suécia, 1981

Para entrar em LIGHTNING OVER WATER é necessário, para além da disponibilidade total, um grau elevado de identificação e intimidade. Toda a certeza se desloca sobre gelo fino, capaz de desaparecer e afundar em dúvidas a qualquer instante. Toda a afirmação de vitalidade se despenha no muro intransponível do fim.
Tudo começa em Abril de 1979, quando Wim Wenders faz uma pausa nas rodagens do seu filme HAMMETT (1983) em Hollywood, e vem visitar o seu amigo Nicholas Ray, recentemente operado na sequência de um cancro. Ray sente-se confiante e propõe ao amigo fazerem um filme juntos. Wenders hesita mas não recua. Há ainda tempo de discutirem pormenores, mas o projecto de Ray vai-se dissipando aos poucos, ao ritmo da evolução da sua doença.
Mestre e admirador vêem-se então perdidos no meio das circunstâncias, sem saber que rumo tomar, tendo como única certeza a vontade de não se quererem separar. Porque um hesita sobre o que fazer, porque outro se aproxima do fim, porque não querem estar ausentes desse tempo. A câmara está ali como mais um personagem, na sua função de registar, num círculo de amigos onde os diálogos não são mais do que artifícios, decorações singelas de uma beleza que nos penetra de forma insinuante, muitas vezes desconfortável. Muito para além do Mestre que definha sobre a sua condenação e a admiração do neófito, muito para além do aproveitamento mórbido dos últimos momentos de um moribundo, o que aparece nas imagens é a sequência de uma troca de experiências, de palavras, de um encontro normal de dois amigos com uma câmara ligada, sendo que um deles se prepara para partir.
Um velho que já perdeu tudo, prepara-se para perder a vida, passando os seus últimos dias entre estadias no hospital e no seu “loft” no Soho em Nova Iorque. Carinhosamente tratado pela presença muito discreta da sua mulher, Susan, o velho Ray respira com dificuldade entre leituras de luz, correcções de focagem, colocações de câmara, a azáfama normal de uma equipa de filmagem. Rapidamente deixa de haver lado de cá ou de lá, vai-se filmando ao capricho dos acontecimentos. A morte passa de registo simples, a acto de celebração. Tudo é caótico e desorganizado, estética e emocionalmente.
O filme acompanha Ray numa palestra a estudantes, na direcção de uma peça baseada num texto de Kafka, na tentativa de remontar o seu filme inacabado de 1973, WE CAN’T GO HOME AGAIN, no hospital. Tentando manter a sua dignidade, o gigante moribundo recorda o passado, os actores com quem trabalhou, os problemas com a bebida e as drogas, a revolta contra o sistema, a tortura dos vários projectos inacabados. E, acima de tudo, revela o desconforto causado pela aclamação de vários críticos e cineastas no final dos anos 50, que o colocaram num pedestal. Goddard chega mesmo a afirmar que Nicholas Ray reinventou o cinema, ele “é” o cinema. Tentando viver ao nível dessa reputação, tentando compreender a razão desse fascínio, fica ainda mais desorientado, incapaz de continuar o trabalho que o tornou famoso. Quanto mais tenta definir conceitos, falar sobre a sua arte, menos sentido faz dela, como com a sua vida.
Wenders por seu lado também se afunda em incertezas em relação ao seu projecto em curso em Hollywood, em relação ao documentário, à relação de amizade estabelecida anos antes com uma participação em O AMIGO AMERICANO. Não quer explorar a agonia de um moribundo, desiste, volta atrás, reincide. Ambos se enredam nos paradoxos das suas vidas revelando uma fragilidade própria dos criadores honestos que se colocam em causa a toda a hora.
Há pausas desconcertantes (como quando Ray manda terminar as filmagens), silêncios ensurdecedores, momentos de enorme tristeza. O ritmo das imagens é descontinuado, a progressão narrativa liga e desliga como um electrodoméstico, a montagem comporta-se como se tivesse vontade própria, ou vontade nenhuma. Tal como um filme doméstico, banal, íntimo. E as apreciações dos críticos oscilam ao sabor dessa intimidade, na medida em que se conseguem ou não identificar com ela. Aproveitamento sórdido dos contornos da morte, perfeita concepção infantil do cinema, documentário exasperante e inoperante que se arrasta sobre a notoriedade de um grande realizador, foram algumas das críticas mais contundentes sobre LIGHTNING OVER WATER/NICK’S MOVIE.E não deixam de estar certas na perspectiva de alguém que compra um bilhete e se senta à espera que o entretenham durante cerca de 90 minutos.
Mas se transformarmos a perspectiva do espectador, se decidirmos mergulhar num diálogo entre dois criadores de excelência que nos permitem vê-los como homens normais, vítimas das suas circunstâncias e fragilidades, se percebermos que um deles se prepara para deixar este mundo, se conseguirmos despedirmo-nos com o nosso respeito e a nossa admiração, se tivermos a oportunidade de agradecer a riqueza que a sua obra depositou para sempre nas nossas existências banais, se estivermos sintonizados através do olhar indiscreto de uma câmara, se estivermos disponíveis para assistir ao esforço de dois marginais que se tentam ajudar mutuamente a encontrar o caminho de casa, então, fazemos parte de uma acto de amor. E NICK’S MOVIE é precisamente isso.

Artur