terça-feira, 30 de julho de 2019

I WAS INTERRUPTED




I WAS INTERRUPTED – NICHOLAS RAY ON MAKING MOVIES

Logo no início da Introdução ao volume, Susan Ray narra um episódio ocorrido no Festival de San Sebastián 1974 : depois da exibição do filme The Parallax View, o realizador Alan J. Pakula abordou Nicholas Ray, apertou-lhe calorosamente a mão, fez uma vénia e pronunciou a palavra “Maître”. O episódio, para além do valor simbólico e ilustrativo da relação de filiação entre uma nova geração de realizadores e o cineasta veterano que, de múltiplas formas, para essa mesma geração representava a potência e o acto do cinema, suscitou em Susan interrogações e perplexidades que expressa desta forma: “What is a Master and what makes Nick one ? And what this mastery of his mean to me ?”. Pois bem, este livro acaba por ser uma resposta cabal a tais interrogações, nascidas de uma perplexidade, ou de uma indeterminação, no conceito original de “Mestre”. De facto, o que ela (Susan) confessa é que à vida e à obra de Nicholas Ray faltaram alguns dos predicados que normalmente associamos ao conceito: a calma, a ordem e o controlo. Susan Ray poderia ter levado a sua perplexidade um pouco  mais longe e colocado a questão de uma outra forma, talvez com conotações políticas e sociológicas; o que significaria nessa época e nesse contexto ser visto como um Mestre ? Que poderes pessoais era preciso ter para que, num universo especificamente americano, tendencialmente irreverente e contestatário, ainda ser possível reconhecer essa figura, quando ressoavam os ecos dos brados “Plus de Maîtres !” que os estudantes franceses não se tinham cansado de gritar a plenos pulmões durante o Maio de 68. As duas questões – as dúvidas de Susan Ray e a dimensão político-social do problema – interpenetram-se e, como já dissemos, esta obra constitui-se como tentativa bem sucedida de encontrar uma resposta, já que o seu núcleo fundamental é constituído por transcrições de lições dadas por Nicholas Ray no Harpur College de Nova Iorque (a maior parte) e também no Lee Strasberg Institute da Universidade de Nova Iorque entre 1971 e 1978, com intermitências resultantes das circunstâncias tumultuosas da vida do cineasta. Numeradas de I a XV, essas “lições” apenas podem ser assim designadas por abuso ou facilidade de linguagem; de lições, no sentido estrito e académico do termo, nada têm. Não são, nem de longe nem de perto, modelos de transmissão de um saber, de uma “techne” ou de práticas que habilitem alguém a realizar um filme ou a nele interpretar uma personagem; não discutem teorias, nem procuram chegar à essência do cinema; não proclamam verdades eternas, nem sequer aquelas outras que são passíveis de debate e crítica; não emanam de nenhuma espécie de autoridade a quem prestar reverência.
A aura carismática de Nicholas Ray e o romance da “persona” no acto pedagógico constituem justamente o fulgurante carácter desta espécie de diálogos socráticos através dos quais Ray olha para os seus discípulos como iguais, fazendo-lhes mais perguntas do que aquelas que lhe são feitas. Um espantoso exemplo do seu “método” encontra-se na “Class V”. Ray não está completamente seguro de ter conseguido transmitir aquilo que entende por “acção” e o seu carácter de utensílio de interpretação dos actores. Compreende que é uma noção complexa, difícil, singular e pessoalíssima. E é através do diálogo com os seus discípulos que se vai progressivamente aproximando da noção e esclarecendo o seu conteúdo e alcance, densificando-a e clarificando-a em simultâneo: “PETE: Should the way in wich I carry out my action go along with what the action ? NICHOLAS RAY: It certainly should, because your action is an expression of the nature of your character. At the same time it helps clarify your character, his rhythm, how he does what he wants to do. Your action helps you make the transition from “If I were” to “I am”. Consider this dialectic: content determines form and form conditions content. Now apply it to your choice of action. What was your action here Nat ? NAT: Well, first I wanted to go to the couch. NR: Why ? NAT: So I could say hello. NR: Wouldn’t you say hello at the door ? NAT: I wanted to kiss her. NR: Why ? Are you deeply in love ? Is it the first chance you had to kiss her ? Is it the first time you’ve seen her ? Is it love at first sight ? Why ?”.
E o diálogo prossegue nesta toada até Ray conseguir extrair uma intuição, um acontecimento de lucidez e de compreensão, algo que só os verdadeiros Mestres obtêm, mesmo dos menos dotados dos seus discípulos.
Embora algo se tenha perdido na passagem a escrito destas emocionantes experiências maiêuticas de diálogo e aprendizagem mútua, ainda assim conseguimos captar as intensas vibrações de sentido e de intenção que perpassam como uma corrente eléctrica entre Nicholas Ray e os seus alunos. E voltamos às respostas às interrogações e perplexidades de Susan Ray: a calma e a ordem do Mestre são adquiridas por Ray em pleno exercício da função, não lhe são prévias, não existem antes de se exercerem, como se o magistério colocasse em suspensão e adiasse as angústias da luta contra o alcoolismo, a doença e a interminável agonia da sua obra nesses anos terminais.
Mestre, portanto. Não querendo fazer jogos de palavras, diríamos que a autoridade (auctoritas) de Ray como Mestre se fundamenta na sua “autoridade / autorismo” – aquilo que tem para ensinar é o seu próprio exemplo.
De resto, e para além das “classes” (?), o volume contém documentos e fragmentos extremamente valiosos para todos os que se interessam por cinema e pela obra de Ray (sendo as duas entidades sinónimos e consonâncias); reminiscências, excertos de argumentos, reflexões sobre alguns dos filmes que dirigiu, correspondência, constituindo o conjunto uma poderosa meditação sobre a arte cinematográfica. Seria imperdoável deixar de referir o brilhante esboço bio-filmográfico da autoria de Bernard Eisenschitz, um dos autores que melhor compreendeu Nicholas Ray.

No longínquo encontro de 1974, Alan Pakula dirigiu-se a Ray como “Maître”. Ainda bem que o fez, já que a alternativa em inglês teria sido “Master”.




quarta-feira, 24 de julho de 2019

RUTGER HAUER




                                                                      1944 - 2019

MEMÓRIA DE MIM




De repente e sem me esforçar muito, lembrei-me que era celta, lusitano e fenício. A memória inscrita nos meus genes era uma selecção ou uma mistura ou tudo a um tempo de uma história antiga de povos e culturas que trocaram mercadorias, ódios e aprendizagens. De correrias pelo mato, caminhadas por montanhas, trocas em mercados, campos cultivados, pescas, barcos navegados pelos caminhos do mar De gente que acabou por se misturar entre a vida e a morte num mesmo território. Depois, sem forçar a memória, percebi que era judeu, cristão e árabe. O meu Deus era um gajo que tinha várias camisolas que ia trocando ao sabor das estações e dos tempos mas era sempre o mesmo. Os tipos que achavam que falavam em nome dele é que eram apenas e só uma cor, uma camisola, uma coisa qualquer contra a outra cor, dividiam para dominar, entrar nas nossas vidas e dizer como as deveríamos viver. No fim as camisolas lutavam entre si, morriam e matavam em nome do mesmo Deus e os tipos que falavam em nome dele engordavam, enriqueciam, dominavam a maioria. Uma empresa com várias filiais mas um único presidente.
Sem fazer um grande esforço percebi que era português, castelhano, francês, que respirava o mesmo ar, dividia umas gargalhadas ao fim da tarde, numa paisagem mediterrânica desenhada a azeitonas, pão e vinho tinto. Que sofria o mesmo transtorno com as tempestades, que suava a mesma sede com as secas prolongadas, que batia o dente da mesma maneira quando chegavam os cortantes ventos do Inverno.
De repente percebi que era europeu, e africano e asiático, e a minha única dúvida era sobre qual deles teria sido primeiro.
E fui branco, preto, amarelo e vermelho e dancei as danças da chuva, rodopiei as voltas do folclore, fiquei nostálgico ao som dos blues, saltei com o bater dos tambores, deixei que a música fosse falando por mim, deixei a música tocar a sua única melodia.
Percebi que para ser um teria que ser  tudo e todos. Em breve serei nada…

Artur

domingo, 14 de julho de 2019

ATÉ QUE A MANHÃ NOS RECORDE




Tudo o que nos resta são memórias. Tudo o que nos resta, tudo o que nos sustenta, tudo o que nos identifica. Somos feitos de passado e recordação,  o único património que realmente importa. Continuaremos a recordar, a lembrar, a visitar o que aconteceu atravessando a escuridão da noite, o negro da insónia, agitado e imparcial, aterrador e absurdo até ao regresso da luz, até que a manhã nos recorde.

E na travessia que seria supostamente uma desculpa para uma busca de qualquer coisa, um suposto encontro anunciado, vamos percebendo que não há nada para encontrar…tudo para construir. O caminho não é uma busca mas uma acto criativo permanente onde nos vamos inventando um pouco todos os dias. Com pedaços do passado, memórias, mágoas e alegrias, tudo apontado num caderno cada vez mais gasto de tanto escrever.

Passamos a vida a dizer adeus porque nada fica junto a nós eternamente. Passamos a vida a encontrar e a perder e sempre a recordar. Somos feitos de memórias, esse é o nosso cimento. Quando caímos aqui não somos nada, não nos reconhecemos em lado nenhum, não somos parte nem todo. Insistimos em caminhar, hesitantes, frágeis. Damos a mão a companheiros de percurso para evitar cair, para prender alguma coisa … Passamos metade da vida confusos, desajustados e com medo. Medo do vazio, medo do outro, medo de nós. E no medo plantamos a coragem, na hesitação a certeza, na memória o reencontro. O voltar ao que sempre fomos reforçados pela experiência da travessia. A celebração de um novo Ser reforçado, recriado e fortalecido.

Passo a passo vamos construindo alguma coisa, alguma coisa que nunca dura para sempre, que se gasta, consome, afasta e acaba por terminar. Somos feitos de memórias e passamos metade da vida a recordar, a lembrar o que já não temos, a mastigar despedidas e outra metade a erigir o edifício novo em que nos tornamos…para logo a seguir terminar. Puta de vida tão estranha.

E continuaremos obstinados a criar qualquer coisa que seremos para não ficar presos em becos sem saída feitos de lágrimas e respostas mortas antes de nascer.

Recordaremos pela noite fora, até que um dia a manhã nos recorde.

Levantados do chão, a caminho do mar, para conquistar o céu.


Artur

terça-feira, 9 de julho de 2019

IN MEDIA RES




Editados conjuntamente pela Midas, os filmes "Alumbramiento" e "La Mort Rouge" de Victor Erice são acompanhados por "Victor Erice : Paris-Madrid Aller-Retous", de Alain Bergala, que integrou a mítica série documental "Cinéma de Notre Temps", concebida e dirigida por André S. Labarthe. 
Em "La Mort Rouge", o cineasta relata em 32 minutos a sua experiência cinematográfica, aos cinco anos de idade, quando assistiu ao filme "The Scarlet Claw / A Garra Vermelha", realizado por Roy William Neill em 1944, exibido num local mítico e majestoso (além de assombrado), o velho Cinema Kursaal em San Sebastián. A voz do cineasta, a voz do narrador, relata aquilo que fundou permanentemente a sua "relação com as imagens em movimento", retomando a pulsação dos temas a três tempos da suas obras anteriores: o medo, a infância, o cinema ("O Espírito da Colmeia", 1973, "El Sur", 1982) referindo-se à sua história pessoal e à da Espanha no pós-guerra civil. É um filme composto de fotografias e de imagens de arquivo, propondo uma inscrição precisa no passado (data, local, eventos), com um enorme poder evocativo, capaz de desvelar aquilo que pode existir naqueles buracos que a acção do tempo cruza tanto na memória pessoal como nos livros de História. Na realidade, o subtítulo, ou título alternativo, "Solilóquio" remete para um "documentário interior", com escolhas múltiplas na imagem (filmagem no presente, imagens de arquivo, reconstituição dos tempos entre 1946 e 2005) e no som (alternância por vezes ambígua entre a primeira e terceira pessoa do singular) e na montagem que insistem no seu conjunto sobre a "proximidade e o afastamento entre o adulto no presente e a criança no passado" e que resultam numa extraordinária perturbação que dá conta da inconsistência do sujeito: "Quem é aquele que se recorda ?", pergunta o cineasta. Renovando o seu compromisso com "a relação - e a oposição - que se estabelece entre história e poesia" nos seus filmes, Victor Erice junta-se a uma vasta corrente historiográfica (e cinematográfica) interessada nos mecanismos de ligação entre o passado e o presente e pelo carácter aporético de qualquer reconstituição integral que não poder ser abordada senão através de estilhaços, pequenos fragmentos de verdade. Parece-me, assim - e é isso que, provavelmente, mais me perturba no filme - que "La Mort Rouge" procura refazer em laboratório, como se se tratasse de uma experiência científica, as operações ambíguas e incertas da memória. É assim que o filme repousa sobre o princípio daquilo que poderíamos chamar de "vai-e-vem" estruturado entre 1946 e 2005 - ou seja entre o tempo da criança sobre a qual pesa a dor universal de uma sociedade devastada e o tempo do narrador, que pergunta sobre aquilo em que "estes fantasmas se transformaram". É assim que se forma um exemplo daquilo que é possível fazer com o tempo: dar-lhe forma e sentido, abri-lo à compreensão dos outros, de tal modo que o passado se encarna na continuidade do presente. No écrã, essa encarnação do tempo é ela mesma figurada por um local, teatro da primeira emoção cinematográfica de Erice. O cineasta estabelece com esse décor uma primeira camada do tempo: aquela sobre a qual foi deposta a "experiência crucial" dos seus cinco anos de idade. A experiência de projecção do Gran Kursaal não anda longe de uma ideia do cinema como lugar de expressão de um "trauma", trauma esse que não se pode definir simplesmente como um acontecimento externo, por muito violento e aterrorizante que seja, mas como uma ligação do perigo interno ao perigo externo, do presente ao passado. Para um cineasta que afirma que a história do cinema é um elemento da nossa memória que se confunde com a história do século na nossa própria biografia, o filme que restitui a sua primeira experiência cinematográfica carrega consigo o pesado fardo de reencontrar aquilo que se perdeu na Espanha de Franco : uma relação vital entre o cinema e o mundo.
Colocados ao longo de uma escala temporal muito longa da história da Espanha entre 1973 e 2001,as obras de Erice anteriores a "La Mort Rouge" parecem, de modo retrospectivo, serem relançadas num mesmo tempo - o do "pacto de esquecimento", selado em 1939 pela vitória nacionalista, de "construir sem olhar para trás", prolongado muito para além da morte do pequeníssimo, insignificante, medíocre e mesquinho ditador. Por sua vez, o filme de 2005 liga-se a uma nova sociedade preocupada em estabelecer uma narrativa comum do passado. Seja como for, é um dos mais belos, intensos e emocionantes filmes da história do cinema.