sexta-feira, 23 de setembro de 2011

TRILOGIA DA AUSÊNCIA III




C.


Gosto de estar nesta casa ao pé do mar, acho que estou em Oeiras, gosto de ficar aqui depois do lanche a observar o fim do dia. De vez em quando aparecem duas lagartixas no rebordo da varanda a quem eu dou migalhas das minhas bolachas. Chamei-lhes Ângelo e Bruno porque têm o nome de dois tipos que de vez em quando me vêm visitar, dois antigos colegas da CIA com que eu trabalhei há muitos anos no Médio Oriente. Como sou reformado pensionista, isso quer dizer que já não posso trabalhar, devo ter sido ferido nalguma missão arriscada. Eles nunca tocam no assunto, um vem de mota, sempre a meio da semana, deve ser antes de ir para casa. Sei porque aparece com o capacete debaixo do braço. A outra casa onde estava era pior que esta. De vez em quando o vizinho ligava uma musica aos berros, uma musica que, depois de muito tempo desligada continuava a tocar na minha cabeça. Às tantas parecia um comboio a andar por cima da casa, um comboio muito ruidoso que eu tinha a certeza que ia fazer cair as paredes, que nos ia soterrar vivos. Nessa altura ficava muito perturbado e desatava a gritar. Depois davam-me injecções e tudo acalmava outra vez. Desde que vim para esta casa perto do mar já não ouço essa musica, limito-me a ficar muito triste se por acaso há barulho à minha volta. Desde que não haja barulho, está tudo bem, consigo desenhar o Zé Carioca com um papel vegetal por cima, consigo ler duas páginas de um livro, um livro qualquer, o que interessa é conseguir terminar uma página que seja, o médico diz que eu estou a fazer progressos apesar de já não me lembrar da idade que tenho. Mas há-de vir, há-de chegar, a memória é muito destruída por causa da medicação forte. No outro dia consegui adaptar um emissor receptor na cauda do Bruno. Isso vai-me permitir localizá-lo durante a noite, saber onde ele está, se está em segurança ou a fugir de algum cão vadio que o queira comer. Não sei a minha idade mas sei que já fui jovem, é óbvio, basta olhar ao espelho para perceber que estou mais perto de morrer do que de outra coisa. Mas perto de morrer estamos nós todos, todos os dias desde que nascemos. A morte é isso, uma companheira permanente e indesejada, uma sombra que caminha colada à nossa sombra. No fundo tudo se resume a uma simplicidade insuportável, uma transparência que se pode ler em três frases e dois acordes de guitarra. O mais assustador é que nunca estamos preparados para uma visão tão simples das coisas. Estamos aqui mas também estamos noutro tempo, noutra dimensão, na nossa juventude a dançar na praia ao amanhecer, num comboio que viaja no espaço a caminho da Nave Mãe, onde está a decorrer um acontecimento fantástico. Eu digo isto porque desconfio que já fiz todas estas viagens que há para fazer, já falei como seres dos outros mundo que me explicaram que está tudo bem, o que é preciso é não exagerar, o que é preciso é que nos vamos amparando uns aos outros ao longo do caminho, sermos amigos, conseguir acompanhar a respiração da montanha. O resto virá, o resto resolve-se por si, a morte não é nada, é apenas mais um meio de transporte entre dimensões. Sei que aqui e agora ajudo as lagartixas ao fim da tarde e, muito depois de eu morrer, elas hão de vir ter comigo, porque é assim, porque somos amigos e os amigos servem para se encontrarem, para se ajudarem, para se empurrar uns aos outros pelo caminho. Os caminhos de pedras só nos são dados a percorrer para aprendermos estas verdades básicas. Uma simplicidade insuportável porque começamos a ler o livro da vida pelos últimos capítulos e não pelas primeiras páginas, como eu faço agora. Assim é que se devia começar, em vez de acreditar em coisas que não estão lá a não ser na imaginação da propaganda que nos formata a cabeça. Nós somos livres, somos sempre livres e o sofrimento serve apenas para fortalecer essa liberdade do espírito, essa conquista obrigatória da evolução do Ser. Lembro-me vagamente de uns quantos pensadores alemães que arrepiaram caminho nesse sentido, só que agora esqueci-me dos nomes deles. E gregos também. E lagartixas que como o mar, nós e o ar que respiramos, fazem todos parte da mesma realidade que não é real, apenas uma imagem para ajudar a aprender, todos somos a parte uns dos outros. O sofrimento é apenas uma ponte para ficarmos mais fortes. A vida, como a julgamos entender, não existe. A Vida nunca existiu.

1 comentário:

Clarice disse...

A vida nunca existiu da forma como a entendemos viver... e esse "entendimento" ainda agora se cola às lembranças do que vivemos... é uma dança, essa dualidade é uma dança... que mexe dentro de nós, e que nos revela... que nos mata, mas também que nos faz viver... cresce um mundo dentro de nós e há outro que passa como um filme, mas fora de nós... e só às vezes há uma ponte que liga esses dois mundos... só às vezes...