segunda-feira, 30 de setembro de 2013

DESTERRO: A ESPERA DO SILÊNCIO



E no entanto a vida continua. Com os mesmos dramas, carregando as mesmas dores, as mesmas perguntas sem resposta, a mesma ansiedade de estar vivo. O filho de um amigo meu produz esta curta metragem confortando a minha frustração, adoçando o meu desânimo. Provando que a arte e a vida são gémeas de um mesmo corpo, de uma mesma alma, de um mesmo tempo. A simplicidade com que as palavras voam ao sabor da brisa incerta e inconsequente transformadas no gesto de uma dança. A dureza de um cenário nu polvilhado de focos de iluminação espalhados ao acaso. A vida é uma descoberta dolorosa da impossibilidade. A criação é o canto cristalino e maravilhoso de quem a carrega. Um canto que atravessa gerações e se eleva ao céu de uma plenitude. O Ser e a Humanidade que se recordam em cada dia das danças esquecidas do baile da eternidade. Força Diogo.

Artur

terça-feira, 24 de setembro de 2013

ADEUS PEDRO


Lembro-me que fazias anos, lembro-me que nos juntámos vagamente na área de Cascais e, principalmente, lembro-me que à saída do restaurante marraste que havias de regressar a Lisboa de mota. E assim foi. Á pendura na mota do Tomás, capacete branco na cabeça, pés no ar a tactear apoio no vazio. Lembro-me do GNR a mandar parar e a perguntar ao Tomás se ele não sabia que não podia transportar o filho de mota e da cara de parvo que fez no momento em que tiraste o capacete da cabeça. Nesse ano a tua alcunha passou a ser o “astronauta pequenino”. E como este, lembro-me de dezenas de episódios em que me fartei de rir contigo, das sessões de “bélinhas” nas testas uns dos outros, das bebedeiras antológicas na Cervejaria Europa, das jam sessions de guitarra e  piano em tua casa. Ontem tive a triste notícia que te tinhas ido embora, uma dor  aumentada pelo facto de ainda há uma semana termos estado juntos a jantar. É certo que o teu estado de saúde já não era animador mas nada fazia prever este desfecho em tão pouco tempo. No tempo em que virávamos litros de cerveja na Cervejaria Europa a vida não fazia sentido nenhum. Hoje foi apenas mais uma confirmação. O que te queria dizer… sei lá o que é que te queria dizer. Acho que o que queria dizer-te foi aquilo que sempre te disse ao longo destes 20/30 anos de amizade. O que te queria dizer era que serás sempre, como sempre, um de nós. Elemento desta família fabulosa que são os nossos amigos. Que o teu tamanho só nos distraiu durante a primeira hora em que te conhecemos para nunca mais se perceber sequer que existia. É claro que para as alcunhas era certo e sabido, mas também, essa era uma regra aplicável a toda a gente. Todos tínhamos um pé, um olho torto, no fundo a marca que nos individualizava e distinguia do resto das pessoas, marca essa através da qual se abria a porta para a entrada das alcunhas. Lembro-me que eras exímio jogador de matraquilhos na defesa, de que tocavas lindamente, da tua preocupação connosco, com os outros. 

Parece que tudo tem que ter um fim na lei desta vida, na ordem natural das coisas, neste enunciado absurdo e caricato de regras que nos são impostas desde o dia em que nascemos. Mas na nossa tribo, não. Aqui tudo faz sentido porque há uma espécie de fio condutor que nos une, um fio tecido com solidariedade e amor. Por ele continuamos presos ao Tomás, que já marchou há mais de vinte anos, sabendo que ele também pensa em nós de vez em quando. Aliás, tenho a certeza que o gajo que vai estar à tua espera à saída do túnel encostado a uma “ninja” verde com um capacete branco na mão…tenho a certeza de que esse gajo é o Tomás e que ele te vai levar de regresso a casa. A casa para onde todos acabaremos por voltar um dia. Hoje foi a tua vez. Um grande abraço Pedro. A gente um dia destes encontra-se…

 

Artur

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

ANTÓNIO RAMOS ROSA

                                                                     1924 - 2013

terça-feira, 17 de setembro de 2013

UMA RESIGNAÇÃO INQUIETA





“Procuro retratar o que não deveria ser possível

como se fosse.

Ozu retrata o que deveria ser possível

como se fosse.”

 

      Kenji Mizoguchi

 

 

Considerado no seu país como o mais japonês dos realizadores japoneses, cujos filmes só teriam interesse para um auditório exclusivamente doméstico, Yasujiro Ozu (1903 – 1963) e a sua obra foram um segredo bem guardado ao longo de muitos anos do passado século, tendo alcançado o reconhecimento universal já após a sua morte. De facto, tendo como tema central a família, e utilizando sempre o mesmo enquadramento sociológico, a classe média, poderíamos facilmente atribuir-lhe de forma muito superficial a categoria de “telenovela” da realidade nipónica. A simplicidade aparente dos seus filmes transforma-se numa reflexão profunda acerca dos problemas de todos os homens independentemente da sua cultura ou origem social. Os conflitos internos de cada um, as relações familiares, a impossibilidade comunicacional, a gestão da frustração, a separação e perda inevitáveis aquando das passagens pelo matrimónio ou pela experiência da morte. Dramas vulgares de gente vulgar sob um manto de aceitação contida e resignada, efeito muito criticado pela geração de cineastas que se lhe segue.

Nos filmes de Ozu não há heróis nem vilões, os sentimentos ilustrados são tudo menos grandiosos, extremos. Todas as pessoas são pessoas comuns. Se bem que haja variações de acordo com as suas condições económicas, as relações familiares e os seus dramas são idênticos. Os seus mundos vagueiam em círculos concêntricos, toda a gente se conhece e todos gostam de todos. Quem não pertence à família directa é vizinho, colega da escola, camarada da guerra, professor, colega no trabalho.

Numa primeira fase (1927 – 33), ainda no período do cinema mudo, Ozu irá realizar cerca de duas dezenas de filmes que se dividem entre a comédia e o realismo social. Desta fase é de destacar o seu primeiro êxito tanto comercial como a nível da crítica, falamos de NASCI, MAS… (Umarete wa Mita Keredo) de 32, um filme que ilustra o tema fundamental da sua obra. Dois irmãos insistem na ideia de que o seu pai é o maior e decidem dar uma sova no filho do seu patrão para o provar. Em reacção à atitude de humilhação e subserviência do pai, que se desdobra em pedidos de desculpas na sequência da briga, resolvem entrar em greve de fome. Ao observá-lo a entrar para o carro do patrão de manhã, todo contente, percebem que afinal ele será sempre um empregado que nunca chegará a patrão. Embora bem definidas as diferenças de níveis de vida nenhum dos lados é mais ou menos favorecido por causa disso. Tão ridículo é o pai dos miúdos a fumar e a fazer exercício como o patrão a brincar com a sua máquina de filmar atrás da porta do escritório e de uma placa que diz “Privado”. Da relação e do desequilíbrio social para o conflito pai-filho, vemos uma fila indiana de crianças na escola na aula de educação física e caímos logo a seguir numa outra fila, agora de uma série de empregados de escritório sentados às suas secretárias exibindo expressões de sonolência. As instituições que nos absorvem a todos, a escola e o escritório, impõem uma ordem sem sentido independentemente do estatuto económico-social.

O conteúdo dos filmes de Ozu ao longo dos anos 30 tem sido catalogado de “realismo consumado” ou “confirmado”. Numa época em que floresce a literatura proletária, em que cineastas como Mizoguchi realizam filmes de leitura nitidamente esquerdista, pondo em causa toda uma estrutura injusta e diferenciada de classes sociais, Ozu mantém-se fiel aos dramas típicos de um classe média baixa composta por gente comum. Se bem que a pobreza faça parte do seu quotidiano, tal como as diferenças de classe, a mensagem que se pode ler é de aceitação. Uma aceitação alvo de muitas críticas. Mas se Ozu se afastou dos dramas da classe mais pobre no pós-guerra, mais tarde acabou por continuar a mergulhar os seus personagens nos mesmos problemas de sempre. Ozu nunca viu a vida como especialmente desesperante ou particularmente alegre. Nalguns casos foi através da alegria que encontrou alguma verdade no homem insignificante. Nos anos 30 o homem “insignificante” foi apanhado no meio da Grande Depressão; nos anos, 50 não. A preocupação de Ozu com as dificuldades da vida em ambos os períodos foi muito além das contradições da economia e da sociedade para se focar num outro nível. O da gestão das expectativas e das frustrações, da desilusão e da aceitação, do enquadramento do homem através do cenário familiar. Não se trata de uma questão de ideologia mas de opção artística.

 

 

 DIÁLOGO, CENÁRIO E A CÂMARA NO CHÃO

 

Os diálogos eram de um importância extrema no método de Ozu, sendo mesmo a primeira fase de qualquer dos seus trabalhos. Eram escritos em parceria com o seu argumentista de muitas décadas (Noda) focados em actores específicos. Assim como o tempo fílmico está sujeito à sequência do diálogo, também o espaço por onde os personagens se vão revelando está sujeito a padrões ou arquétipos geográficos. O lar, o salão de chá, o restaurante, o bar são os espaços onde não só tem lugar o diálogo como influenciam e adequam o estado de espírito dominante em que esse mesmo diálogo tem lugar.  Recordações e preocupações sociais no restaurante, desilusões e nostalgia no bar, problemas domésticos em casa. Os cenários, sempre limpos e bastante iluminados, não são muito diferentes de um filme para outro. O despojo cenográfico apenas reforça o papel dos diálogos. Por outro lado a paisagem, o Plano Geral é também secundarizado em benefício dos actores e das suas palavras. Em PRIMAVERA TARDIA (BASUHN, 1949) Ozu nunca nos mostra a famosa vista sobre a cidade da varanda do templo de Kiyomizu, antes filmando virado para dentro mostrando os personagens a apreciarem a paisagem. Em O FILHO ÚNICO (HITORI MUSUKO, 1936) e A HISTÓRIA (VIAGEM A) DE TÓQUIO (TOKYO MONOGATARI, 1963), as únicas paisagens urbanas que visualizamos dizem respeito a um indiferenciado aglomerado de prédios atrás dos carros ou através das janelas dos autocarros. Sobrepondo-se ao tempo e ao cenário, a prioridade máxima recaía sobre os actores e o seu modo de representar. Ozu exigia máxima concentração no mais banal dos movimentos, evitava a representação demasiado emotiva ou denunciada, criando um clima de extrema contenção. Por vezes o cenário apresenta-se despido de actores que ou já saíram de cena ou ainda vão entrar. São momentos de silêncio mas ao mesmo tempo janelas de reflexão, pausas narrativas que indicam um universo que existe e respira para lá dos personagens.

A extrema formalização da técnica de Ozu traz consigo um pormenor até hoje longe de ser consensual quanto à interpretação. Falamos do ângulo baixo de filmagem. De facto, em nenhum filme de Ozu os seus personagens são vistos de cima. A colocação da câmara ao nível do chão, em vez de corresponder ao ângulo de visão de um japonês acomodado no “tatami” da sua casa, observa-o de baixo. Seja uma visão do corredor, um ângulo  da mobília ou alguém deitado no chão, a perspectiva obriga o espectador a observar de baixo para cima. Masahiro Shinoda  chamou-lhe o “ponto de vista de uma entidade divina inferior a observar a acção humana”. O efeito corresponde a obrigar o espectador a uma reverência involuntária face à celebração da vida de todos os dias. Se por um lado o universo de Ozu é composto por personagens contidos, respeitadores da vida e agentes de um quadro emocional mediano sem oscilações, por outro, ao fazer a apresentação desse mesmo universo ao público, obriga-o a venerar essa mediania resignada.

 

 

 

CONCLUSÃO

 

O desenvolvimento formal da obra de Ozu consiste essencialmente na refinação e apuramento dos problemas básicos do quotidiano através de arquétipos, quer de situações quer de personagens. Em pleno tempo de guerra, 1941, HAVIA UM PAI, o problema essencial é a separação entre pai e filho. Em 1959, OHAYO a família confronta-se com dificuldades por causa da disparidade entre o mundo dos adultos e o das crianças. Em TOKYO STORY os pais confrontam-se com a desilusão causada pelo desenvolvimento da vida dos seus filhos. Os pais na sua contínua apreciação da vida tentam provar que a felicidade é ilusória. Nada acontece a não ser porque tem que acontecer, apesar de ser incontornável uma enorme ausência de satisfação. Despojado da influência do drama ou da felicidade, o que OZU procura é a ascensão do ser humano que absorva e sinta a vida na sua totalidade independentemente da sua justiça, do seu prazer, da sua dor. Uma postura muito influenciada pela cultura Zen do seu país. A quietude e a aceitação, que não significam necessariamente concordância, obrigam o ser a abarcar muito mais o mistério da vida do que contrariando o estado das coisas. Daí a chegada tardia da sua obra aos ecrans ocidentais. No entanto a recepção mundial dos seus filmes foi imediata. Talvez pela admiração da atenção dada aos pormenores, talvez pela afirmação da personalidade do realizador, talvez pela concordância com algumas das suas fórmulas de apresentar a vida. Os filmes de Ozu não estavam destinados aqueles que procuram soluções utópicas. No seu universo não há espaço para o amor romântico e apaixonado, para o sucesso individual de quem triunfa na vida, e muito menos para uma bem sucedida comunicação entre os seres. Apenas a aceitação, nunca felicidade, fez parte dos seus personagens independentemente de classe social, nível cultural ou género. Evitando o virtuosismo técnico e a estrutura do drama foi directamente ao essencial da condição humana. A vida é uma “estucha”…


 

 

Artur  

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

KYOSHI KOBAYASHI

                                                                    1928 - 2013

                                                      Domo arigato, sensei. Akarimaste.

O TEMPO DAS HIENAS


 

 

Passos isolados num andar solitário pelas ruas desertas de mais uma noite sobre a cidade. Os cigarros sabem a vésperas de ataques cardíacos, o álcool acende os sinais vermelhos nos painéis da morte que se aproxima. Luto com todos eles, sento-me à mesa a negociar, a pedinchar mais um pouco de tempo, só mais um pouco, o necessário para acabar o próximo romance. Depois é o que se quiser, estou preparado para me ir embora sem mágoas, ressentimentos ou tristezas na bagagem. Sei que tem havido muita coirice da minha parte mas os estímulos são nada e tudo continua como sempre. Nada faz sentido, nunca fez, pensamento familiar de décadas. Porque é que haveria de fazer? Está escrito em algum lado? No céu, por exemplo, na eternidade? Alguém viu o sentido desta merda? Alguém o escondeu no bolso? Pouco importa. O sentido procura-se, combate-se por ele quando há força e ingenuidade para o procurar. Continuo a andar pela cidade adormecida com a guitarra aos ombros, amiga de muitas datas importantes, companheira de sempre, testemunha, cantigas com amigos numa arrecadação perdida de um prédio esquecido. Os poemas, as músicas, o resultado dessa procura. Resultado, não. Não resulta nada desta caminhada a não ser lágrimas e recordações. Caderno de memórias é o mais apropriado. E, no fundo, é nisso que nos convertemos…em registadores de memórias. O pensamento chegou cedo para não mais partir. Os olhos que viam o mundo aos vinte anos são os mesmos olhos que observam agora. Um país a sair lentamente dos escombros de uma ditadura, um assomo de progresso, ideias mais humanitárias e uma corja eterna a vigiar pela sombra, sem nome nem rosto, uma corja imortal que se esconde à espera da melhor altura para voltar à carga. As hienas que passam horas a observar a manada, seja ele de zebras ou búfalos, não importa. Este tempo é o das hienas, todo o tempo foi sempre delas. Nós, o resto, a manada, distrai-se com a brevidade dos pastos verdes a pensar que eles vão estar sempre ali. Só mais um bocado, cochicho eu com a morte qual amante desesperado a recuperar uma longa abstinência, só mais uma antes de partir, só mais um golo a coroar o festival de bola de um jogo fantástico. A nossa equipa…a nossa equipa não se senta á mesa das hienas, não tem direito às iguarias nem às lembranças, não pagou a factura da colaboração. E agora pouco importa quando tudo se desmorona e os cigarros começam a saber a ataques cardíacos, a passada uma contínua linha solitária, o sentido que não existe mas que sempre se procurou, as cantigas à volta da arrecadação clandestina, as histórias que a noite conta. A história que me falta fazer como testamento de qualquer coisa, tarefa acabada de uma missão que não foi confiada, o whisky com sabor de morte anunciada. Só mais um pouco. Só mais um pouco e partirei de livre vontade, feliz, sem estrabuchar. Partirei com o olhar dos outros que partiram antes, corolário lógico do sentido que nunca existiu. Mas também com as lágrimas deles, com o olhar da perplexidade da injustiça, com a raiva pela ignorância do sofrimento gratuito, da barbaridade inútil. Nada faz sentido, nunca fez. Talvez as canções, talvez as histórias que contamos uns aos outros em noites escondidas em arrecadações clandestinas.  Talvez… Por isso vejo-me obrigado a mendigar mais um pouco para acabar a próxima história, a última, não tem importância. Deixar terminá-la antes de fazer a mala. Nada faz sentido e tudo tem de acabar. Mas, só desta vez, deixem-me terminar.

 

Artur

quarta-feira, 11 de setembro de 2013