sexta-feira, 2 de setembro de 2011

NICK'S MOVIE



LIGHTNING OVER WATER / NICK'S MOVIE

Documentário/ Dramatização

Wim Wenders / Nicholas Ray

Alemanha Ocidental/ Suécia, 1981

Para entrar em LIGHTNING OVER WATER é necessário, para além da disponibilidade total, um grau elevado de identificação e intimidade. Toda a certeza se desloca sobre gelo fino, capaz de desaparecer e afundar em dúvidas a qualquer instante. Toda a afirmação de vitalidade se despenha no muro intransponível do fim.
Tudo começa em Abril de 1979, quando Wim Wenders faz uma pausa nas rodagens do seu filme HAMMETT (1983) em Hollywood, e vem visitar o seu amigo Nicholas Ray, recentemente operado na sequência de um cancro. Ray sente-se confiante e propõe ao amigo fazerem um filme juntos. Wenders hesita mas não recua. Há ainda tempo de discutirem pormenores, mas o projecto de Ray vai-se dissipando aos poucos, ao ritmo da evolução da sua doença.
Mestre e admirador vêem-se então perdidos no meio das circunstâncias, sem saber que rumo tomar, tendo como única certeza a vontade de não se quererem separar. Porque um hesita sobre o que fazer, porque outro se aproxima do fim, porque não querem estar ausentes desse tempo. A câmara está ali como mais um personagem, na sua função de registar, num círculo de amigos onde os diálogos não são mais do que artifícios, decorações singelas de uma beleza que nos penetra de forma insinuante, muitas vezes desconfortável. Muito para além do Mestre que definha sobre a sua condenação e a admiração do neófito, muito para além do aproveitamento mórbido dos últimos momentos de um moribundo, o que aparece nas imagens é a sequência de uma troca de experiências, de palavras, de um encontro normal de dois amigos com uma câmara ligada, sendo que um deles se prepara para partir.
Um velho que já perdeu tudo, prepara-se para perder a vida, passando os seus últimos dias entre estadias no hospital e no seu “loft” no Soho em Nova Iorque. Carinhosamente tratado pela presença muito discreta da sua mulher, Susan, o velho Ray respira com dificuldade entre leituras de luz, correcções de focagem, colocações de câmara, a azáfama normal de uma equipa de filmagem. Rapidamente deixa de haver lado de cá ou de lá, vai-se filmando ao capricho dos acontecimentos. A morte passa de registo simples, a acto de celebração. Tudo é caótico e desorganizado, estética e emocionalmente.
O filme acompanha Ray numa palestra a estudantes, na direcção de uma peça baseada num texto de Kafka, na tentativa de remontar o seu filme inacabado de 1973, WE CAN’T GO HOME AGAIN, no hospital. Tentando manter a sua dignidade, o gigante moribundo recorda o passado, os actores com quem trabalhou, os problemas com a bebida e as drogas, a revolta contra o sistema, a tortura dos vários projectos inacabados. E, acima de tudo, revela o desconforto causado pela aclamação de vários críticos e cineastas no final dos anos 50, que o colocaram num pedestal. Goddard chega mesmo a afirmar que Nicholas Ray reinventou o cinema, ele “é” o cinema. Tentando viver ao nível dessa reputação, tentando compreender a razão desse fascínio, fica ainda mais desorientado, incapaz de continuar o trabalho que o tornou famoso. Quanto mais tenta definir conceitos, falar sobre a sua arte, menos sentido faz dela, como com a sua vida.
Wenders por seu lado também se afunda em incertezas em relação ao seu projecto em curso em Hollywood, em relação ao documentário, à relação de amizade estabelecida anos antes com uma participação em O AMIGO AMERICANO. Não quer explorar a agonia de um moribundo, desiste, volta atrás, reincide. Ambos se enredam nos paradoxos das suas vidas revelando uma fragilidade própria dos criadores honestos que se colocam em causa a toda a hora.
Há pausas desconcertantes (como quando Ray manda terminar as filmagens), silêncios ensurdecedores, momentos de enorme tristeza. O ritmo das imagens é descontinuado, a progressão narrativa liga e desliga como um electrodoméstico, a montagem comporta-se como se tivesse vontade própria, ou vontade nenhuma. Tal como um filme doméstico, banal, íntimo. E as apreciações dos críticos oscilam ao sabor dessa intimidade, na medida em que se conseguem ou não identificar com ela. Aproveitamento sórdido dos contornos da morte, perfeita concepção infantil do cinema, documentário exasperante e inoperante que se arrasta sobre a notoriedade de um grande realizador, foram algumas das críticas mais contundentes sobre LIGHTNING OVER WATER/NICK’S MOVIE.E não deixam de estar certas na perspectiva de alguém que compra um bilhete e se senta à espera que o entretenham durante cerca de 90 minutos.
Mas se transformarmos a perspectiva do espectador, se decidirmos mergulhar num diálogo entre dois criadores de excelência que nos permitem vê-los como homens normais, vítimas das suas circunstâncias e fragilidades, se percebermos que um deles se prepara para deixar este mundo, se conseguirmos despedirmo-nos com o nosso respeito e a nossa admiração, se tivermos a oportunidade de agradecer a riqueza que a sua obra depositou para sempre nas nossas existências banais, se estivermos sintonizados através do olhar indiscreto de uma câmara, se estivermos disponíveis para assistir ao esforço de dois marginais que se tentam ajudar mutuamente a encontrar o caminho de casa, então, fazemos parte de uma acto de amor. E NICK’S MOVIE é precisamente isso.

Artur

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